Sobre Separação (2011), roteiro, produção e direção de
Asghar Farhadi, Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira, Los Angeles, EUA,
fev. 2012
28/2/2012, Kaveh L Afrasiabi, Asia Times Online
Traduzido pelo
pessoal da Vila
Vudu
Ver também:
27/2/2012, AToL –
The Roving Eye
Kaveh L. Afrasiabi |
PALO ALTO,
California – A ideia de que a arte imita a vida é belamente demonstrada no muito
aclamado filme iraniano Separação, indicado para o grande prêmio em duas
categorias do Oscar-2011: Melhor Filme em Língua Estrangeira e Melhor Roteiro
Original.
É o quinto filme
de Asghar Farhadi, que ilumina aspectos da vida e do povo iraniano de modo
claro, preciso e sutil, cheio de simbolismo e de realismo cinematográfico.
Como
em À Procura de Elly (Darbareye Elly, 2009 [1]) filme anterior de Farhadi, Separação oferece um sortimento de questões iranianas,
de classe, culturais, normativas e psicológicas, algumas das quais, como a ética
do cuidado com os mais velhos, são universais e repercutem nos públicos
globais.
Os dois filmes
entram fundo na questão da confiança e das mentiras (in)convenientes, embora,
comparado a Elly, Separação seja filme mais contido, e, talvez, inferior
ao outro, ainda o mais refinado filme de Farhadi, que toca a questão do amor
tabu, que, com o tempo, ressoa cada vez mais.
Asghar Farhadi |
O estilo verité de Farhadi – a vida diária, mostrada com
todas as suas complexidades e tensões dinâmicas, diretamente na tela – parece
saudavelmente divorciado do tom “filme de diretor” característico do “novo
cinema iraniano”. Com isso, Farhadi consegue abordar com sutileza vários temas,
como as relações de gênero e o papel da religião e do secularismo –
ingredientes standard das narrativas de “tradição versus modernidade”.
O filme começa e
termina em cenas sombrias de audiências numa vara de Justiça da Família, mas, a
rigor, não é “filme de divórcio”, como o apresentaram, equivocadamente, alguns
críticos. Os protagonistas, um casal, marido e mulher de classe média, está
vivendo uma separação, motivada por diferentes opiniões sobre emigrar do Irã;
mas ao longo do filme, o que se vê é marido e mulher que tentam manipular um o
outro, no que parece ser rompimento apenas temporário.
A filha do casal
(11 anos, mas intensamente protointelectual) ganha o direito de escolher com
quem quer ficar, o que não se decide, no filme, embora fique bem claro, no ar,
que a menina também tem seu próprio plano para reunir pai e mãe.
Para
o público ocidental médio, acostumado aos estereótipos negativos associados aos
homens iranianos, que seriam patriarcas patológicos, graças à singular
contribuição de um filme norte-americano muito popular, Nunca sem Minha Filha [2] (1991), o filme de Farhadi tem o
mérito de oferecer correção oportuna. Apresenta retrato muito mais simpático dos
homens (e também das mulheres) iranianos, sem traço de chauvinismo machista ou
obcecação por dominar e controlar.
Fã do dramaturgo
britânico Harold Pinter, Farhadi espalhou elementos pinterianos ao longo de Separação. Entre eles, a fúria e a
frustração do outro marido que se vê no filme, cuja esposa grávida trabalha como
empregada doméstica no apartamento do casal protagonista, onde também vive o pai
do marido, que sofre do Mal de Alzheimer em estágio avançado – até ser
sumariamente demitida por maus tratos ao velho e suspeita de roubo.
De uma abertura
atormentadamente comum, o filme avança para um melodrama raro que combina
olhares sutis e silêncios com diálogos ríspidos, que evitam qualquer mensagem
grandiloqüente ou ruídos ideológicos; como no teatro de Pinter, as pausas e
olhares não são apenas traços que ajudam a compor o retrato dos personagens, mas
“congelam” a ação, para indicar que, naqueles pontos, assistimos a outro estrato
da realidade.
Em sua dedicada
busca por uma neutralidade política, Farhadi mesmo assim nos desafia com um
rápido sussurro sobre o descontentamento político entre a classe média iraniana
– na primeira cena do filme, quando a esposa, entre angustiada e irritada –
personagem brilhantemente construído por Leila Hatami, diz que prefere que a
filha não cresça “nas atuais circunstâncias” do Irã.
O juiz pergunta
“que circunstâncias?” e ela cala, autocensurando-se, como uma classe média
moderna, no Irã, que, em vários sentidos, sente-se culturalmente sufocada. Essa
é, de fato, a única cena “simbólica” de todo o filme. No torvelinho que eclode,
disparado pela tragédia acidental que desaba sobre a empregada, que sofre um
aborto espontâneo, os dois casais descobrem-se ante um sistema judiciário que os
trata de forma rigorosamente idêntica e sem preconceitos, bem distante do
estereótipo ocidental do que seria a justiça no Irã, pressuposta arcaica e
bárbara.
Por outro lado, o
filme não esconde a influência da fé religiosa no comportamento individual (por
exemplo, a empregada consulta, por telefone, uma autoridade religiosa, para
saber se ela pode ou não lavar – e portanto tocar – o corpo do velho doente; e,
adiante, ela faz considerável sacrifício de um princípio religioso) e, assim,
como que afirma o status
quo que, hoje, está cada vez sob
mais intenso sítio ocidental.
Simultaneamente,
ao optar por mostrar, sem lhes fazer oposição, questões de fé, lealdade e
estratificação social, Farhadi traz à luz as dificuldades da classe trabalhadora
iraniana, que só aumentarão, como resultado do massacre das sanções ocidentais
contra o Irã.
Os únicos vilões,
no filme, são as circunstâncias objetivas, os contextos fluidos da existência
social que disparam os acontecimentos, os acidentes e os relacionamentos
complexos, em termos da
zeitgeist do filme, no
contexto das dificuldades induzidas do exterior que formam o contexto implícito,
e, assim, dão ao filme uma urgência política indireta.
A
indicação desse filme ao prêmio [e, hoje,
ainda mais, a premiação (NT)], pela indústria americana do cinema, até há
pouco mais mobilizada pela islamofobia e pelo “choque de civilizações”, que por
sentimentos de tolerância ante a civilidade e o “outro” muçulmano [3], pode ser vista como um
cessar-fogo artístico que, esperemos, emocione os políticos norte-americanos e
os faça ver que a abordagem furiosamente belicista contra o Irã está a exigir
imediata reconsideração.
Em
certo sentido, Separação enfrenta as clivagens transculturais das
separações, interiorizadas no contexto das interações familiares entre
personagens da classe média e da classe trabalhadora, e chama a atenção para a
necessidade de compreenderem-se melhor as camadas de significação que jazem
abaixo das realidades de superfície, não muito diferente do discurso filosófico
de Terrence Malick em seu mais recente filme,
A árvore da vida [4].
Mas enquanto
Malick é caracteristicamente americano, em sua ambição de desvendar o mistério
da natureza, do cosmos, da humanidade, o microcosmo de Farhadi mantém-se focado
no dasein heideggeriano da existência presente,
que é simultaneamente mundana e eletricamente dinâmica, e causa os arranhões e
as escoriações de percepções mutáveis e de personagens em processo.
Há diferenças
estilísticas profundas entre Farhadi e Malick, como o uso intenso, em Malick, da
trilha sonora, como parte de sua narrativa; enquanto Farhadi praticamente
dispensa a música – o que talvez sugira algum excesso de confiança na capacidade
de o roteiro, só ele, conseguir fazer avançar a narrativa (o que nem sempre
consegue plenamente).
Seja como for, uma
comparação limitada entre os dois diretores surge quase espontaneamente, apenas
porque ambos operam sobre relações familiares, e fazem do cinema veículo muito
rico de provocação e de reflexão. Postos lado a lado, esses dois filmes, feitos
em continentes diversos, lembram o público da pulsação vital da estética
humanista que se pode ouvir no Oriente e no Ocidente.
Separação, 2011, roteiro, produção e direção
de Asghar Farhadi. Distribuído por Film Iran (no Irã); Sony Pictures Classics (nos EUA);
Memento Films (distribuição mundial).
Lançado dia
1/2/2011, no Tehran Fajr Film
Festival, e dia 15/2/2011, no Festival de Cinema de Berlim.
Já foi assistido por 3,1 milhões de
pessoas no Irã; e por 9,6 milhões, em todo o mundo.
Notas
dos tradutores
[1] Sobre o filme, exibido na 33ª
Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ver: “À
Procura de Elly (Darbareye Elly)”
[2] Sobre o filme, ver: “Nunca Sem Minha
Filha”
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