4/10/2013, [*] M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Vladimir Putin e Barack Obama discutem a guerra na Síria no último G20 |
O
alto drama do aquecimento das relações EUA-Irã e a luta diplomática em torno das
armas químicas sírias não podem encobrir a realidade em campo, de que a guerra
da Síria está passando por mudança também dramática. Moscou percebe isso, o que
pode ter provocado o comentário do presidente Vladimir Putin, no início da
semana, quando disse que as coisas estão andando na direção certa.
Moscou
espera que, ao elaborar sobre a recente iniciativa russo-norte-americana para as
armas químicas sírias, o relacionamento EUA-Rússia consiga ascender a uma
trajetória de melhor qualidade.
Yury Ushakov |
Na
5ª-feira (3/9/2013), um assessor de Putin, Yury Ushakov, revelou que os
presidentes Putin e Obama talvez se encontrassem durante a reunião de cúpula da
APEC (Asia-Pacific Economic Cooperation) na 3ª-feira (8/10/2013)
em Bali, Indonésia. A iniciativa foi dos russos, “imediatamente aceita pelo lado
norte-americano”, e, embora ainda se esperasse alguma confirmação, disse
Ushakov, “achamos que a reunião acontecerá”.
Evidentemente,
Moscou não considerou a possibilidade de Obama ser forçado, por preocupações
políticas domésticas, a cancelar a viagem à Indonésia – o que ele fez.
A
guerra está mudando de curso
Simultaneamente,
a mudança tectônica pela qual passa a guerra síria foi exposta na 2ª-feira, em
matéria assinada pelo veterano correspondente do britânico The
Independent no Oriente Médio, Robert Fisk.
Fisk
noticiou que houve contatos entre elementos do Exército Sírio Livre [Free
Syrian Army (FSA)] de Aleppo e o
governo sírio, e que uma delegação de dois membros “rebeldes” viajou a Damasco,
sob garantia de segurança que lhes foi dada pelo governo sírio, para uma reunião
com alto funcionário do governo do presidente Bashar al-Assad.
Robert Fisk |
O
FSA já permite que prédios e instituições do estado sírio (escolas, por
exemplo), reabram e recomecem a funcionar em áreas de Aleppo ainda controladas
pelos “rebeldes”; e cessaram os combates entre o FSA e o exército sírio,
em várias áreas estratégicas da província de Homs.
Fisk
avalia que o número crescente de deserções das fileiras do FSA, de
rebeldes que se alistam em seguida na Frente al-Nusra, e a ascensão de grupos
islamistas extremistas desiludiram os rebeldes “moderados”.
Depois
de mim, o dilúvio
Nessa
linha de pensamento, o ataque massivo a igrejas cristãs em Raaqqa e o assalto
brutal à antiga cidade cristã de Maaloula, ações, nos dois casos, do grupo
al-Nusra, servem como duro sinal de alerta às capitais ocidentais. Na 6ª-feira,
bispos e patriarcas de toda a região reuniram-se em Beirute, para lamentar que a
Primavera Árabe se tenha “convertido em inverno de ferro e fogo” para os
cristãos do Oriente Médio.
Em
termos políticos, o que emerge é que:
v
A
dominação crescente, por grupos afiliados da al-Qaeda na Síria, põe EUA, Rússia
e Irã na mesma página, em matéria de hostilidade partilhada contra a
al-Qaeda;
v
Coletivamente
ou individualmente, se deve esperar que esses países providenciarão para impedir
que a Síria se torne base de campanha da al-Qaeda;
v
EUA
e seus aliados ocidentais podem até começar, afinal, a aceitar a ideia de sustar
o envio de armamento sofisticado para o FSA, por temor de que venham a
cair em mãos de grupos ligados à al-Qaeda;
v
O
anúncio recente da formação de uma “Aliança Islamista” de grupos extremistas
está disparando uma nova polarização, pela qual os elementos moderados e
seculares terão mais em comum com o governo do presidente Assad, que com grupos
jihadistas. Fisk noticiou que alguns membros do Exército Sírio Livre já formaram
uma chamada União Nacional para Salvar a Síria [orig. National Union for
Saving Syria], com a intenção de manter conversações com o regime de
Assad.
v
Com
o confronto cada dia mais violento entre jihadis e islamistas extremistas
– e há notícias de batalhas muito violentas – é o Islamismo como um todo que
perde espaço e prestígio como farol que possa iluminar o futuro da
Síria;
v
Assim,
até os estados regionais que apoiam os grupos islamistas extremistas na Síria
estão sendo obrigados a repensar. O saudita rei Abdullah já convidou o
presidente Hassan Rouhani do Irã a visitar a Arábia Saudita, na peregrinação do
Haj.
v
Com
tudo isso, o presidente Assad é quem mais cresce em estatura no tabuleiro
político. Além da capacidade para resistir que já demonstrou até agora, Bashar
al-Assad está também assumindo novo papel, como interlocutor da ONU, interessado
em garantir que a missão técnica que trabalhará nos arsenais químicos seja
bem-sucedida. Assad, afinal, já aparece claramente como o único personagem
político em todo esse quadro, capaz de fazer recuar o dilúvio da al-Qaeda na
Síria.
Democracia
em lombo de burro
Semih Idiz |
O
destacado colunista turco Semih Idiz, do jornal Hurriyet,
resumiu:
Temos de
encarar os fatos: há algum tempo, a guerra na Síria já não é guerra contra um
ditador brutal em nome de alguma democracia. Agora, é guerra em torno de se a
Síria será governada pela Xaria sunita, ou continuará a existir como país
secular, embora não como país secular democrático.
Curiosamente,
Sergei Ivanov, o poderoso chefe de Gabinete no Kremlin, deu versão semelhante,
mas diferente, numa conversa franca com jornalistas, na 2ª-feira. Disse que:
A
guerra entre o governo e a oposição parou [na Síria], há muito tempo.
E
prosseguiu:
Sergei Ivanov |
O
ocidente está começando a compreender que talvez a oposição [síria] tenha de ser
dividida, que é necessário parar de tentar convencer a al-Qaeda e outros grupos
extremistas a falar sobre Genebra-2 e que, de preferência, deve-se parar de
fornecer amas a eles. Primeiro, temos de dividir a oposição em duas metades, e
convidar os dois lados, o que se pode descrever como representantes de Assad e
uma oposição razoável, para que se possa iniciar o diálogo de
Genebra-2.
Então,
Ivanov considerou um prazo um pouco mais longo no futuro, e manifestou uma ideia
muito audaciosa:
É
claro que seria ingênuo e ridículo falar de livre manifestação de vontades na
Síria, mas se concordamos que é preciso reconhecer os fundamentos da democracia,
então vamos organizar eleições justas, semelhantes ao que foi feito no
Afeganistão. Se vocês se lembram, nas últimas eleições no Afeganistão, as urnas
e os documentos eleitorais eram entregues em lombo de burro, processo que durou
meio ano, e o processo de contagem dos votos demorou quase outro tanto. Estamos
dispostos a aceitar até isso! Mas, antes de tudo, eles têm de se acertar sobre
as regras do jogo.
Ironicamente,
é a Rússia que está pressionando na direção de a Síria organizar-se como
democracia liberal, no menor prazo possível, com eleições presidenciais já
previstas para acontecer em maio de 2014. E os EUA mantêm-se mudos.
O
governo Obama tem esperança de conseguir voltar ao problema sírio, mas só depois
de ter conseguido ver com mais clareza o que se passa no front iraniano.
Contudo,
o problema de Obama é outro, a saber, como vender essa intrigante ideia russa de
uma “solução afegã” para a questão síria, aos seus aliados regionais – Turquia,
Arábia Saudita e Qatar principalmente – que jamais esperaram que as coisas se
encaminhassem para esse extraordinário desfecho.
Por
sorte, se é a Arábia Saudita que está mais desatinada e desentendida por causa
dos movimentos de Obama, aí também a diplomacia russa pode ajudar. Na 2ª-feira,
Moscou recebeu um importante visitante, diretamente de Jeddah, Arábia Saudita –
o secretário-geral da Organização de Cooperação Islâmica [orig. Organization
of Islamic Cooperation (OIC)], Ekmeleddin
Ihsanoglu.
Ekmeleddin Ihsanoglu |
E
a OIC já tem o imprimatur do regime saudita. Durante a visita de
Ihasanoglu, a Rússia assinou um acordo amplo com a OIC, que permite
consultas bilaterais em questões chaves da agenda internacional, “incluídas as
questões de regular conflitos nos quais estejam envolvidos países-membros da
OIC”.
Uma
rede lançada bem aberta
Num
plano mais amplo, os russos esperam alcançar rapidamente o que Putin chamou, num
discurso na 3ª-feira (1/10/2013), de “realização partilhada” de Rússia e EUA,
para a eliminação das armas químicas sírias. A expectativa de Moscou era pôr em
pauta as conversações de paz para a Síria já na reunião em Bali entre Putin e
Obama. Ali os russos esperavam poder avaliar até que ponto Obama estaria
preparado para seguir a orientação da Rússia na questão Síria.
Evidentemente,
Obama também sabe que os russos estão lançando bem aberta a rede, em busca de um
engajamento russo-norte-americano de pleno espectro, que começaria pela Síria.
Fato é que, nos últimos 10 dias, houve duas reuniões de alto nível entre a
Rússia e a OTAN, para troca de ideias sobre a mudança dos planos para os mísseis
de defesa dos EUA anunciada em março de 2013 pelo secretário de Defesa, Chuck
Hagel.
[*] MK Bhadrakumar foi
diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União
Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão,
Uzbequistão e Turquia. É especialista
em questões do Irã,
Afeganistão
e Paquistão e escreve sobre temas de
energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais
The
Hindu, Asia
Times Online e Indian Punchline. É o
filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
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