Traduzido por João Aroldo
Doha. As
águas quentes do Golfo parecem tranquilas de onde estou sentado, mas
tal tranquilidade dificilmente reflete os conflitos que esta região
continua a gerar. A euforia da chamada Primavera Árabe já passou faz
tempo, mas o que restou foi uma região que é rica em recursos oprimida
com uma história facilmente manipulada que está em um estado de
transição imprudente. Ninguém sabe como será o futuro, mas as
possibilidades são amplas e, possivelmente, trágicas.
Em
minhas muitas visitas à região, eu nunca encontrei tal falta de clareza
quanto ao futuro, apesar do fato de que linhas de batalha foram
traçadas como nunca antes. Governos, intelectuais, seitas e comunidades
estão se alinhando em ambos os lados de várias divisões. Isto está
acontecendo em diversos graus em todo o Oriente Médio, dependendo da
localização do conflito.
Alguns
países são diretamente engolidos em conflitos sangrentos e definidores –
revoluções desencaminhadas, como no Egito, ou revoltas que se
transformaram em guerras civis das mais destrutivas como na Síria.
Inversamente, aqueles que foram poupados até agora da agonia da guerra,
estão bastante envolvidos no financiamento de várias partes em conflito,
transportando armas, treinando combatentes e liderando campanhas
midiáticas em apoio de uma facção contra outra. Já não existe um
conceito como objetividade midiática, nem mesmo em termos relativos.
No
entanto, em alguns casos, as linhas também não são traçadas com nenhum
grau de certeza. Dentro das fileiras da oposição síria ao regime Baath
em Damasco, os grupos são muito numerosos para serem contados, e suas
próprias alianças mudam em direções que poucos na mídia parecem notar ou
se importam em noticiar. Nós arbitrariamente escrevemos sobre uma
‘'oposição'’, mas na realidade não há plataformas políticas ou militares
verdadeiramente unificadoras, seja o Conselho Militar Supremo, Conselho
Nacional Sírio ou a Coalizão Nacional
Síria. Em um mapa interativo, formulado pela Al Jazeera provavelmente a
partir do que parecem ser conclusões por atacado, o conselho militar
“alega comandar em torno de 900 grupos e um total de 300.000
combatentes”. A alegação de controle real sobre esses grupos pode ser
facilmente contestada, e há diversos outros grupos que operam baseados
nas suas próprias agendas, ou unificados sob plataformas militares
diferentes com nenhuma obediência a qualquer estrutura política, não
àquelas em Istambul ou qualquer outro lugar.
É
fácil, contudo, associar conflito perpétuo com o Oriente Médio
supostamente inerentemente violento. Por quase duas décadas, muitos
avisaram que a intervenção norte-americana no Iraque eventualmente
‘'desestabilizaria'’ toda a região. O termo ‘'desestabilizar'’ foi
certamente relevante, já que Israel fez mais que sua parte para
desestabilizar diversos países, ocupar alguns e destruir outros. Mas os
prospectos de desestabilização política eram muito mais ameaçadores
quando o país mais poderoso do mundo investiu muito de seu poder e
recursos financeiros para fazer o trabalho.
Em
1990-91, depois novamente em 2003, e mais uma vez em 2006, o Iraque foi
usado como um campo gigante de experimentações de guerra, “construção
de estado” e guerra civil provocada pelos EUA. A região nunca havia
passado por tal divisão para acomodar linhas sectárias como então.
O
discurso que unificou a guerra norte-americana foi descaradamente
sectário da maioria xiita oprimida pela minoria sunita. Eles reorganizam
uma das paisagens políticas mais complexas do mundo dentro de algumas
semanas, com base em um modelo imaginado por “especialistas” em
Washington, com pouca experiência de vida real. Não só o Iraque foi
feito em pedaços, mas foi refeito várias vezes para acomodar a
compreensão inepta da história pelos EUA.
O
Iraque continua a sofrer, mesmo depois que os EUA supostamente
retiraram suas forças armadas. Milhares de pessoas morreram no Iraque
nos últimos meses, com as vítimas identificadas como membros de uma
seita ou de outra. Mas a doença do Iraque tornou-se uma doença regional.
E como os EUA quando invadem países soberanos e reorganizam as
fronteiras políticas, grupos como o Estado Islâmico do Iraque e al-Sham
(ISIS) operam onde quer que encontrem sua vocação, sem respeito pelas
fronteiras geográficas.
Formado
no Iraque, em 2006, como uma plataforma para vários grupos jihadistas
como a al-Qaeda no Iraque, ISIS tem sido um componente poderoso da
selvagem guerra em curso na Síria. Apesar de sua má reputação, parece
ter poucos problemas em encontrar o acesso e recursos. Pior ainda, em
algumas partes da Síria, ele opera uma economia pouco estável, que lhe
dá maior privilégio do que os grupos sírios caseiros.
Combatentes da al-Qaeda treinados na Somália combatendo na Síria |
Esses
grupos nunca teriam existido no Iraque, ou passariam com relativa
facilidade para outros países, se não fosse pela invasão dos EUA. Eles
funcionam como exércitos particulares, divididos em bandos menores de
combatentes aguerridos que são capazes de se orientarem através das
fronteiras e tomar o controle de comunidades inteiras. Al-Qaeda, um
grupo pouco conhecido há 12 anos, tornou-se uma das partes interessadas
no futuro de todos os países do Oriente Médio.
Para
os países que não estão submetidos ao tipo de agitação que está sendo
experimentado na Síria e no Iraque, eles, no entanto, entendem que é
tarde demais para desempenhar o papel de espectador. É uma guerra total
se desenvolvendo, e não há tempo para a neutralidade. Preocupantes
previsões da mudança da paisagem física da região estão em andamento e
poucos países parecem ser poupados.
A recente peça de Robin Wright no The New York Times, “Imagining a Remapped Middle East”,
é uma especulação típica feita pelas elites políticas e meios de
comunicação americanos sobre o Oriente Médio. Eles aplicaram a sério
antes e depois da invasão dos EUA no Iraque, onde eles retalharam o país
árabe de qualquer modo que fosse de acordo com os interesses dos
Estados Unidos, na típica fórmula dividir para governar. Desta vez,
porém, as perspectivas são assustadoramente sérias e reais. Todos os
grandes jogadores, mesmo que aparentemente opostos uns aos outros, estão
de fato contribuindo para a divisão plausível. De acordo com Wright,
não só os países poderiam se tornar menores, alguns dos territórios
retalhados poderiam fazer parte de países vizinhos.
Mesmo
cidades-estados - oásis de múltiplas identidades, como Bagdá, enclaves
bem armados como Misrata, a terceira maior cidade da Líbia, ou zonas
homogêneas como Jabal al-Druze no sul da Síria - podem ter um
ressurgimento, mesmo que tecnicamente dentro de países, escreveu Wright.
O infográfico que acompanha foi intitulado: “Como 5 países poderiam se tornar 14”.
Se
tais eventos nunca vão se realizar, a previsão mesma fala da inegável
natureza mutante do conflito no Oriente Médio, onde os países estão
agora envolvidos em guerra. As novas linhas de batalha são agora
sectárias, carregando os sintomas de uma guerra civil implacável do
Iraque. Na verdade, os jogadores são mais ou menos os mesmos, exceto que
agora o “jogo” se espalhou para ultrapassar fronteiras porosas do
Iraque até espaços muito mais amplos onde os militantes têm o domínio.
Daqui, as águas quentes do Golfo parecem calmas, mas só aparentemente.
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[*] Ramzy Baroud é editor do Palestine Chronicle.com. É autor de The Second Palestinian Intifada: A Chronicle of a People’s Struggle e de My Father Was a Freedom Fighter: Gaza’s Untold Story (Pluto Press,London).
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