sábado, 5 de março de 2011

Tariq Ali: “Assistimos à segunda vaga histórica do despertar árabe”

“A absurda ideia neo-conservadora segundo a qual os árabes e os muçulmanos são geneticamente hostis à democracia derreteu-se como um pergaminho lançado no fogo”.
Entrevista de Tariq Ali, feita por Christophe Ventura.

ARTIGO | 5 MARÇO, 2011 - 01:01

“Se os dirigentes do Bahrein forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita” - Manifestação em Manama, Bahrein, 4 de Março de 2011, foto de Mazen Mahdi/Epa/Lusa
“Se os dirigentes do Bahrein forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita” - Manifestação em
Manama, Bahrein, 4 de Março de 2011, foto de Mazen  Mahdi/Epa/Lusa
Mémoires des Luttes (MDL- "Memórias das Lutas"): Que se passa actualmente no mundo árabe?
Tariq Ali (TA): Acho que estamos a assistir à segunda vaga histórica do despertar árabe. A recusa dos povos a beijar, durante mais tempo, a mão que segura o pau que os puniu durante décadas abriu um novo capítulo na história da nação árabe. A absurda ideia neo-conservadora segundo a qual os árabes e os muçulmanos são geneticamente hostis à democracia derreteu-se como um pergaminho lançado no fogo. Os que faziam a promoção desta ideia são os que estão mais descontentes. Penso em Israel e nos seus lóbis na Europa e nos Estados Unidos – o que eu chamo a Euro-América -, na indústria militar que vendia tudo o que podia àqueles regimes, mas igualmente nos pressionados dirigentes da Arábia Saudita que se interrogam hoje sobre se a epidemia democrática vai propagar-se até ao seu reino tirânico.

Até agora, estes últimos deram refúgio a numerosos déspotas, mas, quando o momento vier, onde vai a família real saudita encontrar refúgio? Os dirigentes sauditas devem saber que os seus protectores ocidentais, antigos ou novos, os deitarão fora sem cerimônia como meias velhas e proclamarão que sempre foram favoráveis à democracia.

Se houvesse comparação a fazer com a história europeia, seria com 1848, quando os levantamentos revolucionários tomaram forma continental, poupando apenas a Grã-Bretanha e a Espanha.

Como os Europeus de 1848, os povos árabes lutam contra a dominação estrangeira: 82% dos egípcios têm uma “imagem negativa dos Estados Unidos”, recordava recentemente uma sondagem. Não julgaram útil pôr a questão a respeito dos europeus... Eles lutam contra a violação dos seus direitos democráticos e contra uma elite cega pela sua própria ilegitimidade. Eles querem mais justiça econômica.

MDL: Quais são as características desta “segunda vaga do despertar árabe”?
TA: A situação é diferente da que conhecemos na primeira vaga do nacionalismo árabe. Essa foi essencialmente antiimperialista e tinha como principal objetivo libertar a região dos vestígios do império britânico.

As atuais revoluções árabes, desencadeadas pela crise econômica, mobilizaram a vontade, a criatividade e poder de enormes movimentos de massas. No entanto, nem todos os aspectos da vida humana não foram postos em questão. Os direitos sociais, políticos e religiosos são alvo de fortes polêmicas na Tunísia, mas não noutros lugares, pelo menos para já. Até agora, nenhum novo partido se formou, o que leva a pensar que as futuras batalhas eleitorais oporão o liberalismo e o conservadorismo árabe, neste último caso sob a forma das Irmandades muçulmanas, versão local da democracia cristã europeia.

Estes últimos tomarão como modelos os seus correligionários atualmente no poder na Turquia e na Indonésia e confortavelmente instalados no regaço dos Estados Unidos. Os dirigentes da Confraria propõem uma transição ultra-ordenada se Washington os apoiar, o que poderá acontecer. A diferença com a Turquia reside no fato que foram movimentos de massas que derrubaram ou ameaçam os déspotas do mundo árabe. O futuro poderá ainda reservar-nos surpresas se os regimes de transição ou de sucessão provocarem decepções na frente social.

MDL: Como vão reagir os Estados Unidos?
TA: A hegemonia dos Estados Unidos na região foi beliscada, mas não destruída. Ela retornará, mas não da mesma forma. Os regimes pós-despóticos vão ser mais independentes, mesmo que, no Egito ou na Tunísia, o exército esteja sempre presente para garantir que nada vai longe demais. O novo grande problema para a Euro-América tem por nome Bahrein. Se os dirigentes deste pequeno reino – que dependem de um exército dominado por oficiais e soldados reformados do exército paquistanês – forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita. Pode Washington dar-se ao luxo de ficar de braços cruzados perante uma tal perspectiva? Ou vão os Estados Unidos implicar as suas forças armadas na manutenção no poder dos cleptocratas wahabitas?

MDL: Como analisa a situação na Líbia?
TA: As raízes dos levantamentos na Líbia não são diferentes dos que explicam os acontecimentos na Tunísia ou no Egito.

Mouamar Kadafi dirigiu o país com mão de ferro. Se por vezes recorreu a uma retórica anti-imperialista num passado longínquo, ele colaborou diretamente, nas últimas décadas, com a Euro-América. O ideólogo de Tony Blair, Anthony Giddens, fez elogios ditirâmbicos ao Guia. O estilo de vida deste último e as suas políticas excêntricas tornaram-no inapto para modernizar o seu país. Apesar dos quarenta anos que passou no poder, os líbios têm um nível de educação muito pior que os tunisianos e o sistema de saúde do país é muito deficiente.

O balanço de Kadafi é um Estado de partido único degenerado, as prisões e a utilização da tortura. E tudo isto para manter a sua família no poder. A sua decisão de recorrer ao exército e à aviação para reprimir o seu próprio povo levou à libertação de Benghazi e provocou uma dissidência na instituição militar. Os soldados que recusaram abrir fogo sobre o povo foram executados pelos esquadrões da morte do ditador, como pudemos ver na Al-Jazeera. Fazer querer que este regime é progressista é uma vergonha. Com um país dilacerado e um exército dividido, os dias de Kadafi estão contados.

Entrevista publicada em Mémoires des luttes, traduzida por Carlos Santos para esquerda.net

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.