sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Uma revisão crítica da al-Qaeda pela al-Qaeda

9/12/2010, Syed Saleem Shahzad, Asia Times Online

Syed Saleem Shahzad é editor-chefe da sucursal de Asia Times Online no Paquistão.
É autor de Inside Al-Qaeda and the Taliban. 9/11 and Beyond (a ser lançado pela Pluto Press, UK).
Recebe e-mails em: saleem_shahzad2002@yahoo.com

*Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

ISLAMABAD. Vários veteranos membros da al-Qaeda, que se opuseram inicialmente aos ataques de 11/9/2001 contra os EUA e alguns dos quais foram recentemente libertados da colônia em que viveram confinados no Irã, escreveram um e-book em que criticam a visão e a estratégia da liderança da al-Qaeda.

O livro, o primeiro assinado coletivamente a manifestar discordância dentro da al- Qaeda, foi divulgado mês passado. Conclama a autoproclamada resistência muçulmana global contra a hegemonia do Ocidente a abrir-se para acolher o aconselhamento dos serviços muçulmanos de inteligência e a buscar maior harmonia estratégica entre a al-Qaeda e outros movimentos da resistência muçulmana.

Analistas que falaram a Asia Times Online disseram que, avaliado à primeira vista, o livro não sugere divisão interna no movimento, mas, sim uma revisão crítica “polida”, acadêmica, das políticas da al-Qaeda. Contudo, pode-se prever que, em etapa posterior, a discussão agora suscitada leve a divisão nos escalões internos da al-Qaeda na região do Afeganistão-Paquistão, onde estão acantonados os principais líderes.

Vinte perguntas
Três dos principais estrategistas-decisores da al-Qaeda que se opuseram aos ataques do 11/9 planejados por Khalid Sheikh Mohammad são o egípcio Saiful Adil (Saif al-Adel), respeitado estrategista e planejador militar; Abu Hafs al-Mauritani, que foi chefe do comitê religioso da al-Qaeda, sem cuja aprovação nenhuma decisão era válida; e Suleman Abu al-Gaith, que foi o principal porta-voz da al-Qaeda.

Os três foram confinados num campo, no Irã, sob poucas restrições, até serem libertados, com mais de uma dúzia de companheiros, no início de 2010. (Ver sobre isso “How Iran and al-Qaeda made a deal” [Como o Irã e a al-Qaeda construíram uma negociação], Asia Times Online, 30/4/2010. Depois, se instalaram nas regiões montanhosas das áreas tribais do Paquistão, junto à fronteira com o Afeganistão, onde vivem hoje o Talibã-no-Paquistão, a al-Qaeda e vários grupos militantes relacionados a um, a outro ou a ambos os grupos.

Dia 15 de novembro, alguns membros desse grupo distribuíram pela página www.mafa.asia da Internet um manual, em língua árabe, “Vinte orientações para a Jihad [Twenty Guidelines for Jihad]”. O autor é identificado como Suleman – “porta-voz oficial da al-Qaeda em 2001” –, sinalizando o distanciamento da estrutura organizacional da al-Qaeda.

O prefácio do livro é de autoria de Mehfuz bin Waleed (outro dos nomes pelos quais é conhecido Abu Hafs al-Mauritani). Era o chefe do comitê religioso da al-Qaeda antes do 11/9, depois do que foi mandado ao Irã como enviado da al-Qaeda àquele país. Waleed é o arquiteto da negociação que assegurou o livre trânsito de famílias árabes do Afeganistão para o mundo árabe através da província de Zahedan.

Depois, outros membros da al-Qaeda reuniram-se a eles, além de alguns familiares de Osama bin Laden. Foram hospedados em pensões numa colônia, mas proibidos de deixar o Irã.

A página Internet pela qual o livro foi divulgado é mantida e administrada por Abu Waleed al-Misri, também conhecido como Mustafa Hamid. Foi auxiliar próximo de Bin Laden, mas fugiu para o Irã antes do 11/9. É autor de 11 livros sobre árabes-afegãos. O mais recente – Cross in the Skies of Kandahar [Cruz nos céus de Candahar], critica diretamente a liderança da al-Qaeda e a organização em geral, denunciando-a como responsável pelo colapso dos Emirados Islâmicos do Afeganistão (regime dos Talibãs), que caiu no final de 2001, depois de os EUA invadirem o Afeganistão, em resposta-retaliação pelos ataques do 11/9.

A principal crítica que Hamid dirige a Bin Laden é de ser autoritário e impenetrável a qualquer ponderação ou aconselhamento. Diz que Bin Laden considera-se superior ao líder Talibã Mulá Omar, que todos os árabes-afegãos reconhecem como seu Amir [chefe]. Para Hamid, apesar de Bin Laden afirmar sua fidelidade ao Mulá Omar, ele não segue suas instruções e, por isso, merece punição.

Al-Qaeda numa encruzilhada
O livro eletrônico de Gaith é claramente livro de tarbait (orientação) e não foi escrito diretamente para os líderes da al-Qaeda que os autores consideram prejudiciais à organização – os quais, de fato, sequer são nomeados. É livro de reflexão crítica, contra qualquer líder que não ouça conselhos: “Líderes que tomam decisões precipitadas que resultam em grave derrota.”

“São líderes que pensam que estão sempre certos; vivem cercados por maus conselheiros. Ironicamente, essa situação acontece no caminho da Jihad, que pertence à Ummah [mundo muçulmano] e as decisões deles afetam todo o mundo muçulmano. Por isso assuntos delicados, como estratégia, devem ser discutidos em todos os grupos muçulmanos, com os mestres e com a inteligência muçulmana em geral.”

Pode-se ver aí crítica explícita ao Dr. Ayman al-Zawahiri, representante da al-Qaeda, que condenou movimentos islâmicos como a Fraternidade Muçulmana e o Hamás na Palestina e comprometeu gravemente os laços de solidariedade com esses grupos.

“Essa atitude implica que esses líderes isolam-se e isolam seus mujahideen da principal corrente dos movimentos islâmicos e do mundo islâmico; e facilita a tarefa do inimigo, que isola [aqueles líderes e seus grupos] e os converte em alvos fáceis” – escreve Gaith.

Destaca também que os sentimentos da Ummah devem ser considerados antes de executar qualquer grande operação. “Os arsenais só devem ser usados contra combatentes, nunca contra civis inocentes. [Aqueles líderes] erram no comando das operações e sacrificam homens do povo. Somos libertadores. Lutamos contra a zulm [opressão].”

Trata-se do primeiro livro escrito por membro da al-Qaeda que cita ideólogos de movimentos islamitas contemporâneos como Hasan al-Banna (fundador da Fraternidade Muçulmana), Muhammad al-Ghazali (da Fraternidade Muçulmana Egito), Syed Abul Ala Maududi (fundador do Jamaat-e-Islami no Sul da Ásia), e Gaith conclama os líderes da al-Qaeda a seguir a reflexão desses ideólogos.

Gaith não prega adesão a sistemas democráticos adotada por alguns movimentos islâmicos contemporâneos; e condena qualquer relação com regimes muçulmanos corruptos, mas destaca no livro que esses regimes ainda têm inúmeros méritos que devem ser considerados.

“Teremos falhado, se nossa liderança não seguir e praticar o que ensinam os bons líderes e ideólogos e se nossos líderes continuarem a crer que sejam infalíveis, que jamais erram.”

Sem citar o Mulá Omar, Gaith destaca a necessidade de obedecer suas diretivas, como emanadas de um só comando. “Todos os Jihadistas devem organizar-se sob uma única liderança, que deve consultar e ouvir mestres e experts de toda a comunidade muçulmana global. [Há hoje líderes] que se calarm contra inimigos declarados do Islã e que criticam e zombam grupos islâmicos.”

Risco de cisão?
Durante os anos 1990s, pelo menos 17 grupos árabes operavam no Afeganistão e, apesar influenciados por al-Qaeda, operavam separadamente. À altura do 11/9, a maioria já se fundira na al-Qaeda, com exceções como o al-Gama Islamiya al-Muqatilal (GIM), Jamaatul Toheed Wal Jihad (liderado por Abu Musaab al-Zarqawi que se uniu à al-Qaeda muito depois, já passada a invasão do Iraque pelos EUA em 2003), além de centenas de árabes que abraçaram a Jihad independentemente, com a poderosa rede Jalaluddin Haqqani.

Depois do 11/9, todos, até esses operadores independentes tinham poucas alternativas além de operar com a al-Qaeda já envolvidos na “guerra ao terror” e todos os árabes-afegãos eram vistos como da al-Qaeda. Muitos foram presos no Paquistão e em todo o mundo, apenas porque viveram no Afeganistão. Na busca por abrigo seguro, procuraram as áreas tribais do Paquistão e permaneceram nos campos da al-Qaeda, porque era a única organização árabe suficientemente potente na região para oferecer-lhes proteção. Muitos árabes afegãos opunham-se às estratégias da al-Qaeda, sem jamais encontrar espaço para contestá-las.

Agora, quando figuras das mais importantes da operação da al-Qaeda manifestam abertamente suas críticas, é possível que outras críticas comecem a aparecer. Esse é caminho que pode levar a reformar-se o mais aclamado movimento muçulmano global de ação direta da resistência contra a hegemonia do Ocidente – ou pode permitir que dissidentes alinhem-se aos líderes do Talibã afegão e rompam com a al-Qaeda.
Para o renomado jornalista árabe Jamal Ismail, autor de Bin Laden, al-Jazeera and Me [Bin Laden, Al-Jazeera e eu], que se encontrou com Bin Laden e entrevistou Zawahiri, em contato com Asia Times Online, “Não chega a ser uma cisão [no atual momento]. É uma revisão crítica. Mas, no longo prazo, pode levar a cisões, se os atuais líderes da al-Qaeda não tomarem conhecimento da crítica que se lê [no livro] e de outras opiniões semelhantes dentro e fora da própria al-Qaeda.”

Sobre o assunto, leia também: 

Líbia: teste para a alQaeda reformada 9/3/2011, Syed Saleem Shahzad, redecastorphoto [orig Ásia Times Online] 
O nascimento da modernidade mislâmica 11/3/2011, Pepe Escobar, redecastorphoto [orig. Ásia Times Online] 

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