sábado, 10 de julho de 2010

Encontro de amigos

O motivo inicial foi o câncer. Descobriram, de repente, que um deles poderia desaparecer, definitivamente desaparecer. Que todos desaparecem, mais cedo ou mais tarde, não tinham nenhuma dúvida. Todos, algum dia, todos todos todos sem dúvida um dia iriam, num futuro remoto, sumir. De morte morrida, matada ou suicídio. Todos. Mas uma coisa, que só a lógica humana explica, uma coisa é todos desaparecerem. Outra, bem distinta, era desaparecer um deles, um indivíduo conhecido, com quem viveram, conviveram, alguém íntimo, sim, outra bem distinta era desaparecer aquele indivíduo chato, aborrecido, mas que tinha, “ah, todos temos”, algo de humano e amoroso. E como se não bastasse, um alguém com a embaraçosa qualidade de ser “um dos nossos”.

- Saturnino pegou um câncer!

- Como foi isso?

Era a pergunta imediata, que vinha como resposta. Isso queria dizer: o que foi que ele fez de errado? Sim, alguma e algumas ele deveria ter feito. Está vendo? não se cuidou, é o pau que dá: não se cuidou, usou e abusou de extravagância, está aí, câncer. E isso queria também dizer, nós, que nos cuidamos, que seguimos dietas saudáveis, que praticamos exercícios físicos, que caminhamos, que fazemos amor dentro dos limites, que bebemos pouco, que comemos só o necessário, nós, a caminho da imortalidade, não, nós nos cuidamos.

- Como foi isso?

Vamos, queriam dizer, comprove-nos o quanto ele errou, o quanto não erramos nós, o quanto … não diziam, mas pela progressão da exigência de fatos explicadores poderiam dizer, o quanto ele é culpado do câncer que pegou.

- Ele mesmo não sabe. Havia deixado de beber, fazia cinco anos que não fumava, fazia caminhada, vivia de casa para o trabalho, do trabalho para casa, estava com uma vida de santo. E câncer!…

- Ele estava sentindo alguma coisa?

Era a pergunta seguinte, porque isso também queria dizer, vamos, enumere urgente os sintomas que não temos.

- Nada, ele não sentia nada. Absolutamente nada. Entende? Nem uma só dorzinha, nem o mais leve mal-estar, nada.

Ah, e como um fel que se masca e mastiga, diziam ah, e isso queria dizer o quanto a doença era traiçoeira, o quanto ela avançava em silêncio, como um fila, pior, pior que um cão fila brasileiro, porque ao sentir as dores da mordida o indivíduo está no ponto final. Ah, então foram lembrando, aos poucos, sem reunião, sem que se comunicassem, como uma reflexão coletiva, como um pensamento que corre sem que se enuncie, o quanto outros males vinham se anunciando. Ah. Todos haviam ultrapassado os sessenta anos. Bolívar estava com regurgitação, e isso queria apenas dizer que não podia mais comer como antes, o que engolia voltava, contra a sua vontade. (Mas isso era melhor que o câncer!) Elísio estava com uma palpitações estranhas no peito, depois que recebera umas pontes de safena. Três, três pontes, mas benditas, porque isso ainda era melhor que um câncer. Isaltino fizera uma cirurgia remodeladora do estômago, da vesícula, extraíra um dos rins, essas coisas secundárias, que não se sabe por que temos dois, que felicidade, divorciado de alguns órgãos, mas paciência, isso, ainda assim, era melhor que um câncer. Vespúcio, com receitas infalíveis de vida saudável, alimentação milagrosa, chás de ervas de qualidades ainda não descobertas, exercícios e meditação budista, estava a caminho de perder o equilíbrio mental. Demente, mas saudável, diziam-se. Será um atleta sênior, com um sorriso idiota, mas de qualquer modo isso ainda era muito melhor que um câncer.

Sim, mas ainda aqui, nesse levantamento em que tudo era o melhor dos mundos, porque ausente de câncer, e o mundo com tal ausência era o paraíso sem a oposição do satanás, ainda aqui, descobriram, se deixassem de ter como referência o mal maior, se voltassem os olhos para a vida de quando jovens, ah, se se comparassem aos que nada têm, ah. Era de amargar. Fel que não dava nem para mascar com aparência de jovens com chicletes. Ah. Porque então se deram conta, terrível novidade, que já haviam vivido mais que 70% dos seus melhores anos.

- Setenta? Olhe, você está sendo muito otimista, contestou Elísio. Olhe, para alguns de nós, estamos nos dez por cento finais.

Então decidiram fazer uma reunião de amigos. Um reencontro. A pretexto de uma solidariedade ao infeliz que sofrera o que não queriam , resolveram ter um reencontro, antes que fosse tarde. E aqui, somente aqui, nos dez por cento finais começa a nossa história. Porque aqui começam as novas dificuldades.

A começar pela estrela, o canceroso. Não queria falar com ninguém. Danem-se! “Deixem-me em paz”, espalhem aos quatro cantos, “esqueçam-me, eu quero ficar sozinho, eu quero morrer só, eu estou sentindo um fedor de hipocrisia, vão pra puta que os pariu”.

- Ele não está bem do juízo, dizia a sua esposa, ao telefone.

- Por quê? Ele está agressivo, quero dizer, ele está mais agressivo do que antes?

- Não, ele só quer ouvir João Gilberto.

- Ah, então o caso é sério, e desligavam.

Mas não desistiram de, aqui e ali, fazerem uma ligação. E ele, melhorou? Diga-lhe que todos desejamos vê-lo, revê-lo, que todos torcemos por ele, que ele é muito importante para nós… e demais frases e fórmulas de adulação, que por serem corteses, educadas, são enganosas, mas guardam, por isso mesmo, o doce gosto de uma consolação.

- Como foi mesmo que ele disse? o paciente impaciente perguntava à esposa.

- Que você é importante para eles.

- Mas você disse antes que ele disse que eu era “muito, muito importante”.

- Sim, eles disseram assim: ele é muito importante para nós.

- Só isso?

E continuavam o assédio, por mensagens, por mails. Exageravam, no estímulo: “Levante a cabeça, o câncer é uma doença como qualquer outra”. Isso muito, muito o irritava. Uma doença qualquer?! Respondia, no mesmo tom: “Recomendo ao amigo essa doença qualquer. É uma bobagem, é como uma gripe, um sarampo”. E vinha outro, com estímulo semelhante: “Todos vamos morrer…”. Que consolo. E vinha uma bondosa amiga: “Existem uns passes de energia, com os dedos, feitos com a proximidade das mãos, que conseguem uma cura revolucionária”. (E aqui, mesmo no esoterismo, não se perdia o jargão de antigos militantes da esquerda: passes de energia, esotéricos, mas “revolucionários”.). E outro: “Melhore o humor, homem. Eu tenho uma tia, que com bom humor…”, o que seria algo, o paciente resmungava, algo como a cura do câncer pela risada. E se imaginava numa câmara de cócegas. Nela, um médico com máscara de cirurgião, como um boneco de marionetes, lhe anunciava: “A terapia das cócegas venceu a sua doença”.

Ao fim, no entanto, de 90 longos dias os amigos venceram. Aconteceu de repente, naquele que desejava ficar sozinho, morrer sozinho, como se a morte não fosse em si uma imensa solidão, aconteceu de repente no homem de vidro uma saudade, uma vontade de beber, um desejo imenso de rever os amigos, de entrar com eles em um bar, num café do quadro de Van Gogh. De conversar bobagem, de ver suas caras, como se fosse pela primeira vez. Está certo, como se fosse a última ou a penúltima vez. E pediu que marcassem o dia, o dia e a hora para o reencontro. Então os safados, surdina e quixotescamente, disseram-lhe, por mail, que as esposas não iriam. Que esse era um encontro tão-só e somente deles, sem mulheres, para melhor, não diziam, mas era isto, para melhor delas poderem falar. E quem sabe, talvez, possibilidades aos sessenta anos de idade abertas, se energias e fogo houvesse, talvez, quem sabe, a fuga para um bar que fosse um quadro de Toulouse-Lautrec. Com muito can-can. Ah…

As mulheres não aceitaram a condição, estava escrito. Dizia uma:

- Então eu sou boa para ser enfermeira. Mas não para companheira…

Dizia outra:

- O que vai fazer um bando de homens juntos?

Ao que outra completava:

- Procurar mulher, é claro.

A isto respondiam com protestos os amigos, com sentidos e ofendidos protestos:

- Que é isto? Assim você nos ofende. Mulheres já temos. Vocês já nos preenchem, completamente… (Até o pescoço, até a fronte, acenava um safado, por trás.)

E quando pensavam que haviam vencido, numa tola esperança, porque desconheciam que ao fim e ao cabo as mulheres sempre vencem, quando pensavam que com tais declarações de amor conjugal haviam vencido, eis que vinha a carga, mais pesada:

- Um bando de homem junto, sem mulher… Então vão dar o cu! Quem vai comer o cu de quem? Era bom saber. Quem come quem?

- Minha querida, em nossa idade….

- Não perca a esperança. Velhice é desespero!

Então houve um grau supremo de apelação. Os amigos proferiram discursos comoventes, que argumentavam com um mundo só de homens, de recordações só masculinas, de necessidade imperiosa de se fazer um balanço sentimental desde a infância, de se contar fatos vexatórios que os homens não contam às mulheres, “vocês também possuem o seu mundo, entendem?”, discursos verdadeiros e mentirosos, demagógicos e grandiosos, de ternura e de raiva em iguais proporções. Inútil. Como diria mais tarde o sociólogo do grupo, a passar a mão no ventre esvaziado do rim esquerdo e de pedaços dispensáveis do estômago, como diria ele, a passar a mão pelas cicatrizes do abdômen, “o impasse estava configurado”. E completava:

- O amor é guerra, bicho. Se você se fizer de fraco, a mulher monta, monta e não desce. Então eu virei a mesa, e gritei: “Eu vou, eu vou de qualquer forma e jeito! Eu vou sozinho. E fim!”.

Mas se o amor é guerra, o vencedor não é o que grita mais alto. Pelo contrário. Todos tiveram a generosa permissão de ir sozinhos, “era uma questão de princípio, disso não abro mão”, proclamavam. Mas sob a condição, o que não se disseram nem exaltaram, de deixarem a informação exata do bar, do local, da hora, e com os telefones celulares acesos, dentro da área de cobertura. Sozinhos, mas… Liberdade condicional, sob controle remoto e vigiada. Então chegaram.

Estavam jovens, joviais e serelepes. E aqui a mão que escreve oscila entre o cômico e a comoção. A flor breve da juventude havia murchado. Todos estavam de cabelos grisalhos, com exceção de um, cujos cabelos enegrecidos deviam ser objeto de muita tinta e cuidados. Ativos, pesados, ágeis, mas só no olhar, na rapidez com que os olhos evitavam questões desconfortáveis.

- Você é feliz?

- Eu sou um homem prático.

E se olhavam, e se mediam, “será que estou tão velho quanto ele?”.

- Você está com a mesma cara! (Era o supremo elogio, porque o corpo não era mais o mesmo). É impressionante.

- Você acha? A gente se acostuma com o espelho e não nota. É preciso que outra pessoa diga. Você acha mesmo que estou com a mesma cara?

Feitas as “apresentações”, as retomadas dos contatos, voltaram então as brincadeiras, as ácidas e pesadas brincadeiras, ferinas, uma herança da adolescência.

- Como você faz para ficar assim tão jovem?

- Eu? Alimentação, alimentação saudável e exercícios.

- Sei, pão, queijo e café?

- Não, eu já notei que você não come frutas. Vai ver que foi por isso…

Ia dizer que “foi por isso que pegou um câncer”, mas suspendeu a frase. Ao que o atingido responde:

- Então comi errado nos meus últimos sessenta anos. Sim, como devo comer? Ensine-me, como devo comer?

A ironia não é percebida, porque o cultivador de “saúde é tudo, em primeiro e perimeiríssimo lugar saúde”, passa a enunciar uma receita:

- Olhe, pela manhã, um copo de suco de laranja, uma folha de couve, uma fatia de pão de centeio. Seis ovos de codorna, uma xícara de chá preto. E limão. Pode usar e abusar do limão, se quiser. Limão é muito bom para as artérias, até pra potência.

- Limão? – Todos se interessam na mesa . – Limão?

- Sim, limão.

- Via oral, você quer dizer.

- Claro, por onde seria? E água, muita água. A receita da felicidade é a água.

- Água água?

- Sim, água, água. Bebam 8 copos de água por dia. Mas o ideal são dois litros de água. Limpa a pele, desintoxica, emagrece, lubrifica e dá tesão.

- Água mesmo, sem aditivo?

E entra-se então no capítulo de observações que se apresentam como gerais, como se dissessem respeito a outros.

- Há pessoas que na maturidade, no envelhecimento, não, porque todo velho é feio, mas há pessoas que na maturidade ficam melhores de aparência. Já notaram?

- Já, não é o teu caso.

- Mas você disse que a minha cara era a mesma.

- Então, isto mesmo: estás tão feio quanto antes.

Riem. E as vítimas rodam, substituem-se, como num jogo de bola, de “doidinho”, em que um indivíduo perde a bola para outro, e passa a tentar recuperá-la, que vai de um pé a outro, em roda.

- Você se lembra do dia em que o ladrão invadiu a sua casa?

- O ladrão jamais invadiu a minha casa.

- Então foi pior. Você pensava que o ladrão havia invadido. Você ficava a pular, de coluna a coluna da sala, com uma faca de mesa, sem ponta, a gritar para a sua filha: “o que é, porra?, o que é, porra?”. Aparentemente, era o chefe do lar a pôr ordem na histeria da filha, apavorada. Na verdade, eram anúncios para o ladrão, “vá embora, desgraçado, por favor vá embora, que estamos acordados”.

Riem.

- Mas o pior foi no outro dia. A filha lhe perguntou: “papai, por que o senhor ficou a pular, de uma coluna para outra?”. E a resposta: “era para o ladrão errar a pontaria do revólver”. Mas dizes bem: jamais houve ladrão em tua casa. Houve só o terror.

Então os casos, os “doidinhos” se sucedem. Até a exaustão, até o ponto em que os ridículos de cada um são mais do que conhecidos, e por isso perderam o interesse, ou então, são conhecidos, mas não se dizem, mesmo na bebedeira, porque ainda ferem, magoam, mesmo sendo cômicos. Ninguém diz, por exemplo, que a miséria humana, sexual, era tamanha na juventude que galinhas pretas, no quintal, eram adoradas pelas frestas do banheiro do quintal, em vigorosas masturbações. Ninguém diz tampouco que um deles recebeu um falso bilhete, onde uma enamorada teria marcado um encontro, e que ele ao comparecer ao local, perfumado e em sua melhor roupa, recebeu uma sonora vaia dos colegas. Isso não se diz. Nem tampouco a miséria material de outro, que para comer um prato de carne, deixou-se masturbar por um homossexual. Não, isso ninguém diz. Não se fala tampouco de casamentos que não deram certo, de filhos separados, fodidos, longe. Não se diz. Porque isso ficou além do ridículo. Porque há uma lâmina fina que separa o riso da dor. O limite talvez seja o ridículo que dói.

Então descobre-se que, por nada, os senhores sessentões ficaram sentimentais, estupidamente sentimentais, brutalmente sentimentais, que por nada choram, de repente choram, em meio a um relato aparentemente objetivo, trivial, perdem a voz, ficam com a voz embargada, e não conseguem avançar, param de falar. Escondem o rosto, vão ao banheiro, e voltam com a cara inchada e os olhos vermelhos. E então se dá um silêncio, e uma vontade imensa de gritar:

- O que é, porra?!

Mas não se grita, porque o grito seria um berro de menino sem mãe, órfão. Então sem aviso, começa-se a cantarolar, como se estivesse marcado, como se fosse uma música marcada no script do encontro, o Hino de Batutas de São José:

“Eu quero entrar na folia, meu bem

Você sabe lá o que é isso?

Batutas de São José, isto é parece que tem feitiço.

Batutas tem atrações que ninguém pode resistir

Um frevo desses bem faz demais a gente se distinguir.

Deixa o frevo rolar

Eu só quero saber

Se você vai ficar

Ai, meu bem, sem você

não há carnaval

Vamos cair no passo

E a vida gozar”

E repete-se o refrão, com os braços nos ombros, os velhos, os jovens amigos:

- Vamos cair no passo, e a vida gozar.

Então a voz começa a fraquejar. Então começa uma saída para o banheiro. Então começam a virar a cara, uns para os outros, a se ficarem de costas, a buscar um lenço.

- O primeiro a chorar é bicha. O primeiro a chorar é veado, certo?

- Certo.

E o banheiro começa a se encher de amigos. Até que um deles desaba, literalmente desaba e se põe num pranto alto. O choro contagia, todos os amigos se contaminam. Num fiozinho de voz, alguém diz:

- O nosso mundo está indo. O nosso mundo está se acabando.

Cai uma chuvinha fina, de fim de tarde, no bar que seria o Café de Van Gogh, se fosse de noite, em Arles, em setembro de 1888. Mas é um bar em Olinda, onde o mar bate, insensível àquele bando de velhos que acenam para um mundo que não volta. Um celular toca. Toca, chama, em vão. Silêncio, só murmúrio dos homens que choram. Todos estão fora da área de cobertura.

Surrupiado do Urariano Mota