sábado, 10 de julho de 2010

Confissões de repórter de campanha presidencial

Out. 2008, Michael Hastings [1], GQ [excertos selecionados e traduzidos por Caia Fittipaldi]

Na noite da véspera de começar minha carreira como repórter [da revista Newsweek, EUA] de campanha eleitoral presidencial, em setembro de 2007, acabei de ler The Making of the President de Theodore White, relato clássico da campanha eleitoral de 1960, que inaugurou nova era na reportagem política. O livro começa por um agradecimento: “Em primeiro lugar, aos políticos dos EUA – homens nos quais, ao longo dos anos, descobri os mais inteligentes, os mais gentis e, de modo geral, os mais honrosos companheiros (…). Em segundo, devo agradecer aos meus camaradas da imprensa – cujo trabalho, em todos os planos da política dos EUA, purifica, protege e renova nosso sistema, ano após ano.”

Ok, certo. Mas já lá se vão 48 anos, Sr. White. (...)

Antes da Super-3ª Feira [5/2/2008], fui mandado cobrir a campanha de Hillary, que disputava a indicação pelo Partido Democrata. Àquela altura, apesar das vitórias de Obama na Carolina do Sul e em Iowa, os coordenadores da campanha insistiam em que Hillary ainda teria chances. Então, Hillary ficaria por minha conta. (...)

Eu bem deveria ter previsto que acabaria ali: de pé, num vestiário público com mais de vinte outros jornalistas, assistindo a Eva Longoria, estrela do seriado Desperate Housewives, em circuito interno de TV, ela como apresentadora de um evento de campanha em Austin, Texas. Era dia 3 de março, véspera das primárias no Texas e em Ohio, e a equipe avançada de Hillary meteu a imprensa num banheiro masculino. Três mictórios e uma pia azul. Os repórteres acotovelam-se para abrir espaço para os laptops nas longas mesas de dobradiças, e havia um clima de surpresa, ainda divertida, entre toda “a imprensa”. Um sujeito do Chicago Tribune digitava de frente para um dos mictórios; um cameraman da CNN baixava vídeos. Às tantas, circulou uma “nota para a imprensa”: “Essas acomodações nã o devem, de modo algum, ser interpretadas como comentário sobre a qualidade da cobertura de mídia que estamos tendo.” (...)

A campanha de Hillary estava me matando. Sentia minha alma morrer mais um pouco a cada pausa para fumar, a cada refeição requentada que metia goela abaixo. E não conseguia parar de comer: por onde Hillary aparecesse, sempre havia comida à vista. Num dia de rotina, fazíamos de três a cinco viagens de avião, e cada vôo, mesmo que durasse apenas alguns minutos, incluía refeição a bordo. As campanhas carregam repórteres sempre (cada repórter é contabilizado ao custo de de 1.000 a 3.000 dólares por dia), e o preço inclui alimentação. Então, há comida em todos os aviões e eventos – pizza, sanduíches, cenouras, brócolis, potes de molho, cestas de batatas fritas e salgadinhos e salgadinhos. Eu me sentia meio obrigado a comer todas as porcarias que punham à minha frente, porque, afinal, custavam muito dinheiro. Mas as viagens também davam a sen sação de você viver num Gulag sobre rodas. Repórteres que viajam em campanhas eleitorais dependem completamente das campanhas para transporte, comida e cama – porque essa dependência é condição para que você esteja sempre à mão, para o caso de alguém querer lançar uma migalha de entrevista ou algum remotamente intrigante fragmento de informação.

A reportagem política baseia-se num conjunto altamente disfuncional de relações. Você precisa deles e eles precisam de você, mas, de algum modo, eles odeiam você e não confiam em você (e de outro algum modo, você também odeia todos e não confia em ninguém). Na minha experiência, boa parte disso pode ser sublimada, em forma de comida. Coma, encha-se, empanturre-se, porque você não sabe se, amanhã, haverá alguma coisa para você.

Apesar da atitude de sua equipe, Hillary, ela mesma, parecia ok. Era sempre mais gentil e engraçada e humana do que jamais esperei que fosse. Uma vez, sentei-me ao seu lado no avião, ela mastigando cenoura, uns pedacinhos grudados na boca. Tomou um cálice de vinho tinto e brincou: adoraria comer uma boa comida mexicana no Texas, mas teria de ser fresca, autêntica: “Não se pode comer comida mexicana embalada ‘para viagem’”, disse ela. Era como estar em casa de um amigo do ginásio, conversando com a mãe dele, uma mãe meio formal. E, verdade seja dita, jamais havia percebido que é bem alta. Durante anos via-a apanhar em público, às vezes, bater, e agora, lá estava ela, e esperava-se que fosse a próxima presidente. É confuso esse negócio de ser testemunha da história, a história ali, acontecendo à sua volta.

Mas toda a minha boa vontade desapareceu em Youngstown, Ohio. Estávamos num ginásio de esportes de uma escola, e Hillary estava sendo apresentada por Tom Buenbarger, presidente do Sindicato Internacional de Técnicos e Maquinistas e Trabalhadores Aeroespaciais. Membros do sindicato, trazidos de ônibus, gritavam e cantavam. Buffenbarger começou com um comentário sobre os apoiadores brancos de Obama. “Estou sabendo dos bebês chorões, que mamam leite, com seus Toyota Prius e sandalinhas Birkenstock para arrecadar dinheiro, reunidos para ouvi-lo falar!” Pensei, huh, acho que é comigo.

Buffenbarger continuou, uma conversa em que comparava Obama e Muhammad Ali, o mais conhecido negro norte-americano convertido ao islamismo por influência de Malcolm X. “Mas, irmãos e irmãs”, disse ele. “Não acreditem. Eu vi Ali lutar. Fez gato e sapato de Foreman naquele ring. Teria sido páreo duro para Liston, em qualquer ring. Norton quebrou-lhe o maxilar, e ele continuou na luta. Não se iludam. Barack Obama não é nenhum Muhammad Ali.” Havia denso racismo no comentário. Meu coração acelerou, meus ouvidos começaram a zumbir. Pela primeira vez naquela campanha, senti-me diretamente ultrajado. Será que estou exagerando, que estou interpretando mal? Estou vendo coisas? Não. Quem estivesse naquela sala e visse veria o que ali havia e não havia qualquer coisa diferente, ali, do que o que eu estava vendo.

Depois, as coisas pioraram. O trabalho para mostrar Obama como muçulmano prosseguiu. Apareceu uma foto de Obama vestido como somaliano; foi vazada para o Drudge Report; pouco depois, um assessor de Clinton foi mandado à televisão, para dizer que Obama deveria envergonhar-se de aparecer “em trajes de sua tribo”. Por fim, alguém inventou uma capa de revista, com foto adulterada, em que Clinton discursava, dizendo que todos os honestos trabalhadores brancos dos EUA deveriam votar nela. A campanha degenerou numa série de telefonemas furiosos, entre marketeiros de Obama e Hillary. Eu só pensava em sair daquilo tudo. Queria que Obama elegesse logo os delegados necessários, e acabasse aquela história. Mas Hillary não se via como derrotada, e por mais que a matemática mostrasse que já não havia saída, ela co ntinuava em campanha. Então, continuei a trocar e-mails e telefonemas com sua equipe, tentando cercar um ou outro, para ver se entendia o que estava acontecendo, o que andaria na cabeça de Hillary. Mas já não me interessava entrevistá-la. Não queria que ela pensasse que eu ainda acreditava que ela pudesse vencer. Não queria fingir que estaria entusiasmadíssimo por ser “parte da história”.

Nessas semanas finais, contudo, tive duas conversas que vale a pena contar. Estava conversando com alguém da campanha sobre Bill Clinton e o impacto que tivera na campanha. “Você acha de deveríamos tê-lo mandado à Africa?”, ele perguntou. “Em fevereiro. Você acha que deveríamos tê-lo mandado à África? Discutimos muito sobre isso.”

“Ele teria concordado?” perguntei.

“Nunca. Não iria, de jeito nenhum. Ninguém nem teve coragem de consultá-lo. Mas discutimos muito...”

Soube também que o jogo de cartas preferido de Bill Clinton já não é Hearts. Agora, só joga Oh Hell [aproximadamente “Que se dane...”], jogo de cartas em que todos os jogadores só cuidam dos próprios interesses, embora, como diz a regra “vez ou outra pode acontecer de o jogador perceber que terá mais a ganhar se ajudar outro jogador”. Clinton jogava a dinheiro. O cacife, quase sempre, de 50 dólares. O vencedor podia ganhar 400 dólares. Todos, na campanha, garantiam que teria memória fotográfica, e incrível capacidade para calcular probabilidades, “de cabeça”. Mas, quando se sentia encurralado, diziam, sem saída, sempre tentava algum acordo. “Clinton detesta ser ferrado”, contou-me um de seus parceiros de jogo. “Sempre tenta alguma barganha . Detesta ser ferrado.”

Que se dane.

A história do jogo resume a frustração que Bill e Hillary sentiram e que, de um momento em diante, tornou-se palpável. Por que a mídia nos odeia? Por que, diabos, Obama está crescendo? Por que, diabos, perdemos em Iowa? Por que, diabos, não estamos vencendo?

Quanto a mim, a pergunta era “por que, diabos, estou cobrindo isso?”

Só na noite da primária de Indiana, dia 6 de maio, a campanha afinal convenceu-se de que estava acabado. Sim, venceram em Indiana, mas por pequena diferença. Estávamos no avião, de volta a Washington, e passou por mim um porta-voz de Hillary, Jay Carson. Não conhecia Jay, mas tinha ouvido dizer que Leonardo DiCaprio o encarnaria, como personagem, em filme sobre a campanha de Howard Dean em 2004 – o que é praticamente um elogio, naquele mundo.

Na decolagem, Jay surfou pelo corredor do avião, de pé sobre uma bandeja. Todos foram-se embriagando e melhorando de humor. Comi um Butterfinger Nestlé. Jay começou a falar com jornalistas e, de repente, alguém, da rede ABC, disse “Russert acaba de dizer que o candidato é Obama.”

Não ouvi a resposta de Jay, mas seu rosto, por um instante, mostrou surpresa.

Quando afinal pousamos em Washington, todos os repórteres davam sinais de imenso alívio. Todos tínhamos de pensar sobre a próxima cobertura, mas, pelo menos por algumas horas, estávamos livres. Só faltava saber quando Hillary faria o discurso final, em que reconheceria Obama como candidato. E então, a mais obcecada, a mais incapaz de reconhecer uma evidência dentre todas as mulheres do mundo político marcou um evento de campanha em West Virginia, na manhã seguinte. Significava estar no aeroporto, às 6h da manhã, para embarcar. Eram 3h da manhã. “Mas que porra de ideia é essa?” os repórteres se perguntavam. “Será que ela ainda não sabe que perdeu?” “Ninguém contou a ela?” Peguei minha sacola e fui para casa.

Poucos dias depois, perguntaram-me se me interessava cobrir a campanha de McCain. Talvez devesse ter ido. Seriam só uns poucos meses. E eu estaria praticamente no colo da história. Andaria ao lado de Sarah Palin, teria assistido à absoluta loucura que foi a convenção em St. Paul; ganharia poltrona na fila do gargarejo, para assistir à ridicularização total da imprensa. E acabaria por realmente odiar jornalistas de campanha e suas crenças arrogantes, baseado, eu, desgraçadamente, em acurada leitura do passado e convencido de que eles mentem na nossa cara e nós engolimos.

Lembro-me de um parágrafo da autobiografia de Bob Novak, The Prince of Darkness: “Aparentemente em pouco tempo, logo chegaria meu 30º aniversário, para obrigar-me a ver, sombriamente, que não passo de um foca.” Bom, pense-se o que se pensar dele, acabou por tornar-se um dos mais influentes jornalistas políticos de seu tempo. Quanto a mim? Como escaparei do destino de foca? Poderia continuar a recolher o material que me mandam recolher, e posso tentar escrever sobre o que vi, de modo a me sentir honesto, já sabendo que tudo será diluído ou cortado. No frigir dos ovos, jamais será a história que eu quereria contar. Trabalhei na campanha de Hillary por quase um ano e, acho, o melhor que tenho a oferecer são algumas histórias sobre Bill Clinton. Mas acho que aprendi tudo o que é preciso saber sobre cobertura de campanhas eleitorais.

Para voltar a Teddy White, devo dizer que a história da qual fui parte jamais teve coisa alguma a ver com purificar, proteger e renovar. Assim sendo, caí fora.


O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Hack: Confessions of a Presidential Campaign Reporter

Nota de tradução:
[1] Michael Hastings é autor do artigo
The Runaway General”, publicado em Rolling Stone 22/6/2010 (em inglês
) e considerado causa de o general McChystal ter sido demitido do comando geral das forças dos EUA e Otan, no Afeganistão. Sobre Hastings, ver “Sobre Michael Hastings e o jornalismo nos EUA” - 30/6/2010, em português/Brasil.