quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Roberto Azevedo, Diretor-Geral da Organização Mundial do Comércio: “Rússia não será discriminada na OMC”

16/9/2013, Entrevista, Russia Today [vídeo e entrevista traduzida]
Traduzido da transcrição pelo pessoal da Vila Vudu

Entreouvido no frege do Guaxo na Vila Vudu: A entrevista não é nenhuma brastemp. Mas é muuuito mais interessante que qualquer opiniãozinha da Míriam Urubóloga Leitão (MUL) ou dos sardembergs, sobre qualquer coisa. E tem a grande vantagem – sobre tooooda a programação de toooda a imprensa-empresa brasileira – de mostrar (a) um inteligente quadro do governo Dilma, na arena internacional (além de bonitão, apesar do ar liberal-tucano), que tem sido atentamente escondido pela “mídia” brasileira; e (b) que os russos vêm-que-vêm, para ocupar espaços que os EUA estão perdendo, cada dia mais um pedaço.

Roberto Azevedo - Diretor Geral da  Organização Mundial do Comércio

Sophie Shevardnadze
Sophie Shevardnadze: Nosso convidado hoje é Roberto Azevedo, Diretor-Geral da Organização Mundial do Comércio, que acaba de assumir o posto, dia 1/9/2013. Sr. Azevedo, é ótimo tê-lo no nosso programa.
Em seu discurso de posse como diretor-general o senhor disse que a OMC e todo o sistema de comércio multilateral estão numa importante encruzilhada. De fato, diz-se que a OMC passa por grave crise e há quem diga que a organização talvez já não seja viável. O que o senhor pode fazer para mudar isso? Há soluções concretas?

Roberto Azevedo: A verdade é que estamos já nessa situação há muito tempo e é preciso mudar. A OMC existe desde 1995 e desde então não houve sequer um único acordo negociado multilateralmente. Temos de mudar isso. Agora, Bali é uma oportunidade, teremos la, no final do ano a conferência de ministros. Estamos negociando agora um pacote menor – o que não significa que seja insignificante. De fato, é pacote muito significativo, mas em certo sentido é diferente do que fazíamos antes. Assim, esperamos, começará uma outra abordagem que deve dar alguns frutos. Porque temos, não só de colher alguma coisa significativa em Bali, mas, também, abrir uma porta para futuros acordos.

Sophie Shevardnadze: E que diferença haverá em relação ao seu predecessor? Porque ele também dizia que as coisas andavam estagnadas e que ele queria mudar. Mas a verdade é que não conseguiu fazer coisa alguma...

Roberto Azevedo: Agora é a primeira vez que se tenta uma abordagem um pouco diferente de toda a rodada Doha, na OMC. Temos ainda algumas semanas até lá, é uma oportunidade. Estou conversando com os membros, engajando todos, estamos tentando construir alguma confiança uns nos outros. É processo muito pessoal, construir confiança entre os delegados e representantes, numa organização tão grande. Há muito de pessoal nesses contatos. É preciso compreender de onde vem cada um, e acredito que estejamos em posição para fazer alguma coisa. Será extremamente difícil, não há sinais de que seja fácil, mas é possível, é realizável, tenho certeza disso.

Sophie Shevardnadze: Bem... Sobre a rodada de Doha, de que o senhor acaba de falar, são negociações de comércio global que se imaginava que pudessem destruir barreiras comerciais em todo o planeta. No momento, é considerada morta e enterrada. O senhor ainda insistirá nisso?

Roberto Azevedo: Muito francamente, não acho que esteja morta e enterrada. O que vamos fazer em Bali é ainda parte da rodada de Doha, não é toda a rodada de Doha, mas é parte dela. Vamos negociar um pacote parcial que está dentro da rodada de Doha. E tenho esperança de que seremos bem sucedidos em Bali, porque vamos destravar as negociações e talvez, quem sabe, vamos tentar abordar a rodada de Doha a partir de diferentes ângulos, de diferentes perspectivas. Para tentar andar na direção certa.

Sophie Shevardnadze: Se se examina a OMC hoje, o modo como está costurada, não é exatamente uma organização justa – afinal, os que se integram têm de seguir as regras dos membros fundadores, o que põe os países em desenvolvimento, que se vão integrando à organização, em posição de desvantagem. O que o senhor fará para corrigir essa desigualdade?

Roberto Azevedo: O objetivo das negociações é, precisamente, baixar tarifas e criar novas disciplinas que se aplicarão a todos. Acho que os que cheguem posteriormente tiveram de negociar os próprios termos de acesso. Mas essa, francamente, é a regra do jogo. Contudo, depois de os novos membros estarem incorporados, eles negociam em condições de igualdade com os demais membros. Têm os mesmos direitos e negociam condições para a rodada seguinte, para os próximos acordos, os quais, como esperamos, serão acordos aceitáveis também para eles, acordos que eles também poderão ver como o mais equilibrados possível, a cada negociação.

Sophie Shevardnadze: Muitos dizem que os conflitos comerciais estão acentuadamente aumentando nos anos recentes. Por que, na sua opinião, os conflitos aumentaram e o que se pode fazer par reduzir essas tensões?

Roberto Azevedo: Tensões comerciais não são novidade. Existem desde o começo dos tempos, já existiam em 1947. Por isso o sistema da OMC foi concebido. O sistema existe para reduzir aquelas tensões, para permitir que os membros encontrem solução, negociem objetivos aceitáveis para os dois lados. Não faço outra coisa além de negociar desde que cheguei à OMC em 1997, e ao longo desse tempo todo nunca vi, nem um momento sequer, nenhum ano, em que não houvesse tensões.

Sophie Shevardnadze: O senhor está dizendo que não há novidades hoje? Que as tensões não são maiores do que nunca? Que sempre foram o que são hoje?

Roberto Azevedo: Sempre. E, francamente, não há dúvida alguma de que lá estarão, também, sempre.

Sophie Shevardnadze: Mas hoje há também mais e mais organismos regionais em formação pelo mundo, coisas como o Mercosul, a União Europeia, a União Aduaneira de Belarus-Cazaquistão-Rússia, por exemplo. Esses grupos não podem crescer dentro mesmo da OMC? Será o começo do fim da OMC?

Roberto Azevedo: Penso o contrário. Acho que esses grupos ajudam. São grupos que se vão construindo, todos, na direção da abertura do comércio. Esses blocos, grupos, uniões aduaneiras, áreas de livre comércio – não são grupos que introduzam limitações. Claro que, para se organizar, todos têm de aprovar e obedecer a regras, e são regras negociadas multilateralmente, o que assegura que esses blocos, essas áreas de livre comércio não criarão barreiras. Ao contrário, estão baixando tarifas e começam a conduzir os países em direção a ambiente mais aberto.

Sophie Shevardnadze: Mas e quanto ao acordo EUA-União Europeia, que está para ser assinado, acordo de livre comércio, que se diz que será uma alternativa à OMC, porque o novo bloco controlará 30% do comércio global. O que o senhor pensa disso? Qual será a posição da OMC, depois que esse acordo estiver assinado?

Roberto Azevedo: Como qualquer dos demais acordos e blocos, esse também andará na direção da liberalização do comércio. Acho que esses acordos e blocos são muito importantes, porque complementam o sistema do comércio multilateral, mas nenhum deles substitui o sistema multilateral global, por várias razões: são reduzidos, em termos de cobertura, incluem número menor de negociadores, e só podem determinar regras para eles mesmos. Esses blocos não discutirão subsídios, por exemplo. Dificilmente enfrentarão a questão das novas modalidades de protecionismo que estão começando a surgir. Jamais abordarão essas modalidades de protecionismo, no plano global. A OMC pode abordá-las. Os blocos, não. São organizações importantes, são bem vindas, são um passo na melhor direção, mas não podem nem se apresentar nem ser considerados como substitutos para o sistema multilateral de comércio.

Sophie Shevardnadze: O que estou dizendo é que, quando se fala sobre países desenvolvidos, sempre se fala, necessariamente, de EUA e União Europeia. Se esses dois se fundem num bloco, não haverá novo risco de eles imporem novas regras de jogo contra todos os demais?

Roberto Azevedo: Não vejo assim. Nos EUA e na União Europeia, as economias já são muito abertas. O fato de construírem um acordo pelo qual bens e serviços fluirão livremente entre eles não muda muito o quadro geral. O que estão, isso sim, fazendo agora, é negociando regras que mais bem harmonizem as trocas entre esses dois. Isso é positivo, me parece, porque reduz o número de diferenças e de leis que os membros têm de considerar quando vendem seus produtos e serviços uns aos outros. Simultaneamente, isso ajuda a fazer avançar o ambiente das negociações. Quanto maior o número de países trabalhando para liberar o comércio, em negociações desse tipo, mais ajudam todo o sistema de comércio multilateral a andar na mesma direção.

Sophie Shevardnadze: Rússia e Brasil – o seu país – são, ambos, membros da OMC e do clube BRICS das economias emergentes, que também reúne China, Índia e África do Sul. Em que medida, na sua opinião, os BRICS podem continuar a avançar como nova força econômica mundial?

Roberto Azevedo: Já antes, nunca duvidei disso. E mesmo agora, com o mundo desenvolvido começando a se recuperar e voltando a crescer um pouco mais do que antes, os BRICS continuam a ser importantes fatores de crescimento da economia mundial. E não me parece que isso venha a mudar no curto e no médio prazo. Isso, porque, dentre outras razões, são economias que se desenvolvem, que incorporaram grandes números de pessoas na economia formal. Esse fenômeno não mudará em futuro previsível. Mas isso, não porque tenham constituído grupo fechado, à parte. De fato, estão apenas começando a ser parte de uma economia global mais globalmente integrada.

Sophie Shevardnadze: Já que falamos de Rússia, o país integrou-se recentemente à OMC, há pouco mais de um ano. O fato de a Rússia ter-se integrado à OMC acrescentou muito, num nível global de comércio?

Roberto Azevedo: A Rússia é economia muito importante no mundo, e seria estranho e indesejável que uma organização do tamanho da OMC, e que procura a universalidade, operasse sem a contribuição da Rússia. É claro que vejo a integração da Rússia como desenvolvimento bem-vindo, para a organização e para a economia mundial. O fato de a economia russa integrar-se às regras que se aplicam globalmente a todos os estados-membros da OMC garante previsibilidade nas negociações, um campo nivelado de negociações para todos. Claro que é desenvolvimento muito bem vindo.

Sophie Shevardnadze: Houve dificuldades, dentro da OMC, por causa da integração da Rússia?

Roberto Azevedo: Não, de fato. Acho que sempre que uma grande economia integra-se ao grupo, há um período de acomodação, de ajustes, como aconteceu, por exemplo, quando a China integrou-se. Os anos imediatamente depois da a China integrar-se à OMC foram anos de acomodação. Acho que se construiu um melhor entendimento. As partes se testaram, para ver onde estava cada uma. Conversaram, estavam descobrindo áreas de interesses comuns e também, como é normal, áreas de desacerto e desentendimento. É normal e acontecerá também no caso da Rússia e no caso de outras economias significativas que também se incorporem à OMC.

Sophie Shevardnadze: Na sua avaliação, o que a Rússia ganhou por integrar-se à OMC, considerando o atual estado da economia russa e as coisas como estão na OMC, nesse momento?

Roberto Azevedo: O principal ganho para a Rússia e que já não está exposta a discriminação. Se alguém, por exemplo, tentar impor medidas protecionistas ou alguma medida que impeça produtos russos num ou noutro território, tudo terá de ser feito pelas regras da OMC. Antes, não era assim. Houve ações unilaterais e discriminatórias contra produtos russos, no passado. Agora, caso haja, a Rússia tem meios para impor as regras globais e, eventualmente, sanções contra o protecionismo. Não tenho dúvidas de que a Rússia terá muito a ganhar com a incorporação à OMC e será dos maiores beneficiários do sistema.

Sophie Shevardnadze: Há uma pergunta que anda na cabeça de muitos russos há algum tempo. Há quase 20 anos a Rússia tentava ser admitida como membro da OMC, sem sucesso. E então, de repente, é aceita, sem que nada, de fato, tenha mudado na economia russa. O que, precisamente, tornou possível a integração da Rússia? O senhor pode explicar aos nossos telespectadores?

Roberto Azevedo: Trata-se sempre de negociação entre os membros, e essas negociações exigem tempo. As razões pelas quais uma determinada nova admissão amadurecem variam de caso a caso. No caso da Rússia foram negociações longas, que só agora amadureceram, e houve vontade política dos membros e da Rússia, para levar as negociações a bom termo. A vontade política é elemento muito importante nas negociações de acesso, e também pesou no caso da Rússia. Entendo que foi o fator chave que permitiu que o acesso fosse concluído com sucesso.

Sophie Shevardnadze: A OMC imporá várias regras à Rússia, nos próximos anos. Na sua opinião, que impacto terão na economia russa e no povo russo?

Roberto Azevedo: Não sei dizer-lhe, mas tenho certeza de que será impacto positivo.

Sophie Shevardnadze: E sobre a crise econômica de 2008 – que realmente assustou a economia global em praticamente todos os níveis. Que conclusões foram extraídas dessa experiência dramática? Há providências a tomar, já previstas, para o caso de aquela situação repetir-se?

Roberto Azevedo: De fato, e essa é precisamente a razão pela qual os membros do G-20 estão reunidos aqui em São Petersburgo, em nível de chefes de Estado. Trata-se, precisamente, de impedir que esse tipo de situação se repita. No que tenha a ver com o sistema multilateral de comércio, me parece, provou-se que a OMC pode ser efetiva, por exemplo, barrando as tendências protecionistas. Depois de 2008, o medo era que se repetisse o que aconteceu em 1930s, quando se implantaram medidas protecionistas que, no final do dia, mudaram completamente o cenário e levaram a aprofundar a Depressão econômica em todo o mundo. Dessa vez, isso não aconteceu. Entendo que uma das razões pelas quais não aconteceu se pode encontrar nas regras da OMC, que impediram os estados-membros de introduzir abertamente fortes medidas protecionistas.

Sophie Shevardnadze: Mudança recente na política do American Federal Reserve levou a desvalorizações fortes da moeda em muitos mercados emergentes. Como o senhor sabe, esse verão o real brasileiro caiu 20%, e o mesmo se viu com a rúpia indiana e a lira turca. Houve aumento de bens importados nesses países. Onde fica a OMC, quando surgem problemas como esse?

Roberto Azevedo: Não é coisa rara. Esses problemas estão sempre acontecendo – a valorização e desvalorização de moedas são questões permanentes. A OMC tem regras, que não são perfeitas para, de modo especial, questões de moedas, mas que permitem que os membros ajam para melhorar a situação, ou as assimetrias que haja, de tempos em tempos. Entendo que o momento atual não é excepcional, porque não é a primeira vez que o valor relativo de moedas sobe ou desce.

Sophie Shevardnadze: Mas e se políticas como a do Fed levarem a instabilidades nesses países cujas moedas sejam afetadas – como se viu em países árabes, quando os preços subiram demais, depois que os EUA começaram a injetar muito dinheiro na economia, em 2008, e os cidadãos naqueles países já não conseguiam comprar nem comida, supuseram que fosse resultado de ação dos respectivos governos e dispararam os levantes da Primavera Árabe? Que objetivo teria a OMC, mais importante que manter algum equilíbrio global?

Roberto Azevedo: A OMC não age por ela mesma. A ação política e econômica é sempre dos estados-membros. Se os membros sentem que algum outro estado está tomando medidas que afetem sua economia ou sua capacidade comercial, cabe a cada um consultar a OMC, para que interpele o outro membro, para que explique as próprias dificuldades; e a OMC pode, assim, tentar encontrar uma solução mutuamente satisfatória. Não sendo isso possível um acordo, acionam-se os mecanismos de uma disputa, nos termos que a OMC prevê. Mas em todas essas instâncias, são os estados-membros que votam e decidem que medidas tomar. A OMC não tem mandado para agir como instituição, por sua conta.

Sophie Shevardnadze: A Ásia também está tendo papel crucial na economia mundial em anos recentes. A Ásia também tem papel semelhante dentro da OMC? Pode também assumir a liderança, na sua avaliação?

Roberto Azevedo: Sem dúvida é uma das áreas economicamente mais dinâmicas do mundo, os mercados asiáticos reunidos na APEC, por exemplo, que é em grande proporção organização asiática, e um dos principais fóruns de discussão. Entendo que a Ássia é hoje um dos principais eixos da economia mundial e das principais forças nos fóruns da governança mundial, inclusive na OMC.

Sophie Shevardnadze: E a África, outro continente emergente, em termos de economia. O que o senhor vê acontecendo na África? Onde haverá mais crescimento e quem lucrará com ele?

Roberto Azevedo: O continente africano é extremamente diversificado. Há oportunidades para o crescimento, há oportunidades para investimentos e há oportunidades para ampliar o comércio no próprio continente. A instabilidade política é fator importante em muitas ocasiões, mas não só isso. É preciso que os estados africanos criem condições que lhes permitam participar mais intensamente nos fluxos comerciais mundiais. Esse processo varia de estado para estado. É sempre difícil falar sobre a África, sem considerar a específica situação de cada país africano.

Sophie Shevardnadze: E quanto à América Latina? Quais, em sua opinião, são as questões chaves que atormentam aquele continente?

Roberto Azevedo: Penso que a América Latina está bem posicionada para colher benefícios do crescimento mundial. Muitos exportadores chaves são latino-americanos, sobre tudo de mercadorias não-petróleo, mas também de petróleo. A América Latina já é continente maduro, com países que seguem diferentes vias, alguns já mais integrados na economia mundial, os de economia mais aberta, que podem participar mais intensamente dos fluxos comerciais globais, e esses estão-se saindo muito bem.

Sophie Shevardnadze: Para encerrar, Sr. Azevedo, qual é hoje a sua maior esperança, o que o senhor consideraria sua maior realização e seu legado, depois que deixar o cargo de diretor-geral da OMC?


Roberto Azevedo: Trabalho na construção de negociações comerciais já há muito tempo. Comecei na OMC em 1997, quando a organização só tinha dois anos de existência. Durante parte desse tempo, vi a negociação comercial internacional viver melhores dias que hoje. Minha esperança é que possa deixar o meu posto, com uma OMC mais vibrante e ativa, como ela já foi, devolvida à importância que já teve, como mesa de negociação à qual os países acorrem para negociar e para abrir cada vez mais os contatos comerciais.

[Fim da entrevista]

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