10/9/2013, [*] M K
Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Kerry mostra o tamanho do monte de... maçãs que ele colheu... |
Não
é fácil atacar militarmente país muito distante. Pior, se feito em câmara lenta.
E a parte mais difícil das acrobacias diplomáticas dos EUA, na propaganda para
promover os ataques contra a Síria, cabem ao Secretário de Estado, John Kerry.
Mas o estresse está cobrando seu preço e já parece indubitável que, afinal,
Kerry será o primeiro dano colateral de algum ataque militar dos EUA contra a
Síria.
Por
mais, ou menos, que o ataque consiga (ou não) debilitar as forças armadas da
Síria e reduzir suas capacidades militares, as capacidade de Kerry para
continuar como Secretário de Estado do presidente Obama já foram seriamente
“degradadas”. Ainda restam três anos inteiros de presidência a Obama, e três
anos, em política, é muito tempo.
De
fato, a credibilidade de Kerry como mais graduado diplomata dos EUA está sob
grave escrutínio. A parte triste é que Kerry talvez nem mereça isso, numa
carreira brilhante na vida pública, porque não é novato do mundo da diplomacia
internacional. Mas a tragédia de Kerry foi ter sido encarregado de defender o
indefensável.
Três
gafes gravíssimas, no curto espaço de uma semana, é terrível para o currículo de
alto diplomata, em quaisquer circunstâncias. Começou semana passada, no
depoimento à Comissão de Relações Exteriores do Senado, quando, sem mais nem
menos, Kerry disse que a resolução do Congresso na Autorização para Uso de Força
Militar contra a Síria não deveria proibir expressamente o uso de soldados –
“coturnos em solo”.
Chuck Hagel passando "cola" para John Kerry |
A
lógica de Kerry não era ruim. Afinal, podem surgir necessidades novas em
qualquer guerra, e a doutrina militar dos EUA prescreve o emprego de força
máxima para aniquilar qualquer inimigo. Ruim foi o modo de dizer, que
praticamente convocou para dentro daquele salão todos os fantasmas da
Mesopotâmia e do Hindu Kush.
Ante
a reação dos senadores, Kerry provavelmente percebeu – o Secretário de Defesa,
Chuck Hagel, sentado ao seu lado, passou-lhe um papel no qual rabiscara “?” – a
própria gafe.
Depois
se seguiram duas subgafes para encobrir a gafe original. Kerry acrescentou que
descartava a possibilidade de pôr “coturnos” na Síria em missões de combate ou
envolvidos na guerra civil. Ora! E por que seriam necessários os tais “coturnos
em solo” em país independente e soberano, se não para reagir a alguma forma de
agressão?
Putin de olho nas "gafes" de John Kerry |
Kerry
percebeu que tinha de explicar a subgafe. Então... saiu-se com uma espantosa
confissão, de que estaria apenas “pensando em voz alta”, quando dissera que a
opção “coturnos em solo” não deveria ser expressamente rejeitada no texto final
da autorização do Congresso.
Kerry
acrescentou então, rapidamente, que, afinal, era só uma questão de palavras, e
que confiava no talento verbal dos nobres congressistas para fazerem crer que se
opõem totalmente ao envio de soldados norte-americanos à Síria, mas de tal modo
que deixassem espaço suficiente para que Obama pudesse mudar tudo, no caso de a
“ação limitada” de Obama converter-se em guerra total para mudança de
regime.
A
segunda gafe de Kerry teve a ver com o problema da al-Qaeda na Síria. Kerry
manifestou confiança de que a oposição “moderada” seria a força principal na
Síria, e que os grupos da al-Qaeda não passariam de coadjuvantes. Estimou que os
combatentes islamistas fanáticos não passariam de 15% do exército
“rebelde”.
Claro
que não convenceu os senadores que leem jornais e veem televisão, mas os
senadores foram polidos. Nada polido, porém, foi o presidente Vladimir Putin:
disse imediatamente que Kerry estava “mentindo”, porque o problema da al-Qaeda
na Síria havia sido séria e longamente discutido entre Moscou e Washington, e
Kerry sabia muito bem disso.
Margaret Brennan |
Kerry,
claro, optou por fazer-se de desentendido. Mas tudo isso se juntou e virou um picnic quando, na 2ª-feira, ele pôs
abaixo qualquer estratégia que Obama tivesse para a guerra na Síria, com
espantosíssima declaração pública, ao responder a pergunta capciosa de uma
jornalista da CBS, Margaret Brennan, sobre se haveria meio pelo qual ainda seria
possível evitar um ataque dos EUA à Síria. Eis o que Kerry
respondeu:
Claro
que há. Se ele [Assad] entregar todas as suas armas químicas à comunidade
internacional, semana que vem. Entregue. Entregue tudo, sem demora, e permita
plena e total transparência. Mas ele não fará isso, não pode ser feito,
obviamente.
Em
horas, já era o inferno. A alta voltagem do drama foi belamente capturada pelo
conhecido romancista nigeriano-norte-americano Teju Cole (autor de Open City),
que tuitou:
Kerry:
Não atacaremos, se vocês fizerem essa coisa impossível./Syria: Oh... OK,
faremos./Rússia: Eles farão./ONU: Farão./Kerry: Mas que
merda!
Desde
então pipocaram todos os tipos de teorias conspiracionais – inclusive de um
plano secreto Rússia-EUA para ajudar Obama a escapar com elegância de ter de
atacar a Síria. Mas a simples e honesta verdade é que Kerry cometeu mais uma
gafe, e, dessa vez, a coisa ganhou vida própria.
Sergey Lavrov |
O
Ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov (o qual, vale lembrar,
joga
hockey
no gelo) saltou num segundo, sobre Kerry, e tomou-lhe o
puck:
Nós
[a Rússia] não sabemos se a Síria concordará, mas se pôr as armas químicas sob
controle internacional ajuda a evitar ataques militares, nós já começamos a
trabalhar sobre essa possibilidade.
Estamos
entrando em contato com as autoridades sírias para definir termos de um acordo,
para não só entregar os arsenais químicos a controle internacional mas, também,
para que sejam subsequentemente destruídos, e para que a Síria se una à
Organização para Proibição de Armas Químicas.
Já
entregamos proposta nesse sentido ao Ministro de Relações Exteriores da Síria,
Walid al-Muallem, que felizmente está em Moscou, e esperamos resposta rápida e
positiva.
Walid al-Muallem |
Muallem,
claro, nem se deu ao trabalho de consultar Damasco:
Ouvi
atentamente o que disse o ministro Lavrov. Declaro que a Síria, movida pela
preocupação com preservar a vida dos sírios e a segurança do país, aceita a
iniciativa russa.
E
nem se pode dizer que Rússia e Síria estivessem tirando vantagem da diferença de
horário entre Washington e Londres (de onde Kerry falou): David Cameron também
foi “enrolado” na gafe de Kerry. O Primeiro-Ministro britânico também disse que
o excelente plano russo, de pôr as armas químicas sírias sob controle
internacional, era “imensamente bem-vindo”.
Nem
bem o pessoal em Washington soube da oferta de Kerry, do plano russo e da
resposta da Síria, começou a operação “abafa”. A porta-voz do Departamento de
Estado, Marie Harf disse que o chefe dela falara “hipoteticamente” e “só
retoricamente” e jogou água fria no plano russo, que seria “altamente
improvável”. Esclareceu também que “o secretário [Kerry] não fez proposta
alguma”.
Jay Carney |
O
porta-voz da Casa Branca, Jay Carney estava, pode-se dizer, em visível
desespero, na coletiva diária com jornalistas; prometeu dar “uma boa olhada” na
proposta, ao mesmo tempo em que já dizia que tudo aquilo só fora possível por
causa da ameaça real de um ataque militar à Síria feita por Obama; e que, assim
sendo, ele, Carney, aconselhava o Congresso a prosseguir na votação da
autorização para a guerra, como se nada tivesse acontecido [pouco depois, o presidente do Senado
suspendeu a votação (NTs)].
Não
há dúvidas de que a Casa Branca já sabia que Kerry, inadvertidamente, rompera a
aura do esperado discurso de Obama na 3ª-feira à noite, e fechara qualquer
possibilidade de o Congresso aprovar coisa alguma.
Hillary Clinton |
Nada
pode ser pior que o antecessor de alguém num cargo ter de re-assumir o comando,
para remendar erros do “atual”. Pois foi o que a ex-secretária de Estado Hillary
Clinton teve de fazer, ao sair de uma reunião com Obama:
Se
o regime sírio entregar imediatamente seus estoques ao controle internacional
como sugeriram o secretário Kerry e os russos, será passo importante. Mas que
não seja mais um pretexto para adiamento ou obstrução.
A
lógica simplória de Clinton é a seguinte: a Síria pode ir em frente e entregar
seus estoques em uma semana, se quiser, o que, de qualquer modo é logisticamente
impossível de executar; mas mesmo assim os EUA insistirão no plano de guerra,
porque é o que nossos parceiros sauditas desejam.
Essa,
pelo menos, não mentiu: a questão das armas químicas não passa de álibi para a
intervenção militar norte-americana, nunca foi a razão principal. Bastaria que
Kerry conseguisse entender essa simples verdade.
Ban Ki-moon |
As
coisas viraram total confusão em Washington. Em curso normal, se tomariam
providências para que, nesses dias tormentosos, o Secretário-Geral da ONU já
estivesse instruído sobre o que dizer. Também não deu certo. Nesse caso, Ban
Ki-moon já se manifestara e falara o mais firmemente possível contra ataque
militar dos EUA à Síria, na recente reunião do G-20 em São Petersburgo.
E,
depois do anúncio feito por Lavrov ontem, Ban disse que estava “considerando a
possibilidade de convocar o Conselho de Segurança da ONU e exigir a imediata
transferência das armas químicas e estoques químicos precursores para locais, no
território sírio, onde possam ser armazenados em segurança e destruídos”, se
ficasse provado que se usaram armas químicas.
Para
Obama é xeque e xeque-mate. Mas Obama é ágil com as palavras. E o discurso que
fará hoje à noite ao país, no qual se espera que apresente o melhor argumento
que tenha a favor de ataque militar contra a Síria, promete ser um
clássico.
_______________________
[*] MK Bhadrakumar foi
diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União
Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão,
Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Irã,
Afeganistão e Paquistão e escreve
sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais The
Hindu, Asia Times Online e
Indian Punchline. É o filho mais
velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e
militante de Kerala.
Comentário enviado por e-mail e postado por Castor
ResponderExcluirO Gato Filósofo da Vila Vudu ainda não está festejando é "poooorra niuma" (cito literalmente)
"Tudo muuuuuito bonito..." -- diz ele.
Realmente, até aqui, é grande vitória diplomática dos russos. É exposição universal da imbecilidade do governo dos EUA. E é imensa vitória da opinião pública antiguerra nos EUA e em todo o mundo. Mas é só por hora, porque NADA está decidido.
O Gato Filósofo só faz repetir pelos cantos, emburradíssimo: "Assad (e, aliás, também o tal de Obama e o tal de AIPAC) deveM estar lembrando que Gaddafi também entregou as armas químicas que tinha, em 2003 (http://www.commondreams.org/headlines03/1220-08.htm). E acabou como acabou.
Atento e atilado como o nosso Gato Filósofo cá da Vila Vudu, Putin hoje, JÁ APONTOU diretamente para o nó da questão. Vejam aí:
_______________
Putin: “Controle internacional sobre armas sírias, só se EUA desistirem do ataque” (Excerto)
10/9/2013, Voice of Russia –
http://voiceofrussia.com/news/2013_09_10/Putting-Syrian-chemical-weapons-under-intl-control-makes-sense-only-if-US-drops-plans-to-use-force-Putin-6664/
“Claro, tudo isso faz sentido, sim, e pode funcionar. Mas só se houver confirmação de que os EUA e todos os que apoiam os EUA na direção da guerra desistiram de usar a força” – disse Putin hoje em Moscou. E continuou: “É difícil conseguir que qualquer país, a Síria ou qualquer outro, aceite desarmamento unilateral, se se sabe que se arma ação bélica contra o país. Os russos trabalharemos juntos com os sírios e com nossos parceiros norte-americanos” – prosseguiu o presidente. – “Quero reiterar que espero que esse seja um bom passo na direção de solução pacífica para a crise”.
VV