domingo, 16 de setembro de 2012

O atual impasse na Síria: Entrevista com Haytham Manna’ (Parte 1/5)


1/6/2012, Bassam Haddad entrevista Haytham Manna’, Jadaliyya
Transcrição traduzida pelo pessoal da Vila Vudu

Dia 27/4/2012, às margens da Conferência “Contestar narrativas, localizar o poder” [orig. “Contesting narratives, locating power”] co-patrocinada pela rede Jadaliyya e o Centro de Estudos sobre o Oriente Médio da Universidade de Lund (Lund, Suécia, 25-28/4/2012) [1], sentei para uma longa entrevista com Haytham Manna, um dos nomes ícones da oposição independente síria e fundador do Corpo de Coordenação Nacional para Mudança Democrática na Síria [orig. National Coordinating Body for Democratic Change (in Syria)]. Foi entrevista longa e franca, em que se discutiram vários temas, inclusive o atual impasse, os estágios e transformações pelas quais passou o levante sírio, questões da intervenção internacional e da resistência, o Conselho Nacional Sírio e suas relações com outros grupos de oposição e os estados do Golfo e outros, e o relacionamento entre Síria e o Hezbollah. A entrevista foi heroicamente traduzida ao inglês por Ziad Abu-Rish, editor de Jaddalya.


Bassam Haddad (BH): Senhor Haytham Manna’, pode, por favor, apresentar-se?

Haytham Manna’ (HM): Tenho militado como ativista de direitos humanos há cerca de 33 anos. Antes, fui líder da esquerda síria. Deixei o trabalho político partidário, mas adiante voltei indiretamente, trabalhando em torno da Declaração de Damasco. Voltei à plena força ao trabalho político quando o Corpo de Coordenação Nacional foi criado, como a maior coalizão de forças políticas, artistas, intelectuais e independentes que há hoje ativa na oposição síria. Tive de escolher entre as duas posições, porque não tinha o direito de manter ambas. Então, parei com meu trabalho de militante independente e tornei-me porta-voz do Comitê Árabe pelos Direitos Humanos que eu, Moncef Marzouki, Muhammad Hafiz Yaqoub, Violette Daguerre e um grupo de ativistas havíamos constituído. Hoje, sou membro sem cargo do Comitê Árabe de Direitos Humanos e um dos líderes do Corpo Nacional de Coordenação, ao qual sirvo como vice-coordenador geral.

BH: Obrigado. Claro, sei que falar sobre a Síria é andar em campo minado. O senhor poderia nos dar ideia de que realmente se passa na Síria hoje [abril de 2012]?

HM: O mês de abril foi talvez um dos mais difíceis em termos de falta total de clareza sobre o que está acontecendo. Por um lado, as grandes potências chegaram ao que chegou a ser considerado “acordo político” – a Iniciativa Kofi Annan. Esse acordo combinou a iniciativa da Liga Árabe e a cobertura internacional do Conselho de Segurança da ONU [interrupção]. O problema fundamental que se viu no instante em que se chegou àquele acordo internacional-árabes foi que o acordo teria inimigos, fosse qual fosse o rumo que tomassem os detalhes. Há os que se decidiram pela violência e pela persistência da violência, tanto dentro do regime sírio, quanto fora dele. Temos um problema em relação a esses grupos: o que fazer com eles?

O regime já pôs na rua o pior que tem, nesses últimos 13 meses. Mas, sob a pressão terrível do regime, e porque já se acumulam as vítimas da ferocidade dos militares, a própria sociedade começou, ela também, a mostrar o que tem de pior, e de vários modos. Na Síria, todos os valores que os jovens mobilizados levaram às ruas estão ameaçados. Os jovens mobilizaram-se contra o sistema autoritário. Agora, já há os que falam de “partido único” ou os que defendem o “Artigo 8”, dentro da mesma oposição. Os jovens mobilizaram-se contra a corrupção. Hoje, já se consomem quantidades inimagináveis de dinheiro para conter e mobilizar os sírios para uma luta contra a Síria.

BH: Esse dinheiro vem de onde?

HM: Vem de todos os lados – já ninguém se surpreenderá se se souber que o Burundi tem um pé aqui, interferindo na situação síria. Nos pusemos, nós mesmos, numa situação – o regime empurrou a sociedade para uma situação – em que a palavra de ordem é “o demônio? Pois que apareça!” Falo da sociedade civil, não de toda a sociedade síria: o povo que foi para as ruas e sacrificou a própria vida ou pôs-se em situação de extremo risco. A teoria do “o demônio? Pois que apareça!” que foi muito reforçada pela imprensa-empresa do Golfo, pede a interferência de alguém, seja da OTAN ou de qualquer outra força. É teoria muito poderosa. Criou entre as pessoas a sensação de que a revolução já não trabalha pelos belos valores das mobilizações iniciais. E setores muito amplos da população começaram a distanciar-se da mobilização revolucionária.

A revolução perdeu a força de atração inicial. Claro que ninguém aceitará uma volta ao que havia antes. O regime político que dominou a síria por 40 anos está morto, nos corações e mentes dos sírios. Ninguém mais se atreve a defendê-lo, nem os aliados que ainda se beneficiam do regime. A ideia hoje é escolher entre reforma e mudança, entre reforma e remoção do núcleo mais duro do regime.

Mas, infelizmente, a confusão é absoluta. A causa dessa confusão é que o regime autoritário, sob cuja sombra vivemos, fez à Síria o que Saddam Hussein fez ao Iraque em relação ao Partido Da’wa. Todos os filiados ao Partido Da’wa no Iraque, como, por exemplo, a Fraternidade Muçulmana na Síria, foram condenados à morte. Essa condenação é simbólica, as sentenças jamais foram aplicadas, mas foi suficiente para tornar a Fraternidade Muçulmana na Síria movimento expulso do estado, não só expulso do regime. Por isso, muitos membros do movimento não veem diferença alguma entre o estado e o regime na Síria. Pouco lhes interessa salvar o estado, porque se sentem expulsos também do estado. O estado os expulsou. E eles não têm qualquer interesse em preservar algum estado na Síria. Há um discurso que prolifera na sociedade, que é reminiscência de [Paul] Bremmer, apesar de todos os riscos. Outro discurso diz “Não, o estado tem empregados, todos eles trabalharam com o regime por 40 anos e ainda vivem em casas pagas pelo regime”. Nesse momento há na oposição gente que enriqueceu, tornaram-se milionários, nos últimos três meses. 

Quero dizer... É preciso ter muito cuidado, avançar passo a passo. Revolução não é isso. Revolução implica valores. Revolução implica buscar coisas novas, limpas, que não tenham sido poluídas. Implica também boicotar os agentes autoritários e repressivos que constituíram o regime ditatorial. Hoje, essas coisas misturaram-se, foram misturadas pelo papel crescente que têm, dentro da Síria, hoje, agentes e interesses externos. Os interesses dos não sírios são mais ativos, hoje, na Síria, que os interesses dos sírios e expandem-se à custa dos sírios.

BH: You spoke about a type of struggle between the internal and the external, or between the viewpoint that focuses on the inside and one that focuses on the outside. How does this occur at the expense of the other, and thus not serve any progressive ideas? Esta pergunta não foi traduzida, pois apenas atrapalha o raciocínio do entrevistado.
Outros pequenos trechos da entrevista foram suprimidos por serem redundantes ou irrelevantes.

O problema fundamental está na seguinte pergunta que se pode fazer a qualquer cidadão: “Quais os instrumentos que governam o futuro da revolução síria? Esses instrumentos estão hoje sob controle do povo sírio?” A resposta a essa pergunta define a natureza do projeto de alguma transformação democrática, o objetivo dessa transformação e os limites dessa transformação.

A mobilização começou em Dar’a. Começou lá. Não começou nem em Istambul nem em Doha. Começou em Dar’a, na Síria, nas cidades sírias, em regiões da Síria. E, quando começou, havia duas metas bem claras para todos os que estavam na rua: éramos todos contra a corrupção e contra o autoritarismo. Em todos os protestos, vê-se que os dois slogans estão interconectados. “Melhor morrer que viver oprimido” era a expressão política. Mas também se gritava contra “Rami, ladrão”. A luta política estava sendo feita contra a eliminação de liberdades básicas, direitos básicos, e pelo conceito de cidadania. Havia também a luta contra a sangria do dinheiro público, resultado da corrupção massiva. Esses dois processos e a correlação entre eles eram bem claros para a juventude síria.

Mas fora da Síria a mensagem era outra. Se alguém está na Arábia Saudita, escrevendo pelo Facebook, está proibido de falar do sistema de corrupção na Arábia Saudita, mas pode falar da corrupção na Síria... Os sírios começaram a sentir que estava faltando alguma coisa... Esse é um dos nossos problemas. Uma parte fundamental do discurso externo considera as alianças, o equilíbrio das forças regionais e o que as forças internacionais dizem.

Por exemplo: quem, no resto do mundo, está falando das Colinas de Golan, quando fala da situação na Síria? Ninguém. Absolutamente ninguém, porque ninguém quer criar problemas para [Hillary] Clinton. Querem tranquilizar Hillary Clinton, para que ela os receba...

Há todo um vasto processo de “acalmar” Clinton que está sendo levado adiante pelo grupo que fala pela Síria, mas fora, bem longe da Síria, porque esse grupo quer ser reconhecido, pensando já em formar um governo “depois”. Mas nenhum dos problemas de que eles falam é problema para nós, aqui dentro da Síria.

Há um milhão de pessoas sem teto, deslocados dentro do país, que querem voltar às suas casas. A revolução precisaria estar cuidando dessas questões, que são muitas, internas, nacionais.

Há, por exemplo, um líder no Conselho Nacional Sírio que é da região de Golan, mas não fala sobre Golan... Então as pessoas supõem que ele fale por Dar’a ou outro governadorato. Tudo por causa das alianças externas, dos interesses externos. Nesse caso, o movimento político emerge para manifestar, não as lutas diárias do povo, mas traduz, exclusivamente, um outro conjunto de lutas que só têm a ver com interesses e considerações muito distantes do movimento social que há dentro da Síria.

Passados os primeiros tempos de participação em massa, quando as pessoas sentiam que “esse movimento me representa”, hoje as pessoas esqueceram as lutas políticas e abraçaram a violência. Hoje é “a violência me representa” ou “o exército sírio livre me representa”. O povo raciocina que, pelo menos, aqueles militantes armados estão arriscando a própria vida. São, pelo menos, diferentes dos que estão enriquecendo à custa das lutas...

A confusão política é total, na Síria. Além do isolamento em que estamos. E há também a crise econômica, resultado da resposta militar que o regime deu à agitação social. E, claro, a Síria está vivendo sob sanções econômicas.

Mas o regime mente quando diz que as sanções afetam a vida de todo mundo. No caso da Síria, 90% das sanções foram personalizadas, contra a família Assad. E as que foram dirigidas a todo o país, essas, já existiam antes da revolução. Quero dizer: as sanções que o Congresso dos EUA impôs à Síria, ao país, não contra a família Assad, ou contra centros de poder na Síria, foram impostas antes de 2011. Depois disso, as sanções impostas pelos EUA e Europa foram sempre personalizadas, contra a família Assad e alguns outros poucos grupos. Esse é um ponto sobre o qual insistimos sempre.

Somos contra a noção de que alguma crise econômica conseguiria fazer a tarefa da revolução. Crise econômica trabalha contra a revolução, consome a adrenalina do povo para se mobilizar. Se o povo não tem o que comer, como terá energia para fazer o que a revolução lhe diz que faça, que enfrente a repressão, que mantenha as ruas cheias. Como isso seria possível, sob sítio político, econômico, social e militar? Nas condições de crise econômica, a revolução é impossível, não se mantém. Revolução não é movimento reacionário de sobrevivência, de conservação do pouco que se tenha, nem é movimento de vingança. Não se pode matar um soldado, porque o regime matou nossos primos, uns sob tortura, outros nas ruas, a tiros, durante os protestos. Para que não cheguemos a isso, é indispensável que o povo consiga, no mínimo, respirar. Por isso dizemos que a teoria da crise econômica, que a miséria arrastou as pessoas às ruas, é, sempre, uma teoria do extremismo.

Hoje, a revolução síria enfrenta dois perigos: o primeiro é que a crise econômica se agrave; o segundo é a violência. Se esses dois perigos se combinarem, a revolução síria estará morta. Até agora, durante 13 meses, a violência cresceu sempre. Por isso dissemos que queríamos Kofi Annan. E que queríamos que Kofi Annan negociasse até conseguir um cessar-fogo. Sob um acordo de cessar-fogo seria possível negociar, primeiro dentro da própria oposição; em seguida, entre a oposição e o regime. Essa é a solução que reduz ao mínimo as mortes e as perdas para o povo. Até agora, já suportamos perdas demais, perdas imensas. A Síria não aguenta mais. Temos de por fim as mortes e aos danos materiais. O que já sofremos até aqui já é mais do que a Síria pode suportar, humanamente e materialmente.

BH: Consideradas as complexidades regionais e internacionais, em que medida há contradição entre elas e o espírito de um levante revolucionário contra o autoritarismo na Síria? Tem havido muitos confrontos entre progressistas, esquerdistas, campos que apoiam a resistência; pode-se dizer que há mais divisões que pontos de acordo. Há duas posições. Há os que lutam contra a repressão, mas entendem que há limites no preço a pagar por essa oposição; há, dentro da oposição ao regime sírio, quem seja favorável à intervenção da OTAN. O que o senhor pensa sobre isso?

HM: Dada a minha presença na Europa e meus contatos com o centro e a esquerda europeus, muita gente me pergunta “para onde vai isso?” e “o que você quer, exatamente?” Essas foram perguntas frequentes, quando uma parte da oposição ao regime sírio que vive fora da Síria começou a tomar um rumo que se pode chamar de “copiar o modelo líbio”: mudar a bandeira, pedir uma Resolução do Conselho de Segurança da ONU que invoque o Capítulo 7º da Carta da ONU e pedir a intervenção da OTAN. Em resumo, “Como podemos copiar o modelo líbio?”

Essa orientação baseava-se na ideia de que só assim a oposição que vive fora da Síria conseguiria assumir o lugar de principal poder político dentro da Síria pós-Assad. Todos nos perguntavam – comunistas, socialistas, esquerdistas, “verdes”, todos – “Vocês aceitam isso?” Sempre respondi que “Como é possível alguém falar de revolução síria que, para se implantar, precisaria de intervenção da OTAN?”

Foi uma tentativa, de forças contrarrevolucionárias e da direita síria, para confundir ainda mais a situação e inverter os papéis, para criar a impressão de que há aliados “especiais” e inimigos “especiais”. Aliados seriam os EUA, países europeus, os países do Golfo e a Turquia. Inimigos, o resto do mundo. Se um país não vota comigo, é meu inimigo. O Brasil seria inimigo da Síria. A Índia seria inimiga da Síria. E isso, mesmo depois que rápidas visitas que fizemos a esses países levaram ambos a mudar o voto.

Não há dúvidas de que há, dentro da oposição síria, gente que tem agenda própria. É agenda de direita, seja islamista ou neoliberal. O princípio que rege essa agenda é que o principal problema com a Síria é sua localização regional e internacional estratégica, e suas alianças políticas. A ideia aqui é que, se a Síria mudar as atuais alianças, todos os nossos problemas estarão resolvidos. O Crescente Xiita estaria convertido em Pilar Sunita. Assim entraríamos no sectarismo como eixo central da luta social, que substituiria um governo civil democrático no lugar do tal ‘eixo’. Temos aí também uma disputa pela Síria em troca de mudança dentro da Síria.

A própria mudança já foi corrompida. A própria mudança ficou comprometida. Nessa discussão, já nem se menciona a democracia. Temos, de fato, um problema real de como lidar com o povo. A liberdade já não passa de slogan. Precisamos explicar com clareza o que implica, de fato, o nosso projeto democrático; e o que entendemos por estado civil. A Síria é composta de 27 unidades, e todas são sírias.

A palavra de ordem e principal slogan da Revolta Síria de 1925 foi “Religião para deus e país para todos.” Esse slogan uniu todo o povo sírio e pôs fim ao projeto dos miniestados sectários; esse slogan abriu caminho para a ideia de que a Síria é para todos. Essa premissa básica foi desconstituída pelo regime ditatorial. Vários grupos foram marginalizados pelo regime.

Portanto, o fim da ditadura começa com o fim da marginalização e uma volta a um programa que una todos os sírios. Só um estado civil, laico, pode unir todos os sírios. Se levamos muito longe o nacionalismo árabe, marginalizamos os não árabes, como os curdos e outros. Se levamos muito longe a ideologia islamista, marginalizamos cerca de 40% da população. Não temos o direito de fazer isso. Para que a Síria seja de todos, é preciso incorporar a moderação, mediante um programa de cidadania civil. Esse programa é o único que nos fará sentir-nos sírios, em nossa terra. É programa que ultrapassa a Constituição, que não trata só de estratégias e táticas. É questão fundamental para que a Síria exista.

A segunda República ou será uma Síria democrática que una todos os sírios, ou, simplesmente, não acontecerá. Se continuarmos no processo de esvaziamento dos valores revolucionários, haverá grande risco, também para a unidade territorial da Síria. Aqui, temos de nos aferrar firmemente aos valores da revolução, que não são valores que se afirmam em guerras. Nenhuma guerra jamais afirmou qualquer valor moral.

Hoje, se veem ataques contra indivíduos, mas ainda não se viu nenhum ataque contra qualquer dos 16 aparelhos de segurança que governam a Síria há 40 anos. Não se conhecem nem os nomes desses aparelhos. Fala-se muito das questões sectárias, sem qualquer atenção à natureza civil da revolução e à natureza civil do futuro estado sírio. Essas questões são cruciais. Temos pela frente uma luta ainda muito mais difícil que a luta atual entre nós e o regime. Estará em disputa nossa capacidade para construir um estado civil democrático. E, devo dizer, a transição será muito mais difícil que as lutas que enfrentamos hoje.

[Continua]

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