domingo, 23 de dezembro de 2012

A luta como a luta é: “Olhar crítico, em apoio aos camaradas na Revolução Egípcia”


9/1/2012, Samer Soliman [1968-2012] [1], al-Shurouk, Egito
Tradução do árabe para inglês por: Industry Arabic
Traduzido do inglês pelo pessoal da Vila Vudu


Issandr El Amrani
No blog Arabist.net - por Issandr El Amrani:  Ao longo das últimas semanas, tópico preferencial das conversas em muitas mesas no Cairo – especialmente nas mesas em torno das quais se reúnem ativistas e envolvidos nas lutas políticas – é o tipo de comemoração a fazer para marcar o primeiro aniversário do levante do Cairo, dia 25/1/2011. Para alguns, será hora para celebrar a derrubada de Hosni Mubarak. No outro extremo do espectro, ativistas mais radicais conclamam a uma “segunda revolução” e à reedição dos eventos de janeiro de 2011, quando, na narrativa revolucionária “o povo derrotou o estado policial”. Novos atores políticos dominantes no Egito – principalmente a Fraternidade Muçulmana – têm tratado muito cuidadosamente a questão das comemorações. Não querem outra onda de protestos, apenas dois dias depois de iniciados os trabalhos do Parlamento que hoje controlam. Querem dar espaço para que se discutam algumas questões, mas, ao mesmo tempo, querem manter tudo sob controle, para o caso de radicais tentarem empurrar as coisas em outra direção.

Divulgo aqui esse artigo, porque me fez lembrar conversa que tive recentemente (numa excelente mesa iraniana – obrigado, P.) com dois destacados lutadores pelos direitos humanos no Egito, ambos preocupados com o fato de vários de seus amigos terem abraçado a teoria revolucionária, estarem tentados a pegar em armas contra o estado, impermeáveis a qualquer argumento que vise a demonstrar que são minoria. No artigo abaixo, o prof. Samer Soliman, que dá aulas na American University of Cairo e é conhecido autor do campo da resistência popular egípcia, discute exatamente essas questões.
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Prof. Samer Soliman
O primeiro aniversário da Revolução é boa chance para todos que participaram dela se reavaliarem e se autocriticarem. Deste ponto de vista, a crítica que faço às posições e ideias de alguns dos meus colegas revolucionários é crítica feita por um camarada, sem traço de superioridade. Meu objetivo é melhorar o desempenho das correntes reformistas e revolucionárias e superar divisões desnecessárias, com vistas a alcançar nosso objetivo comum partilhado: estabelecer um estado baseado na liberdade, na justiça social e na dignidade humana. Minha crítica a alguns dos companheiros está dividida em quatro itens.

Primeiro: Hostilidade absoluta contra todos os partidos e qualquer tentativa de organização é erro fatal.

Política, segundo uma das definições correntes, é a organização e a gestão de interesses coletivos. Cada um é responsável por gerir os assuntos de sua própria casa. Mas gerir os assuntos de um prédio inteiro não é responsabilidade exclusiva de ninguém; é responsabilidade da união dos proprietários, locatários, o que for. Isso é política. Política é uma atividade coletiva que visa a organizar os assuntos do estado e da sociedade. Consequentemente, quem seja contra organizar os movimentos é, às vezes sem perceber, contra a organização política. Se alguém se recusa a organizar-se num grupo ou num partido, como poderá participar de atividade que visa, basicamente, a organizar a sociedade e o estado? Se vocês aceitam organizar-se em pequenos grupos, mas rejeitam absolutamente todos os partidos, também se manifestam contra a política cujo objetivo é conduzir os passos do aparelho do estado. Resultado disso, muitos insistem em se automarginalizar, sob o pretexto de que, assim, estariam mantendo a “pureza da revolução”, protegendo-a contra as manobras partidárias. Sim, a política não depende só de organizações partidárias, e também se baseia em organizações não partidárias, como os grupos de pressão. Mas os grupos de pressão não são alternativa aos partidos. Grupos que defendem a preservação do meio ambiente, por exemplo, pressionam a favor de controlar-se a poluição, sempre em contato com os partidos, trabalhando em cooperação com os partidos, dando-lhes apoio, em troca da promoção de programas que visem a preservar o meio ambiente.

Quem queira agir no mundo político, tem de ser membro de algum tipo de partido que vise a alcançar o poder ou participar do poder; de algum grupo de pressão que não vise a obter poder, mas deseje influenciar as decisões do poder; de um sindicato que defenda os direitos de todos os trabalhadores de determinada profissão, etc. O que importa é que os membros de cada um desses tipos de organização nada podem fazer sem os demais membros e sem os demais tipos de organização; e a verdadeira mudança só surge mediante a integração e alianças que se constituam entre todos esses diferentes tipos de organização.

Segundo: Revolução não significa derrubar o regime logo no primeiro movimento; e revolução não é antônimo de reforma

Em geral ninguém se rebela contra o grupo que monopolize o poder senão depois de se terem esgotado todos os meios graduais de reformas, e as pessoas tenham participado diretamente em revoluções menores, parciais. Diz o povo que revolução é, apenas, reforma falhada. Não há atalho para revoluções totais, instantâneas. Para que o povo levante-se contra o grupo que controla a cúpula do poder, o povo tem de já ter trilhado longo caminho de tentativas de reformas e de rebeliões contra autoridades menores, mais próximas. O verdadeiro revolucionário é quem marcha com o povo, quando é possível reformar. De fato, é dever do revolucionário verdadeiro viver entre o povo, ainda que já esteja convencido de que a possibilidade de reforma seja muito baixa. Só quando se vive entre o povo durante as reformas e as revoluções parciais, menores, é possível pregar a revolução total e convencer as pessoas de que a reforma gradual não é a única via possível. O revolucionário deve preservar sua credibilidade enquanto se vai engajando na revolução; e não deve lançar a palavra de ordem para a derrubada do cabeça do regime sem ter avaliado cuidadosamente as forças relativas que se opõem em campo.

Por isso, os que hoje clamam por nova revolução a ser declarada no próximo dia 25 de janeiro, para derrubar o Conselho Militar, agem como quem não quer ver que há uma Assembleia Popular emergente, que tem muita legitimidade como representante do povo, e que muitos egípcios apostam hoje nessa Assembleia e no novo governo que será formado pelos partidos que recebam a maioria dos votos. Se nada disso acontecer, se o Conselho Militar passar a controlar o Parlamento, o novo governo ou o próximo presidente, ou se o povo vir que as instituições que elegemos não estão assumindo realmente o poder, ou que não estão correspondendo às expectativas, então, sim, será hora de lançar, como palavra de ordem, a derrubada do regime. Antes disso, as manifestações, as lutas, as passeatas e os comícios continuarão a obter vitórias parciais e a atender demandas limitadas, sem visar a derrubar o regime.

O verdadeiro revolucionário anda sempre um passo à frente do povo, não pode estar muitos passos à frente – e longe – do povo. Porque se você põe-se a andar muitos passos à frente do povo, você rapidamente estará sozinho, só você, contra poderes muito maiores que você. Nenhum benefício resultará para a sociedade, se você converter-se em herói solitário, de peito aberto contra o poder.

Seja como for, antes de tentar derrubar o poder, de modo que o poder desabe inteiro sobre sua cabeça, considere atentamente qual a alternativa de poder que haja, se houver. O poder político nada é além do poder para organizar indivíduos e grupos.

O Conselho Militar só passou a ter poder depois da queda de Mubarak, do aparato policial e das forças da Segurança Nacional, porque era a cabeça de uma vasta, ampla organização, muito coesa, que cobria todo o Egito: o Exército. Se derrubarmos o Conselho Militar, que outra organização há, ampla, coesa, que cubra todo o Egito, para assumir o poder? Por favor: que ninguém diga que há oficiais militares honrados fora do Conselho Militar! Já basta de golpes militares e de governos militares!

Terceiro: É errado supor que os mais velhos sejam os inimigos de hoje

A pior coisa que pode acontecer ao movimento revolucionário é perder aliados potenciais e empurrar para o campo inimigo os verdadeiros apoiadores da revolução. Um dos sintomas mais claros da ditadura egípcia era a idade avançada da claque governante (Hosni Mubarak, Fathy Sorour, Safwat al-Sherif, Omar Suleiman, Hussein Tantawi, etc.). Mas a evidência de que o grupo governante era muito idoso é só sintoma da doença, não é a própria doença – é a febre que acompanha a infecção. A idade avançada dos ditadores egípcios não é problema em si: é um dos sintomas do problema.

De fato, a ditadura implantou-se com ditadores jovens no Egito. Nasser e seus companheiros chegaram ao poder quando tinham cerca de 30 anos. Não faltou quem reclamasse, dos “Oficiais Livres”, naquele momento, que eram “quase crianças”. Mas o tempo passou e o mesmo grupo governante lá permaneceu, com pequenas mudanças; os governantes envelheceram – problema que, aliás, a própria ditadura tentou equacionar, mobilizando um grupo mais jovem em torno de Gamal Mubarak, “líder da futura geração”.

Se o filho de Hosni Mubarak tivesse conseguido assumir o lugar do pai e tivesse “rejuvenescido” o poder no Egito, nada teria mudado na realidade da tirania e da ditadura. A gangue corrupta, tirânica, que controla o Egito é multigeracional, inclui velhos, homens de meia idade, jovens e, sabe-se lá, até criancinhas – porque os tiranos educam seus filhos, desde pequenos, para desprezarem o povo, para tratarem com arrogância os mais pobres.

Por isso, também, a corrente que quer livrar-se daquela ditadura e chegar ao poder também tem de ser multigeracional. Pare e olhe em volta: se você vir que todos os membros de sua organização ou grupo têm todos a mesma idade, ou idades muito próximas, comece a desconfiar de que você está insistindo em via errada e seu grupo jamais representará a diversidade de um povo inteiro.

Não tenho dúvidas de que o que perdemos, nessa luta, até agora, perdemos porque grupos monogeracionais são sempre pobres e fracos, porque não se beneficiam das diferenças de competência, de compreensão, de recursos, das organizações multigeracionais.

Quarto: A construção não pode esperar que a destruição seja total e absoluta; e a economia não pode esperar que a revolução esteja completada

A Revolução Egípcia é longa e ampla, e está sendo feita por ondas de ataque e retirada, maré sobe, maré desce, cortando a cabeça da ditadura e pressionando novos líderes que surjam. É normal, assim, que a tarefa de construir instituições coincida com a tarefa de pressionar, protestar, manter ativos os movimentos de rua. Por isso, precisamente, surpreendi-me muito quando perguntei a um revolucionário “Por que você não se liga a um partido político?”. E ouvi, como resposta: “Porque ainda não terminamos de destruir o velho regime!”.

Os partidos são, me parece (ou, pelo menos, alguns deles), uma das ferramentas para, precisamente, destruir o velho regime! O poder não é um prédio que tenha de estar totalmente demolido, terra arrasada, antes que um novo poder possa ser erigido. O poder novo emerge na sociedade, cresce por dentro da sociedade e exerce sua influência em áreas que o poder velho tenha descuidado ou deixado desocupadas. Se se pensa assim, e se se age por essa regra, remover o poder velho é empreitada exequível, é questão de tempo e empenho; e pôr as mãos no aparelho de estado para fazê-lo operar como mais interessa aos revolucionários é, de fato, praticamente inevitável.

Uma das áreas mais importantes para a emergência do novo poder é a economia, assunto que alguns revolucionários têm encarado quase com indiferença, ou descuidadamente; talvez, até, com oportunismo, quando, por exemplo, usam o salário mínimo como slogan na Praça Tahrir na esperança de assim mobilizar trabalhadores e funcionários públicos para as manifestações de rua com vistas a derrubar o Conselho Militar.

Não se mobilizam classes e grupos sociais só com slogans, nem se derrubam governos só com comícios e manifestações de rua. Greves gerais são ferramentas mais potentes para derrubar ditaduras. Mas não se fazem greves gerais sem alto nível de organização da classe trabalhadora e da classe média.

A gloriosa Revolução de Janeiro, no Egito, derrubou décadas de ditadura e de seu aparelho de segurança, foi resultado do trabalho acumulado dos sindicatos, que jamais pararam de lutar, no Egito, durante quase 60 anos. Só colheremos os frutos dessa vitória histórica daqui a vários anos, porque os velhos sindicatos ainda não foram reformados; e os novos sindicatos precisam ainda de vários anos, para acumular força.

O Egito só alcançará democracia política e social mediante uma luta que está apenas começando e durará muitos anos. Nesse período, a destruição virá misturada à construção; a reforma virá ao lado da revolução; e os revolucionários vitoriosos cumprirão, aos poucos, seu trabalho diário, fundacional.

É normal que alguns de nós tendam mais ao trabalho de destruir, que ao trabalho de construir, ou mais à reforma, que à revolução, ou mais às atividades da vitória, que ao trabalho obscuro, calmo, diário, de plantar as fundações do novo Egito. O que realmente fará diferença é que não caiamos no erro de sentirmo-nos uns superiores aos outros. Que não caiamos no pecado de romper com aliados, com camaradas, apenas porque operamos em quadros diferentes de pensamento, ou seguem rota diferente, para chegar ao mesmo objetivo. O objetivo de todos é um só: construir, no Egito, um estado baseado em liberdade, justiça social e dignidade humana.



Nota:
[1] Conheça mais sobre o falecido prof. Samer Soliman, no Al-Ahram Online de 23/12/2012 em: Samer Soliman, prominent academic and activist, dies at 44

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