quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O inverso da velha piada

Texto de Raul Longo [*]
Ilustrações redecastorphoto

Lembram-se daquela velha piada do papagaio do padre francês que a cafetina comprou para dar um ar de moralidade na porta de entrada do rendez-vous muito chic e bem frequentado, oferecendo recepcionistas importadas, sobretudo francesas que mexiam com os fetiches e imaginações da macharada da época?

Martin Almada e a
Operação Condor
O bichinho muito educado cumprimentava a cada um que entrava e saía na maior finesse:

Bon soir Monsieur! Comment allez-vous? Arrivez vous chez les Mademoiselles! Ça va bien?.

Mas no dia que viu uns generais fardados aproximando-se e em direção à casa de tolerância, berrou adentro:

Corrê putadá qu’ os homê vem chegandô!

Pois é... De tão velha ninguém mais ri dessa piadinha que se em algo divertia nos tempos da ditadura, era só pela chacota implícita aos milicanalhas da ocasião. E o francesismo incluído em algumas interpretações era só rapapé para obter maior efeito, realçando o brasileirismo final com nosso francês colegial do currículo escolar de então.

Mas o tempo passa, as coisas mudam e, quem diria, a velha piada ressurge em versão inversa, como se vê aí nos agradecimentos e solicitações do prêmio Nobel Alternativo, Dr. Martin Almada, vítima da Operação Condor, ao Embaixador da França no Paraguai.

Como diz aí entre 2004 e 2008 os arquivos dos crimes da Operação Condor foram abertos e investigados pela Commission pour la Vérité et la Justice da Argentina com a cooperação da justiça paraguaia e, agora em dezembro de 2013, se dará no Senado Francês e no Palais de Luxembourg une Conférence Internacionale sur l’Opération Condor.

Chic, não é? Já deveria ter chegado nossa vez de receber tamanha honraria e interesse internacional afinal nossa ditadura militar começou 10 anos antes da dos milicanalhas da Argentina. Ainda que a do Paraguai houvesse iniciado exatamente outra década antes da do 1º de Abril de 1964, com Alfredo Stroessner que iniciou sua carreira de crimes políticos contra o povo vizinho em 1954 e só em 1989 fugiu para o Brasil onde ficou acoitado até sua morte em 2006, em total impunidade.

Olivier  Poupard
Emb. da França no Paraguai
Infelizmente todos os nossos ditadores tiveram o mesmo lamentável destino, mas ainda vagam por aí muitos de seus colaboradores e bem merecem serem igualmente lembrados lá na França. Para o que todos podem colaborar divulgando essa carta do Dr. Martin Almada como um incentivo à nossa Comissão da Verdade e da Justiça.  

Mas não façam como o papagaio da piada. Sem avisos pra putadá que, hoje muito modesta, prefere o ostracismo dos pijamas que substituem as fardas nos cabides, como trocaram os cabos elétricos e alicates de arrancar unhas pelo controle remoto de TV.

Segura o bico do papagaio porque tem de ser surpresinha para não debandarem em saída à francesa.

Mas repassem! Eles merecem.

A seguir a carta (traduzida do francês para o português-BR) do Dr. Martin Almada ao Embaixador da França em Assunção- Paraguai

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Dr. Martin Almada
Dr. Martin Almada
Av. Carlos A. Lopez, 2273
Assunção

Assunção, 28 de outubro de 2013

À atenção de Sua Excelência
Embaixador da França
Dr. Olivier Poupard

Senhor Embaixador,

Em 22 de dezembro de 1992, com apoio da justiça de meu país descobri, após 14 anos de busca, 3 toneladas de arquivos da polícia secreta da ditadura de Alfredo Stroessner, que a imprensa se apressou em batizar como”Arquivos do Terror da Operação Condor.

Logo após esta descoberta o Congresso paraguaio criou a Comissão para a Verdade e a Justiça, trabalhou sobre esses arquivos desde 2004 até 2008, trabalho esse que resultou em 8 volumes de conclusões e recomendações.

Em 2009 a UNESCO declarou esses “Arquivos do Terror”  como Patrimônio da Humanidade, garantindo assim sua preservação e o direito de meu povo a consultá-los livremente. 

Como o senhor sabe, diante da inação da justiça paraguaia que se seguiu às conclusões obtidas pela Comissão da Verdade e a Justiça, venho trazer uma queixa-crime diante da justiça da Argentina, como me permite o princípio da Justiça Universal, visando continuar meu combate aos torturadores de meu pais e, assim, fazer respeitar os Direitos Humanos no Paraguai.

Entre 13 e 14 de dezembro de 2013 será realizada no Senado Francês e no Palácio de Luxemburgo uma Conferência Internacional sobre a Operação Condor em parceria com o Coletivo Argentino pela Memória. Nesta ocasião estarei no local para proferir um discurso pelo XXIº aniversário da descoberta dos “Arquivos do Terror”.

Esta carta visa solicitar uma audiência com o Presidente da República francesa, Sr. François Hollande, quando de minha já referida viagem à França, para exprimir oficialmente minha profunda gratidão ao seu país por ter me acolhido durante meu exílio forçado entre 1979 e 1992.

Da mesma maneira desejaria exprimir meu reconhecimento por ter sido a França o primeiro país a reconhecer a importância de minha descoberta, única em seu gênero em nosso continente, me condecorando com a Ordem Nacional do Mérito em 14 de fevereiro de 1997.

Queira aceitar, Senhor Embaixador, a expressão de minha mais distinta consideração,

Dr. Martin Almada,
Prêmio Nobel Alternativo

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[*] Raul Longo - Nascido em 1951 na cidade de São Paulo, atuou como redator publicitário e jornalista nas seguintes capitais brasileiras: São Paulo, Salvador, Recife, Campo Grande e Rio de Janeiro, também realizando eventos culturais e sociais como a “Mostra de Arte Sulmatogrossense”, (Circulo Cultural Miguel de Cervantes/SP), “Mostra de Arte Latinoamericana” (Centro Cultural Vergueiro/SP) e o Seminário Indigenista (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul/CG). Premiado em concursos literários nacionais promovidos pelo Unibanco, Rede Globo e Editora Abril; pelo Circulo Cultural Miguel de Cervantes; e pelo governo do Estado do Paraná. Publicou Filhos de Olorum – Contos e cantos de candomblé pela Cooeditora de Curitiba, e poemas escritos durante estada no Chile: A cabeça de Pinochet, pela Editora Metrópolis de São Paulo. Obteve montagem de duas obras teatrais: Samba/Jazz of Gafifa, no teatro Glauce Rocha da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, em Campo Grande; e Graças & glórias nacionais, no Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo.Atualmente reside em Florianópolis, Santa Catarina.


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