28/2/2012, Yazan
al-Saadi, Al-Akhbar,
Líbano
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Apoiadores de Julian Assange, fundador de WikiLeaks, exibem faixa em que se lê “Na guerra, a primeira vítima é a verdade”, à frente do prédio da Suprema Corte, no Centro de Londres, dia 1º de fevereiro de 2012, primeiro dia do julgamento do apelo de Assange, contra a extradição para a Suécia (Foto: AFP – Miguel Medina) |
A
divulgação de mais de 5 milhões de e-mails de uma empresa privada de
inteligência/espionagem com escritórios nos EUA, Stratfor, incluindo detalhes de
cartões de crédito, senhas e identidade das fontes, lança nova luz sobre a
realidade, em rápida transformação, do mundo da coleta de informações de
inteligência/espionagem e expõe pessoas e interesses por trás daquela realidade.
O jornal
Al-Akhbar recebeu os dados obtidos e publicados por WikiLeaks, que incluem material sensível
sobre o Oriente Médio.
◙ Para ir diretamente aos
e-mails aqui comentados (em
inglês):
Strategic
Forecasting Inc.,
mais conhecida como Stratfor, é empresa privada que opera no lucrativo negócio
da coleta e análise de informação de
inteligência/espionagem.
Fundada
em 1996, a empresa tornou-se globalmente
conhecida durante o bombardeio da OTAN contra o Kosovo, em 1999, quando as
análises publicadas por Stratfor, consideradas bem informadas e aprofundadas,
foram divulgadas por várias agências de notícias. Mas foram os eventos do 11/9 e
a subsequente “guerra ao terror” que inflaram o prestígio da empresa,
convertendo-a em fonte sempre procurada pelas grandes redes e conglomerados da
imprensa comercial, como Bloomberg,
Associated Press, Reuters, The New York Times e também pela
BBC.
Descrita
muitas vezes como uma “CIA privada”, a empresa Stratfor repete que as
informações que vende são obtidas de grande número de fontes públicas
acessíveis, como serviços de notícias online, fóruns de discussão e outros
tipos de páginas da Internet e estudos e pesquisas governamentais não sigilosos,
além do que lhe dizem suas próprias fontes, sempre bem localizadas em todo o
mundo. A empresa diz ter cerca de 300 mil assinantes, além dos dois milhões de
interessados que recebem gratuitamente uma Newsletter, por correio
eletrônico.
Até
recentemente, parte significativa da atividade da empresa Stratfor permanecia
cercada de mistério. Mas em dezembro último hackerativistas do coletivo Anonymous invadiram o sistema de
comunicações da empresa, na campanha chamada “LulzXmas”, concebida para chamar
atenção para as condições desumanas em que estava preso o cabo Bradley Manning,
acusado pelo governo dos EUA de fornecer informações secretas à organização WikiLeaks.
Contato
inicial com os
e-mails
agora distribuídos começa a lançar luz, afinal, sobre como a empresa está
estruturada, sobre o processo de atrair, alistar e construir fontes e sobre o
estranho modo de relacionamento que liga entre eles os empregados da empresa. Em
contraste flagrante com a imagem que Stratfor tenta projetar dela mesma, o que
se vê nos
e-mails
é uma empresa com inúmeros problemas de organização, com empregados
muitas vezes surpreendentemente desinformados e super dependentes de
determinadas fontes para fabricar previsões e diagnósticos que, não raras vezes,
não têm qualquer fundamento fatual ou de investigação ou
pesquisa.
O
que é a empresa Stratfor?
A
Stratfor foi fundada há mais de dez anos em Austin, Texas, por George Friedman,
ex-professor de ciência política. Friedman é o principal agente de
inteligência/espionagem, o gerente financeiro e o presidente executivo da
empresa.
Autoapresentado
como “autor de livros
best-seller” na página “Sobre nós” do website da empresa, Friedman tem longo currículo de
serviços prestados aos militares norte-americanos nas áreas de segurança e
defesa, e trabalhou também com a conhecida RAND Corporation.
Friedman
também é autoproclamado discípulo de ícones dos neoconservadores, como Leo
Strauss; e sempre enfatiza em suas análises, a “ameaça jihadista” da al-Qaeda.
De fato, o relatório de prognóstico publicado pela empresa Stratfor para a
década 2005-15 trata, predominantemente, do posicionamento dos EUA como potência
hegemônica global e do conflito com a al-Qaeda [1].
As
fontes são indispensáveis para a empresa Stratfor. São como linha de
abastecimento pra o
think tank, sejam apenas amigos ou conhecidos de empregados da
empresa, ou indivíduos em altos postos políticos ou empresariais. A esposa de
Friedman, Meredith, tem envolvimento ativo nas operações da empresa. É principal
gerente internacional e vice-presidente de comunicações. A julgar pelos e-mails,
parece ter a missão de expandir a rede de relações públicas de Stratfor, marcar
entrevistas e participação em eventos públicos, sempre com contato com a mídia,
para o marido e para outras personalidades do mundo acadêmico e político. Além
disso, Meredith é encarregada de organizar o braço internacional de Stratfor
(empregados da empresa são enviados ao exterior, para
conferências).
Fred
Burton, vice-presidente de Stratfor para questões de segurança empresarial e
contraterrorismo, é o terceiro na cúpula dirigente da empresa/think tank.
Foi agente especial do Serviço Diplomático de Segurança dos EUA, indicado por
Washington para investigar o assassinato do primeiro-ministro israelense Yitzhak
Rabin; o assassinado do rabino Meir Kahane e inúmeros casos de explosões
atribuídas à al-Qaeda antes do 11/9.
Burton
é apoiador visível e empenhado pró-Israel e faz a ligação com os setores
militares e de inteligência/espionagem de Israel. Na discussão que se lê num
dos
e-mails, sobre a Flotilha “Liberdade para Gaza”, Burton, abraçando
a narrativa israelense, argumenta que a Flotilha seria financiada por fontes
questionáveis.
As
fontes: espadas de dois gumes
Há,
sem dúvida, algum tipo de relacionamento entre a empresa Stratfor e agências
oficiais de segurança, sobretudo nos EUA. Vários e-mails internos carregam, como documentos anexados,
publicações (não sigilosas) do FBI e de outras agências [2]. Pesquisa mais aprofundada nos e-mails agora publicados
poderá trazer à tona mais provas desse laço direto.
A
empresa tem organização piramidal. No topo, como já se comentou, estão os
Friedmans e Burton, que tomam todas as decisões. Abaixo deles, ficam os WOs [Watch
Officers, aprox. “encarregados da vigilância/busca”], que peneiram as várias
fontes à procura de qualquer informação significativa. Em seguida vem os
analistas, às vezes também chamados “handlers” [aprox. “operadores”, que
discutem e examinam os informes de inteligência/espionagem, com a tarefa de
encontrar e construir relacionamentos com indivíduos, para explorar/aprofundar
informações. Na base da pirâmide, afinal, ficam as fontes.
As
fontes são classificadas em escala: “A” para as melhores e “F” para as piores [3]. Também são codificadas segundo a
região ou o tópico, e recebem um número [4].
Contudo,
os
e-mails
internos de Stratfor sugerem certo nível de frustração, às vezes de
confusão, quando se trata de os empregados apenas obedecerem a regras [5]. Em abril, afinal, aconteceu um
processo de completa revisão/reavaliação das fontes. Nos grupos de e-mails em que se discute
essa revisão, vê-se bem evidente a frustração dos que receberam a missão de
reunir as listas de fontes. Em um caso, uma lista de fontes vazou, erroneamente,
para a lista de “Fonte Aberta” [orig. Open-Source
(OS)].
Há
desconexão total entre os fatos e as vastas complexidades em campo nas regiões,
e os tópicos em que são classificados. Numa troca de e-mails entre Anya Alfano,
que trabalha como relatora-resumista [orig. briefer], e Meredith Friedman, Alfano
esboça uma avaliação geral do processo de revisão das fontes [6]. Essa avaliação geral sugere que
Stratfor não é tão bem informada como gostaria de fazer crer. Muitas fontes são
conectadas a determinados países e questões específicas, não têm como cobrir
questões regionais nem questões menos específicas. Uma das principais fontes de
Stratfor no Oriente Médio, codinome ME1, é exemplo disso.
Segundo
vários
emails, ME1 trabalha ativamente com Stratfor desde 2006, talvez
desde antes. Parece que é militar do exército libanês; fala/escreve bom inglês;
e fornece a Stratfor informações também de várias outras fontes, entre as quais
parece haver membros do Hamás e vários diplomatas árabes no Líbano, dentre
outros.
A
importância de ME1 é destacada, também, porque, em outubro de 2011 recebeu
aumento de salário (passou a receber $6.000 mensais) [7]. A lista de transferências [de
dinheiro] de 2011 mostra que ME1 é o terceiro mais alto salário entre as fontes
remuneradas [8].
Em
dois
e-mails
vê-se o quanto a empresa confia em ME1. O primeiro mostra que membros da
empresa Stratfor acreditam ter “jornalistas-contatos (editores) para
praticamente todas as agências significativas de mídia no Líbano, via ME1” [9]. O segundo – e talvez seja o melhor
exemplo do pouco conhecimento real com que a empresa Stratfor conta, e do quanto
a empresa superconfia na terceirização da coleta de informações – mostra um
debate sobre a identidade sectária de Assef Shawkat, vice-ministro de Defesa da
Síria e marido de Bushra Assad [irmã de Bashar-al-Assad], e de Ali Mamlouk,
diretor geral da Inteligência síria [10]. Apesar de a Fonte Aberta (Open
Source, OS) ter informado que Shawkat e Mamlouk seriam sunitas (são
alawitas!), como um analista destaca, o agente de operação encarregado do
contato com ME1, Reva Bhalla, confirma o que sua fonte lhe disse: “Nessa
questão, confio em ME1. Odeio essa região, aaaaargh.”
Stratfor,
por trás da fachada
Mesmo
sem considerar a embaraçosa e obviamente grave quebra na segurança da empresa
Stratfor, que não se cansa de repetir que zela pela segurança de suas fontes, o
conhecimento geral entre os empregados parece resumir-se a um único
paradigma.
Stratfor
é empresa ideologicamente construída sobre as ideias de pragmatismo dos
neoconservadores norte-americanos. Há em todas as linhas uma visível euforia e
imensa delícia, sempre que se destaca, nos relatórios e estudos (e também
nos
e-mails
agora divulgados) o poder que EUA e seus aliados projetam sobre o mundo.
Em mais de um ponto, vê-se desconexão total entre os fatos e as vastas
complexidades em campo nas regiões, e os tópicos em que são classificados –
como, por exemplo, em vários casos em que o objeto das análises ou discussões é
o Oriente Médio.
Muitos
dos documentos internos de Stanford, agora divulgados, vêm de agências
ocidentais ou israelenses. Num e-mail redigido por um dos analistas da empresa
Stratfor, um editor palestino é descrito como “doido varrido” [orig. nut job], por
ter dito que acreditava que Jerusalém seria libertada “com honra militar” [11]. E, apesar do evidente conteúdo
racista antiárabe, na informação fornecida por um oficial da inteligência
israelense, a informação é considerada valiosa e relevante [12]. No e-mail sobre aquele oficial israelense, o analista
admite que a empresa Stratfor e a Inteligência da Defesa israelense são
assemelhadas... porque ambas “mantêm-se desconectadas das políticas domésticas”
das regiões onde operam.
A
maioria dos analistas empregados de Stratfor tem conhecimento apenas superficial
sobre os tópicos que cobrem. Parece que, de praxe, os analistas recebem, para
analisar, tópicos sobre os quais não têm conhecimento prévio. Numa troca
informal de
e-mails, além de os missivistas trocarem piadas de gosto muito
duvidoso sobre AIDS, lê-se, logo na primeira linha, que a analista encarregada
da América Latina não é absolutamente especialista na região, mas, mesmo assim,
ela conseguiu reunir informação de inteligência/espionagem que agradou aos seus
superiores [13].
Muitos
dos documentos internos distribuídos para os clientes da empresa Stratfor foram
produzidos por agências ocidentais ou israelenses, não por fontes da região – o
que reforça a desconexão interna na empresa.
Os
informes, relatórios, análises e diagnósticos vendidos pela empresa Stratfor a
seus clientes têm servido como base e ferramenta crítica do noticiário
distribuído por agências ocidentais de jornalismo e notícias e do trabalho de
várias organizações de inteligência.
Agora,
quando afinal se começa a conhecer por dentro as empresas privadas que trabalham
no campo da inteligência/espionagem, pode-se começar a entender por que as
agências jornalísticas e de notícias ocidentais jamais dão qualquer sinal de
entender adequadamente sociedades não ocidentais.
A
maior parte do pensamento analítico desenvolvido em empresas privadas como
Stratfor, em seguida distribuído automaticamente em escala maior pela imprensa
global, reproduz uma narrativa sempre muito superficial, que de modo algum
captura as complexidades e os sentimentos individuais envolvidos na vida da
região, nem as estruturas políticas, econômicas e sociais
locais.
É
exatamente o contrário do que diz Friedman, principal executivo e proprietário
da empresa Stratfor, no vídeo em que “vende” sua empresa a clientes potenciais.
Friedman desqualifica a cultura, para ele característica de Washington, de
longos documentos e relatórios políticos que, segundo ele, ninguém lê. Para ele,
os serviços de inteligência superam o jornalismo, que “tem um olhar atrasado”
sobre o mundo; só as empresas de inteligência/espionagem tratariam do que “está
prestes a acontecer e acontecerá” e do “por quê”.
Mal
sabia Friedman que agora, com jornalistas e internautas em todo o mundo podendo
afinal examinar diretamente e por dentro o modo como operam as empresas privadas
de inteligência/espionagem, todos aprenderemos muito sobre o tal “porquê” que
tanto interessaria à Stratfor – o que afetará muito o modo como o ocidente
recolhe e distribui informação sobre o oriente e sobre muitas outras regiões do
mundo.
A
partir da próxima semana, o jornal Al-Akhbar examinará o que a
empresa Stratfor reuniu (e distribuiu) como informação sobre o Oriente
Médio.
Uma
pirâmide de colaboradores
Stratfor
é um think
tank
privado, que vive de reunir informações de inteligência/espionagem, que
são analisadas, discutidas, consolidadas e distribuídas. Praticamente todas as
informações que a empresa considera relevantes são relacionadas a questões
militares, políticas e econômicas; e a mensagem de e-mail é a principal ferramenta para toca de
conhecimentos dentro da equipe.
A
informação de inteligência/espionagem que é extraída das fontes é em geral
confrontada com dados públicos acessíveis, chamados “de Fonte Aberta” [Open
Source, OS], e em seguida incorporada a avaliações, diagnósticos e
prognósticos, e relatórios em geral, que são divulgados. Essas avaliações,
diagnósticos e prognósticos, e relatórios são distribuídos para uma lista de
assinantes, em recortes específicos conforme os interesses regionais do
assinante, ou num pacote ‘geral’.
No
plano interno, a empresa depende pesadamente de listas de distribuição de
mensagens. Da lista dos privilegiados “ALFA”, à lista dos analistas regionais,
denominadas “MESA” [Middle East South Asia], “LATAM” [Latin America] e
“Eurasia”, cada peça de informação de inteligência/espionagem é distribuída por
canais específicos nos quais é processada.
Hoje,
trabalham na empresa
think tank Stratfor mais de 130 empregados, a maioria
dos quais faz trabalho operacional e trabalho administrativo. Por exemplo,
Jennifer Richmond é Diretora de China e de Projetos Internacionais. Os e-mails mostram que ela
também trabalhou – e talvez ainda trabalhe – na administração, tentando
organizar e coordenar listas de fontes para avaliação, e garantir que os
empregados obedeçam ao critério de classificação interno das informações [14].
A
rapidez é fator chave para o sucesso, no jogo de inteligência/espionagem da
Stratfor, e para isso trabalham os WOs [Watch Officers, aprox.
“encarregados da vigilância/busca”]. Os WOs são “avaliadores objetivos de fontes” que
comentam informação oferecida pelas fontes e a comparam com o que haja já
divulgado publicamente. Nas palavras de um funcionário, em e-mail de discussão
interna, os
WOs
“guardam as joias da família da empresa” [15]. Esse departamento é comandado por
Michael Wilson.
A
engrenagem seguinte da mesma máquina são os “analistas”. Cabe a eles reunir as
fontes e classificá-las numa grade de confiabilidade, produção,
acessibilidade/posição, credibilidade e originalidade das opiniões, ideias e
pareceres que a fonte ofereça. O sistema de recrutamento de fontes varia, mas,
em geral, a fonte é seduzida, às vezes com muito trabalho e empenho, para que
coopere [16].
Descritos
como “handlers” [aprox. ‘operadores’], os analistas têm contato direto
com a fonte; sua prioridade é garantir que o relacionamento
continue.
Além disso, os analistas a serviço da empresa Stratfor devem também interagir com os assinantes, e extrair deles o máximo de informação possível, para uso futuro. Lê-se isso claramente em uma troca de e-mails na qual um analista tático de nível inferior expõe o que fez para desenvolver uma nova fonte – um indivíduo, dentro de um serviço alemão não identificado de segurança, que há mais de nove anos era assinante das publicações da empresa Stratfor.
Além disso, os analistas a serviço da empresa Stratfor devem também interagir com os assinantes, e extrair deles o máximo de informação possível, para uso futuro. Lê-se isso claramente em uma troca de e-mails na qual um analista tático de nível inferior expõe o que fez para desenvolver uma nova fonte – um indivíduo, dentro de um serviço alemão não identificado de segurança, que há mais de nove anos era assinante das publicações da empresa Stratfor.
Os
analistas táticos, dentro da empresa Stratfor, dedicam-se a observar e comentar
operações militares, de inteligência/espionagem e outras operações de segurança,
nos EUA e fora de lá. Scott Stewart, vice-presidente de Inteligência/Espionagem
Tática, carinhosamente apelidado “Stick” [porrete], dirige o
departamento.
Todos
os
e-mails
citados (em inglês)
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