Alípio Freire |
Publicado em
09/02/2012 por *Urariano Motta
Recife
(PE) - Em um
belo dia de julho de 2009, o ex-preso político Alípio Freire nos guiou pelo
Memorial da Resistência em São Paulo. Ali ele conduziu a mim, a minha esposa e
filha pelas celas do Deops paulista e, em lugar da pura exposição do terror
estatal, nos mostrou humanidade e sementes de esperança entre mortos e
torturados.
Enquanto
Alípio discorria por entre aquelas paredes, era possível notar que nele
residiam juntos um artista plástico, um intelectual, um bom narrador de casos e
causos, contados como se surgissem do nada, no meio de pausas de um cigarro e
outro. Mas isso, digamos, ainda não estava materializado como um documento
íntimo, pessoal da história daqueles anos - eram percepções de passagem entre
fumaças. A existência do Memorial era, é objetiva, a sua necessária e dura
referência está ao lado de nós. Ali houve e há uma história ocorrida antes e
agora pelo rescaldo da ditadura, da sociedade de classes, abjeta e
objetiva.
Mal
sabia eu que outro Memorial da Resistência já se encontrava em gestação, em uma
forma imprevisível e original, como agora sei ao ler “Poemas - De Ordem Política
e Social”. Pois aqui ocorre o lugar de um outro Departamento, que em vez de um
Deops se estabelece como um Poeops, mas nada de Poe, de Allan Poe, porque Alípio
Freire escreve à sua maneira a Poesia que é uma Resistência daquelas vidas de
jovens e velhos, homens e mulheres subversivos contra a Ordem. E o resultado
agora todos vão conhecer.
Quisera
eu poder guiá-los neste momento. Ainda que não tenha o dom do artista Alípio,
quando em 2009 nos conduziu pelo Memorial da Resistência, tentarei algo à
semelhança de uma apresentação do poeta neste livro que se abre como um fruto
maduro, caído do pé da árvore do Brasil.
Na
primeira revelação, descubro que todo poeta chama, reclama e ensina para o
leitor uma nova poética - aquela que o liberta e nos liberta do vício do
acostumado, da forma que é fôrma. Os indivíduos mais tradicionais e
conservadores – e nada mais burro e estéril que pessoas condenadas à carga
desses dois adjetivos – poderiam dizer que em alguns poemas de Alípio há uma
tendência de versos que são uma prosa em linhas descontínuas. E com isso o
estúpido confunde poesia com determinados temas e canto ao orvalho na flor, por
um lado, e por outro, com a obscuridade, que com freqüência é vista como
sublime.
Mas
o que é a poesia? Será ela somente a de significados multívocos, quando não
ambíguos, com a dignificação de “poesia aberta?” Ou seria ela, mais
propriamente, aquele associada ao sentido de beleza e verdade, verdade e beleza,
beleza e verdade, até o sol raiar e noite adentro? Se não for isso, parem aqui e
respondam depois da leitura:
“Eu
tenho uma casinha
lá
na Marambaia
fica
na beira da praia
onde
helicópteros e aviões da Aeronáutica
despejavam
corpos de opositores do regime.
Alguns
ainda
com vida
Outros
esquartejados.
O
terror de Estado contaminou tudo.
Até
o nosso mais lírico cancioneiro”.
Na
segunda revelação, descubro que este é um livro e lugar onde nasce e se inaugura
uma floresta de citações mais adiante, em futuros discursos de políticos
iluminados, em poemas vindouros de jovens poetas, em inteligentes conversas de
muitos jovens e militantes de todas idades, inconformados com o lixo de mundo
que recebem. Se não, olhem alguns versos, como estes:
“Da
tragédia
Nós
sobrevivemos
ao
pau-de-arara.
Mas
o pau-de-arara
também
sobreviveu”.
Então
vamos chegando mais perto da poética de Alípio Freire. A sua estética liga o
domínio de conquistas cultas ao pensamento maduro, que gera reflexão, pois este
é o poeta que não abstrai, não exclui o pensamento da sua poesia. Isso quer
dizer: este poeta é um intelectual de esquerda, um pensador que exerce a sua
história e cultura em um só corpo:
“Coquetel
Uma
garrafa
Uma
rolha
Gasolina
Óleo
30
Pólvora
e ácido nítrico
Ou
uma mecha em chamas...
...
e...
desde
então
aquela
dificuldade insana de hierarquizar os alvos”.
E
mais esta Prestação de contas:
“Para
morrer
basta
estar vivo.
Para
viver
não.”
A
vontade que deixa na gente é de escrever somente com os seus poemas, porque
descobrimos neles a expressão de um desconforto nosso, uma angústia que não teve
ainda vida expressa. Como nestes versos, vizinhança de um
epigrama:
“Onde
não há igualdade
toda
liberdade é sempre um excesso
de
privilégios”.
Enfim,
aqui reside uma poesia que são cravos, mas não são flores.
(Do
prefácio ao livro
“Poemas – De Ordem Política e Social”)
*Urariano
Motta é
natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista,
publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de
oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador
do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente
também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no
Recife (Boitempo, 2009)
sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973,
e Os
corações futuristas (Recife, Bagaço,
1997).
Enviado
por Direto da
Redação
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