domingo, 19 de setembro de 2010

Uma grande inversão

*Daniel Aarão Reis


A disparada de Dilma Roussef nas pesquisas de opinião pública têm suscitado interpretações diversas.


Duas constatações mobilizam os comentaristas: a primeira é a popularidade do governo, atingindo patamares de quase unanimidade, se computados como favoráveis os que avaliam o desempenho de Lula como ótimo, bom ou regular. Depois de oito anos, trata-se de algo raro.


A segunda constatação é a capacidade de transferência de votos do presidente. Também não é algo comum. O comum é o inverso.


Líderes de expressão nem sempre conseguem “fazer” os sucessores. Isto se deve, em parte, à vontade deles mesmos, têm medo que os herdeiros possam fazer sombra à sua liderança, apagando-os da história. Leonel Brizola era craque nisto: nunca elegeu um sucessor, embora saindo de governos com alto índice de popularidade.


O mesmo aconteceu na sucessão de FHC. Embora desgastado, foi notório que ele achava graça em transferir a faixa presidencial para o líder operário, mesmo porque estava convencido de que a gestão deste seria um fracasso, favorecendo, quem sabe, a sua volta ao poder. Quem pagou o pato foi José Serra que até hoje guarda rancor pela “traição” do chefe político do PSDB. No entanto, mesmo que os líderes invistam na escolha de sucessores, a transferência de votos nem sempre se dá, ou se dá de forma tão parcial que os herdeiros perdem as eleições.


Ora, o que surpreende nesta campanha eleitoral, é a capacidade de transferência de votos de Lula para Dilma. Esta era uma personagem desconhecida em termos eleitorais.


Sua vocação era outra: a de servidora pública, empenhada na gestão de empresas estatais ou planos de desenvolvimento.


Quando Lula sacou o nome de Dilma, e o apresentou ao distinto público, não faltaram análises de que o homem não queria eleger o sucessor, no caso, sucessora. Escolhera um nome anódino para ter uma derrota eleitoral honrosa, evitando sombras em sua popularidade.


Mas não foi isto que aconteceu.


Lula investiu na herdeira, pessoalmente e com a máquina pública.


Os resultados não se fizeram esperar e até agora assombram os analistas.


O que dizer destas evidências?


Os mais simplórios, como sempre, denunciam sombrias manipulações. É uma velha cantilena, de direita e de esquerda. Quando o eleitorado não acompanha suas propostas é porque está sendo manipulado. Para a velha UDN, era Vargas o grande manipulador.


Para as esquerdas, depois da ditadura, era a TV Globo que orquestrava as mentes.


A conclusão é sempre a mesma: as pessoas não sabem votar!


Multidões passivas, idiotas! A idiotice, no caso, é da interpretação, incapaz de compreender a complexidade do processo histórico.


Uma outra linha interpretativa foi importada de análise feita nos EUA a propósito da eleição de Bill Clinton. Um gênio teria formulado a frase: é a economia, seu estúpido!


Queria dizer com isto que o eleitorado estadunidense estaria votando de acordo com seus interesses econômicos. Como Clinton falou, e muito, do assunto, ganhou as eleições com folga.


Transportada para o Brasil, a tese poderia ser assim traduzida: a maioria do eleitorado brasileiro, sobretudo as classes populares, estariam votando com o bolso, ou seja, como os governos de Lula as beneficiaram economicamente, elas tenderiam a manter uma fidelidade canina ao benefactor.


A análise não é destituída de fundamento. Com efeito, os interesses econômicos são um ingrediente importante nas escolhas de qualquer eleitorado. Mas, se o ser humano não vive sem pão, é conhecido o bordão que “nem só de pão vivem os humanos.”


A hipótese que sustento é que a aprovação do governo Lula e a sua inusitada capacidade de transferência de votos reside num processo mais profundo: o acesso progressivo das classes populares à cidadania. Lula é a expressão maior disso. Ele é visto como o político que promoveu como ninguém este acesso. Isto tem a ver com bens materiais, sem dúvida. Mas há outros bens, simbólicos, mais importantes que o pão nosso de cada dia. E é isto que as direitas raivosas e as esquerdas radicais não percebem.


As pessoas comuns e correntes, desde os anos 1980, e cada vez mais, começaram a achar graça nas instituições e nas lutas institucionais. Politica, que era coisa de brancos ricos, começou a ser também de pardos, negros, índios e brancos pobres. Esta é uma novidade óbvia, senhores e senhoras das elites brancas (a expressão é de Cláudio Lembo, líder conservador). Se Vossas Excelências puserem o ouvido no chão, talvez sejam capazes de ouvir o tropel que se aproxima.


Se olharem para o mar, vão ver a tsunami que vem por aí. Na história desta república, só houve uma coisa parecida com o que está ocorrendo agora, foi antes de 1964. Entretanto, na época, os movimentos populares queriam muito e muito rápido. Não deu. Veio o golpe, paralisou e reverteu o processo. Agora, não. O tropel vem comendo pelas bordas, com paciência e moderação, devagar e sempre, mas a fome destas gentes é insaciável.


Quando as pessoas comuns compreendem os benefícios da democracia, querem para elas também. É simplório imaginar que tudo se esgota no pão. O pão é gostoso, quem não gosta de comer?


É mais do que isto, porém: os comuns querem a cidadania. Plena. Querem jogar o jogo como gente grande, como antes só os brancos ricos faziam. Uma grande inversão. Vai dar? Não vai dar? Veremos.


Mas uma coisa é certa: não vai ser tão fácil deter esta onda como em 1964.


*Daniel Aarão Reis

Professor de História Contemporânea da UFF

Enviado por Raul Longo