terça-feira, 10 de setembro de 2013

É hora de revelar o que a inteligência dos EUA sabe sobre a Síria

9/9/2013, [*] Ray McGovern, Info. Clearing House e Consortium News
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Denis McDonough e Barack Obama
Se o Chefe de Gabinete da Casa Branca, Denis McDonough, não estivesse trabalhando a favor de mais uma guerra baseada no que muito parecem ser novas mentiras, seria o caso de ter pena dele, depois de suas várias aparições na televisão ao longo de todo o domingo, argumentando a favor de um ataque militar à Síria. O serviço pouco invejável acabou recaindo sobre McDonough, forçado a substituir as duas escolhas mais naturais para promover o plano do governo Obama de guerra “limitada” contra a Síria.

Susan Rice
Uma das escolhas óbvias teria sido a Conselheira para Assuntos de Segurança, Susan Rice, mas sua reputação e confiabilidade ficaram gravemente arranhadas, depois que ela passou outro domingo, dia 16/9/2012 falando pela TV, e só fez dizer mentiras sobre o ataque contra a “missão” dos EUA em Benghazi, Líbia.

Um segundo candidato natural teria sido o Diretor da Inteligência Nacional, James Clapper, mas esse já admitiu que disse coisas “claramente erradas” em depoimento sob juramento ao Congresso, sobre a captura de dados telefônicos de cidadãos norte-americanos.

James Clapper
Clapper também ficaria exposto a ter de responder perguntas embaraçosas sobre por que o documento “Avaliação do Governo dos EUA sobre o Uso de Armas Químicas pelo Governo da Síria, dia 21/8/2013” [orig. “Government Assessment of the Syrian Government’s Use of Chemical Weapons on August 21, 2013”] foi distribuído pela Casa Branca, não pelo Departamento de Inteligência Nacional – o que sugere fortemente que o documento não tem o aval de toda a comunidade de inteligência dos EUA.

Comentando a curiosa origem da “Avaliação”, Gareth Porter diz que o documento parece ser produto político da Casa Branca, não uma avaliação profissional produzida por agências de inteligência. E, tentando fazer crer que o documento teria o imprimatur da comunidade de inteligência dos EUA, a Casa Branca usou-o para afastar preventivamente qualquer pergunta do Congresso sobre quem, afinal, de fato, foi realmente responsável pelo incidente químico de 21/8 num subúrbio de Damasco.

Como Porter escreveu:

Gareth Porter
Induzir os membros do Congresso a crer que o documento seria avaliação redigida pela comunidade de inteligência e que representaria, portanto, quadro confiável do que os EUA sabem sobre o ataque químico de 21/8, foi elemento crucial, para dar base ao que o governo Obama dizia a favor de guerra contra a Síria.

Se você estivesse na Casa Branca, você também não quereria que Clapper tivesse de responder a qualquer pergunta sobre quantos analistas de inteligência dos EUA não estão convencidos de que o presidente sírio teria lançado ataque intencional com armas químicas, nem de que o presidente Bashar al-Assad teria sido responsável pelo ataque. É claro que não.

A mídia repete a versão

Candy Crowley
Diga-se a favor dele, que o simpático McDonough não perdeu a elegância, enquanto lutava para fazer o que gente como Candy Crowley da CNN estava ali para ajudá-lo a fazer. De fato, repetiu o mantra decorado melhor que Sócrates, o sofista, em pessoa, dedicado a fazer “o pior argumento soar como se fosse o melhor”. Mas o que disse nada tinha a ver, nem com a lógica, nem com a verdade. Por exemplo, McDonough declarou que:

Ninguém discute a inteligência que temos, o que torna claro – e temos plena confiança nessa informação – que em agosto o regime Assad usou armas químicas contra seu próprio povo. Um ex-presidente do Irã já sugeriu que acredita nisso. O mundo inteiro acredita nisso. Estamos conversando com o Congresso sobre isso, nesse momento. Assim o Congresso (...) tem uma oportunidade, essa semana, de responder uma pergunta simples: deve haver alguma consequência contra Assad, por ter usado aquele material?

François Hollande
Fácil detectar a hipérbole na premissa maior (“o mundo inteiro acredita nisso”), quando todos sabem que o mundo inteiro não acredita nisso. A menos que McDonough já tenha varrido do mundo real muitos congressistas, milhões de norte-americanos médios e significativo número de líderes mundiais. Até o presidente François Hollande, da França, principal parceiro dos planos de guerra dos EUA, quer esperar para saber o que concluirão os inspetores da ONU.

Mesmo assim, desde que John Kerry, dia 30/8, pôs-se a fazer propaganda da “Avaliação”, o governo Obama não faz outra coisa além de exigir que todos aceitem a tal “avaliação” como se fosse verdade revelada, e passem imediatamente a discutir as “consequências” contra o mal feito.

De fato, alguma alma honesta que participou da redação daquele texto, insistiu em inserir ali uma réstia de dúvida: “Confiamos que nossa avaliação é a afirmação mais sólida que a Comunidade de Inteligência dos EUA pode ter à guisa de confirmação” (negritos meus). Esse palavreado é conhecido como “saída de emergência”, expressão usada por analistas que já prevejam que ainda podem surgir novas evidências que contradigam a conclusão.

Mas a humilde escapatória não compromete o objetivo superior da “Avaliação” – varrer quaisquer dúvidas sobre a precária e insuficiente inteligência reunida, e ao mesmo tempo manter em segredo todas as supostas provas que haja, impedindo qualquer exame direto de qualquer prova.

Porém – surpresa! Surpresa! – essa velha tática mostrou-se muito efetiva com grande número de jornalistas da imprensa-empresa nos EUA, como se viu na resposta que a âncora Candy Crowley imediatamente acrescentou ao que McDonough acabava de dizer: “Porque todo mundo acredita”.

Vamos com calma! Devagar com o andor!

A “prova” empírica que McDonough tinha a oferecer no domingo nada era além do que ele chamou de “senso comum”, “porque” Assad tem de ser responsável pelos ataques! McDonough disse a Crowley que:

Se temos provas, acima de qualquer dúvida razoável? Ora! Não estamos num tribunal, e a inteligência não funciona assim!

É como se estivéssemos de volta aos dias de Cheney/Bush, de “inteligência baseada em fé”, quando “a ausência de prova não é prova de ausência”. Antigamente, a análise de inteligência confiava, primeiro, em dados empíricos. O “senso comum”, sobretudo quando deformado sob intensas pressões políticas, nunca deu conta do serviço.

Ali A. Rafsanjani
Nem os analistas de inteligência alinham-se e aceitam algum indício como verdadeiro, só porque muita gente creia que seja verdadeiro – sequer quando alguma opinião aparece confirmada por “um ex-presidente iraniano”. McDonough referia-se a uma frase muito controversa, atribuída a Akbar Hashemi Rafsanjani: pode ter sido a primeira vez na história, que um representante do governo dos EUA usou, como fonte de informação confiável, sobre qualquer coisa, palavras de um ex-presidente... do Irã!

Mas agora, com o governo dos EUA decidido a ir à guerra, já recorrem a qualquer coisa para “provar” o que dizem, por frágil e movediça que seja a “informação”.

Como McDonough sabe muito bem, a formidável tarefa do governo Obama nos próximos dias é convencer membros do Congresso de que têm de aceitar essa “sabedoria convencional” que o governo está invocando, ou ficarão contra algo em que “todo mundo acredita”. Mas, dessa vez, “todo mundo” que assistiu aos programas de entrevistas de TV no domingo à noite já está vendo que, como vão as coisas, o argumento não funcionará.

O carnaval de briefings ao Congresso começou dia 31/8, quando o presidente Barack Obama, que pedira ao Congresso autorização para ataque militar contra a Síria, percebeu que a operação não estava obtendo a adesão de qualquer maioria sólida e, de fato, parecia ter sido contraproducente.

Mike Rogers
O presidente da Comissão de Inteligência da Câmara de Representantes, Mike Rogers, R-Michigan, forte apoiador de ação militar contra a Síria, disse que via “muito claramente” que o presidente perdera apoio durante a última semana (quando os Congressistas começaram a voltar à capital, muitos deles com a cabeça cheia do que ouviram diretamente de seus eleitores durante as férias, e congressistas de todos os partidos, de eleitores que se opõem a mais uma guerra).

Simultaneamente, o próprio caso contra o presidente Bashar al-Assad da Síria parece estar rebentando em todas as costuras, como se vê em comentário do presidente da Comissão de Serviços Armados da Câmara, Buck McKeon, R-Califórnia, e que nunca promoveu paz alguma, em toda a sua vida:

Eles ainda não conseguiram ligar [qualquer prova de ter usado agente químico] diretamente a Assad. É minha opinião.

Justin Amash
Outro Republicano, Justin Amash, Michigan, acrescentou:

A prova não é tão forte como andam dizendo o presidente e o governo. Há coisas maquiadas nas declarações oficiais (...). Tantos briefings só fizeram aumentar as minhas dúvidas.

Olhar incrédulo

Mesmo alguns Democratas que inicialmente haviam optado por cega devoção ao presidente – para escapar às chicotadas da Líder da Minoria da Câmara, Nancy Pelosi e seus aderentes – parecem estar repensando posições.

Nancy Pelosi
Em discussão que tive com um congressista “progressista” da Virgínia do Norte, no sábado à noite, já estava bem claro que ele pode vir a arrepender-se de ter aceitado beber da fonte da Casa Branca, viesse o que viesse. Recebi olhar incrédulo, quando disse a ele que a “inteligência”, mais uma vez, estava sendo “ajeitada para caber na política”.

Verdade é que, segundo a Associated Press, muitos funcionários dos EUA declararam que a inteligência que ligaria Assad diretamente aos ataques de 21/8, “não é uma enterrada” – referência, ao contrário, ao que disse o então diretor da CIA, George Tenet, em 2002, que a “inteligência” dos EUA seria “uma enterrada” e provaria convincentemente que, sim, o Iraque tinha armas de destruição em massa.

Os que não se deixaram ainda convencer pelo caso construído pelo governo Obama citam não só a falta de provas que liguem Assad diretamente ao incidente do dia 21/8, mas, também, inúmeras questões ainda não explicadas sobre o próprio ataque, em si, de armas químicas.

John Kerry
Confrontado, em Londres, nessa 2ª-feira, com uma pergunta sobre a responsabilidade pessoal de Assad, no caso de forças do governo terem lançado aquele ataque, o secretário de Estado, John Kerry pareceu reconhecer, implicitamente, que não há prova alguma contra Assad. “O regime Assad é o regime Assad” – ele protestou; e acrescentou que [Kerry] sabe que informações sobre os resultados do ataque químico foram passadas “diretamente a Assad”.

A lógica de Kerry não é lógica: é um buraco. O fato de Assad ter sido informado sobre o incidente, depois de acontecido, não significa que ele, ou alguma autoridade militar próxima a ele, tenha ordenado o ataque. Se aconteceu alguma liberação acidental de agentes químicos, ou se foi ação intencional de provocação dos “rebeldes” abastecidos pelos sauditas, evidentemente Assad teria de ser informado sobre o ocorrido.

Outra questão complexa levantada pela Associated Press, é a revelação de que a inteligência dos EUA perdeu o rastro de um carregamento de armas químicas na Síria e já não sabe com segurança quem controla os arsenais químicos; [1] assim se abre a real possibilidade de que os “rebeldes” tenham obtido substâncias letais, roubadas dos arsenais do governo.

Uma escapatória para Obama

Alan Grayson
Assim, ao contrário da certeza de Denis McDonough e Candy Crowley de que “todo mundo acredita” na acuidade do caso que o governo dos EUA construiu contra o regime de Assad, há, isso sim, membros do Congresso, cidadãos norte-americanos médios e muita gente em todo o mundo que não comprou o que o governo Obama anda oferecendo, como liquidação.

Congressistas, como o deputado Alan Grayson, D-Flórida, e o presidente da Rússia Vladimir Putin e o presidente sírio Bashar al-Assad, estão exigindo que a Casa Branca divulgue qualquer prova aproveitável que associe Assad e seu governo aos ataques químicos de agosto perto de Damasco.

O governo Obama tem citado “fontes e métodos” como desculpa para não divulgar suas provas, mas já várias vezes no passado presidentes dos EUA reconheceram a necessidade de deixar de lado o sigilo, para explicar ação militar.

Como disse o veterano analista sênior da CIA, Milton Bearden, há ocasiões em que se causa mais dano à segurança nacional dos EUA por “proteger” fontes e métodos, do que por revelá-los. Por exemplo, Bearden lembra que Ronald Reagan divulgou inteligência sensível, para convencer o mundo sobre a importância de os EUA atacarem a Líbia, em retaliação contra o atentado, dia 5/4/1986, da discoteca La Belle Disco em Berlin Ocidental, no qual morreram dois norte-americanos e uma mulher turca, e houve 200 feridos, entre os quais 79 soldados norte-americanos.

Escombros da LaBelle Disco Club em 5/4/1986/
Mensagens interceptadas entre Trípoli e espiões na Europa não deixavam qualquer dúvida de que a Líbia era responsável pelo atentado. (...) No ataque norte-americano a Trípoli e Benghazi, morreu uma menina de 15 meses, filha adotiva de Gaddafi, além de 15 civis.

Milton Bearden
Há trinta anos, ainda havia algum sentimento de vergonha nos EUA pela morte de uma menina, de fato, ainda um bebê. O horror mundial cresceu contra os ataques norte-americanos, e Reagan teve de mostrar as mensagens capturadas pelos espiões em Berlim, que comprovavam que o governo líbio era, sim, responsável pelo atentado à discoteca (...). 

Embora nem todos se tenham seduzido pelo argumento para justificar retaliação, muitos, sim, acabaram por aceitar que teria havido, pelo menos, alguma causa para tanta violência.

Hoje, também, o governo dos EUA enfrenta o ceticismo internacional, que absolutamente não acredita no que diz o governo Obama sobre a Síria – sobretudo depois da amarga experiência da invasão do Iraque baseada em inteligência forjada. O governo Obama pode continuar a fingir que não há ceticismo, mas é evidentemente um subterfúgio, uma falsidade, que mina ainda mais a credibilidade dos EUA.

Se há prova conclusiva da cumplicidade de Assad, como o governo Obama diz que há, a única via respeitável é distribuir a informação real, o que muito ajudaria a reduzir a preocupação de que os EUA acabem por bombardear o lado errado.

Porém, se o governo insistir na estratégia em defender a guerra, sem provas, no Congresso, a Casa Branca só fará alimentar as desconfianças, no Congresso e por toda a parte, de que as “provas” contra Assad ou não existem ou são fracas demais.

Jim McGovern
Se, por alguma razão, o governo Obama não quiser mostrar suas cartas reais, pode pelo menos ouvir o conselho que lhe deu o deputado Jim McGovern, D-Massachusetts, no domingo, pela CNN:

Se eu fosse presidente, eu retiraria imediatamente o pedido para autorização para a guerra. Não acho que o Congresso apoiará o presidente. As pessoas veem a guerra como um último recurso. Não acho que alguém pense que estamos sem alternativas. Eu... eu retrocederia. Há muitas questões mais importantes para discutir com o Congresso, domésticas e internacionais.


Nota dos tradutores
[1] Funcionários da inteligência dizem que não conhecem a exata localização dos arsenais de armas químicas; que o Exército Sírio pode tê-las transferido, com a escalada no tom da retórica dos EUA. Essa falta de informação implica que, no caso de os EUA atacarem com mísseis Cruiser, podem acidentalmente destruir depósito de gases letais, provocando, os EUA, um evento químico mortal.
Ø Ao longo dos últimos seis meses, com as frentes de combate sempre em movimento, e a rarefeita inteligência que EUA e aliados têm conseguido extrair da Síria, perderam o controle sobre vários dos arsenais químicos do país – disseram à Associated Press dois funcionários de inteligência e dois outros membros do governo Obama.
Ø Satélites norte-americanos capturaram imagens de soldados sírios movimentando caminhões e removendo materiais em áreas de armazenamento de material militar, mas os analistas norte-americanos não sabem com certeza o que viram, que podem ser forças do Exército Sírio em operação para retirar armas químicas de áreas atacadas por “rebeldes”. (Associated Press).

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[*] Ray McGovern nasceu no Bronx em Nova York em 25 agosto de 1939 e cresceu lá. Formou-se com honras Universidade Fordham e serviu no Exército dos EUA 1962-1964. Foi funcionário federal na área de inteligência sob sete presidentes por mais de 27 anos, apresentando os informes matinais para muitos deles. Casado com Rita Kennedy há 50 anos. Juntos, eles têm cinco filhos e oito netos.

Criticou publicamente o presidente George W. Bush pelo mau uso dos serviços de inteligência no período que antecedeu a guerra no Iraque. Em 2003, juntamente com outros ex-funcionários da CIA, McGovern fundou os Veteran Intelligence Professionals for Sanity ou VIPS. Organização que se dedica a analisar e criticar o uso da inteligência, especificamente relacionadas com guerras. Em janeiro de 2006, McGovern começou a falar em nome do grupo anti-guerra Not in Our Name. Atualmente escreve para muitos jornais e sítios como Counterpunch, Consortium News, Strategic Culture, Information Clearing House e outros.

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