segunda-feira, 19 de julho de 2010

Moahamed Hassan: Tudo o que não devia saber sobre a Eritreia

Moahamed Hassan: Tudo o que não devia saber sobre a Eritreia

Grégoire Lalieu e Michel Collon
19.Jul.10
MOHAMMED HASSAN

Todo o Corno de África está ocupado pelas potências neo-coloniais. Todo? Não! Um país povoado de irredutíveis revolucionários resiste ainda e sempre ao invasor. Nesta última parte do nosso capítulo consagrado à Eritreia, Mohamed Hassan revela-nos a receita da revolução eritreia. Um país africano pode desenvolver-se deixando as multinacionais à porta? Por que razão continuam tensas as relações entre a Eritreia e o seu vizinho etíope? O presidente Isaias Afwerki é um herói da revolução ou um ditador que censura os media?


Grégoire Lalieu e Michel Collon (GL e MC): - Após trinta anos de luta, a Eritreia torna-se independante e a Frente de Libertação do Povo da Eritreia (FPLE) sobe ao poder em 1993. Como vai a FPLE assumir a transição entre a resistência armada e a governação política?
Moahamed Hassan (MH): - Desde o início, a FPLE nunca se contentou em conduzir uma luta armada contra o ocupante etíope, mas antes desenvolveu um verdadeiro projecto político: reforma agrária, emancipação das mulheres, instauração de conselhos democráticos nas aldeias… Em todas as zonas que controlava, a FPLE instalava estructuras para acorrer às necessidades elementares em matéria de saúde, educação ou alimentação. Logo que a Eritreia se tornou independente, a FPLE continuou a conduzir o projecto político iniciado durante a luta independentista. Com uma filosofia muito própria: «Não temos necessidade do Ocidente para nos desenvolvermos».
De facto, para conquistar a sua independência, a Eritreia teve de lutar praticamente sozinha contra todas as grandes potências: Estados Unidos, União Soviética, Europa, Israel… Todos estes países apoiavam o ocupante etíope. Esta situação particular contribuiu para forjar a visão política dos resistentes eritreus e ensinou-os a desenvencilharem-se de forma autónoma. Eles sabem, por experiência própria, que as potências neocoloniais dividem os Africanos para melhor se apoderarem das riquezas do continente. Por isso, a Eritreia escolheu prosseguir uma política de desenvolvimento que não deixa lugar às ingerências das potências estrangeiras.

GL e MC: - E isso funciona? Um país africano pode desenvolver-se sem ajuda do Ocidente?
MH: - Evidentemente! Neste momento, festejam-se por toda a África os cinquentenários de independência. Mas, na realidade, o continente nunca se libertou do colonialismo, que apenas tomou outra forma. Hoje em dia, graças a instituições como a OMC, o Ocidente impõe regras de comércio que permitem às suas multinacionais pilhar as riquezas da África e escravizar as populações. Estas multinacionais inundam o continente de produtos subvencionados que impedem os produtores locais de se desenvolver. E tudo isso é possível porque à cabeça da maior parte dos Estados africanos, minorias pro-ocidentais tiram proveito deste sistema, enquanto a imensa maioria da população está condenada à miséria. Portanto, sim, um país africano pode desenvolver-se sem ajuda do Ocidente. Porque, enquanto não tirar o seu capacete colonial, o Ocidente continuará a ser um entrave ao desenvolvimento da África.

GL e MC: - Podemos falar de «revolução eritreia»?

Certamente. O governo impulsionou um modelo de desenvolvimento assente em cinco pilares. Primeiro, a segurança alimentar: A Eritreia não pode defender a sua soberania nacional se a sua população estiver a morrer de fome. Para isso, o país pode contar com duas heranças do colonialismo italiano : a agricultura de sequeiro e a economia das plantações assente num sistema mecanizado. Além disso, uma reforma agrária atribuiu a cada camponês o seu próprio pedaço de terra. O governo instalou também estações de tractores à disposição dos agricultores e propôs até de os ajudar no seu trabalho. A agricultura é um ofício penoso, sobretudo quando se dispõe de equipamentos rudimentares. Mas com a ajuda do governo, os camponeses podem libertar tempo para aprenderem a ler e a adquirir formação noutras actividades.

O acesso à água potável é o segundo pilar deste plano. Na África, numerosas doenças estão ligadas à insalubridade da água. Mas é possível remediar isso pondo água potável à disposição em todas as aldeias.

E chegamos assim ao terceiro pilar: a Saúde. A Eritreia dispõe duma rede funcional de clínicas disseminadas por todo o país e conectadas aos hospitais. Além disso, o acesso aos cuidados de saúde é gratuito. Podemos fazer uma comparação com a Etiópia, onde, se não tiveres muito dinheiro, morres! E ainda… U cantor célebre, o Johnny Halliday etíope, sofria de sérios problemas de diabétes. As autoridades fizeram-no transportar dum hospital a outro, mas não dispunham do material necessário para o tratar. Resultado: a estrela etíope morreu.

O quarto pilar assenta na Educação, uma prioridade do governo que quer desenvolver os seus recursos humanos. Na África, muita gente perdeu de vista que os recursos materiais não chegam, por si sós, para desenvolver um país. Evidentemente, que isso convém muito às potências imperialistas que sempre fizeram crer que eram indispensáveis aos africanos para os ajudar a tirar proveito dos seus recursos materiais. Mas o factor humano é primordial para o desenvolvimento e a Eritreia quer, por isso, dispor do seu próprio pessoal competente para explorar as suas matérias-primas.

O último pilar é constituído pelos eritreus expatriados que enviam dinheiro às suas famílias no país. De passagem, pagam uma percentagem ao governo, o qui constitui uma fonte considerável de rendimentos. A CIA tentou de quebrar esta rede de financiamento mas não teve êxito.

GL e MC: - Estes expatriados pagam, assim, duas vezes os impostos: uma vez no país de residência e uma segunda vez ao governo eritreu ?
MH:
- Sim, mas sabem que este dinheiro servirá nomeadamente para construir escolas, estradas e hospitais e não uma villa para o presidente Isaias Afwerki, que dispõe de um trem de vida modesto. Além disso, estes expatriados estão muito ligados ao seu país e sabem a quem devem a libertação da Eritreia. A mobilização da população, tanto no interior, como no exterior do país, é um factor essencial da revolução eritreia. É o cimento que sustenta os pilares do modelo de desenvolvimento.

Um exemplo: quando os italianos colonizaram a Eritreia, construíram uma linha de caminho de ferro ligando o porto de Massawa à capital, Asmara. Mas durante a guerra de Independência, os etíopes retiraram uma parte do aço desta linha ferroviária e danificaram-na com a construção des trincheiras. Quando a Eritreia se tornou independente, o governo propôs-se reconstruir esta via estratégica. Sociedades ocidentais propuseram tomar conta dos trabalhos, mediante o pagamento de somas colossais, que chegavam aos 400 milhões de dólares! A Eritreia respondeu: «Não, obrigado. Vamos reconstruí-la nós mesmos». Todo o povo se mobilizou, jovens, mulheres, velhos… E reconstruíram esta linha, que funciona de novo. Qual foi o custo dos trabalhos? 70 milhões de dólares. A ideia é fazer tudo o que pudermos nós próprios, para não depender das potências estrangeiras. Por outro lado, a Eritreia é talvez o único país do mundo onde não há especialistas estrangeiros.

GL e MC: - A Eritreia seria então a prova que um país africano pode libertar-se do neo-colonialismo para se desenvolver?
MH: -
De facto, tudo depende das prioridades definidas. Se fizermos da saúde, da educação ou da segurança alimentar objectivos prioritários, podemos desenvolver-nos. Se, pelo contrário, como acontece em muitos países africanos, as preocupações fundamentais forem no sentido de nos sujeitarmos às normas do comércio mundial, estamos perdidos!

John Perkins, antigo membro respeitado do mundo bancário, escreveu uma obra apaixonante, «Confissões dum assassino económico» (1). Perkins descreve de que forma o seu trabalho consistia em auxiliar os Estados Unidos a extorquir biliões de dólares aos países pobres, emprestando-lhes mais dinheiro que o que eles podiam reembolsar. Se alguém que dirige um país do Sul aceita estes projectos de instituições como o Banco Mundial ou o FMI, a sua economia será completamente desestabilisada, a corrupção desenvolver-se-á e os imperialistas colocar-lhe-ão a corda ao pescoço. Por isso, hoje em dia, antes mesmo de enviar a CIA para desestabilisar um governo tido como demasiado independente, são mobilizados em primeiro lugar estes assassinos económicos. Em qualquer sítio onde haja corrupção, o imperialismo teve sucesso. E o governo eritreu luta activamente contra isso.

GL e MC: - A Eritreia compõ-se de diferentes etnias. Como consegue o governo mobilizar a população ultrapassando esta diversidade, já que esta é uma fonte de discórdia em numerosos países africanos?
MH: -
A igualdade entre as nacionalidades é um princípio fundamental da revolução eritreia. Se a diversidade é respeitada e todas as etnias e confissões são colocadas em pé de igualdade, podemos contar com o apoio da população. Na Eritreia, Há tantos cristãos como muçulmanos e nada menos que nove etnias diferentes : Tigres, Afars, Kunama, Saho, etc. Mas todos se sentem eritreus antes de mais. A cultura desempenha igualmente um papel muito importante. Os dirigentes eritreus sempre tiveram na devida conta a diversidade cultural, encorajando cada etnia a valorizar as suas tradições e a partilhá-las. Por toda a África, gentes de etnias ou de religiões diferentes se matam entre si. Mas na Eritreia, organizam espectáculos de dança!

GL e MC: - Com os vizinhos etíopes, o entendimento não é tão bom, infelizmente. Porque persistem as tensões?
MH: -
A Etiópia é actualmente dirigida pela minoria Tigre que, nos anos 70, tinha formado um movimento separatista, a Frente Popular de Libertação do Tigre (FPLT), e combatido a ditadura militar de Mengistu ao lado dos eritreus. Todavia, ao contrário da Eritreia que era uma antiga colónia italiana, a região do Tigre sempre foi parte integrante da Etiópia. Os resistentes eritreus também aconselharam os seus companheiros de luta a não se baterem apenas pela libertação da sua comunidade, mas pela de todos os seus concidadãos, fosse qual fosse a sua nacionalidade. Além disso, a FPLE tinha consciência que uma independência do Tigre não teria forçosamente implicado a libertação da Eritreia. Era necessária uma mudança de regime em Addis-Abeba e os resistentes deviam unir esforços nesse sentido.

Em 1991, a ditadura militar foi derrubada. Graças à ajuda e aos conselhos dos eritreus, os Tigres tomaram o poder. Até aqui, a Etiópia tinha sido sempre dirigida por minorias étnicas actuando na defesa dos seus interesses próprios. Todos pensavam que o novo governo iria romper com esta tradição e aplicar o princípio da igualdade entre as diferentes nacionalidades, condição essencial para trazer a paz e o desenvolvimento ao país. Mas o primeiro ministro Meles Zenawi, que dirige o país desde 1991 e que acaba de ser reeleito através de eleições fraudulentas, inseriu-se na mesma linha dos seus antecessores: Ménélik II, Sélassié ou Mengistu. Não tem qualquer visão política e governa de acordo com os seus próprios interesses. Mantém-se no poder apenas graças ao apoio dos Estados Unidos.

GL e MC: - Como vimos no capítulo anterior, a Etiópia do imperador Sélassié era um aliado privilegiado dos Estados Unidos. Mas com a ditadura militar de Mengistu, o país inclinou-se para o lado da URSS. Como voltou então a passar para a esfera de influência americana ?
MH: -
A União Soviética cometeu um erro, ao apoiar o regime dito socialista de Mengistu. Os Estados Unidos, pelo contrário, tinha uma visão mais correcta da situação. Sabiam que o regime etíope não dispunha de base social e era, em consequência, muito frágil. De facto, as potências imperialistas não podiam sonhar com uma situação melhor, porque um governo que não representa a diversidade do seu povo e que age apenas no interesse duma minoria, não poderá manter-se no poder sem o apoio de potências estrangeiras. Washington conhecia bem a natureza do regime de Mengistu e alimentava, por isso a esperança que a Etiópia regressasse ao seu círculo de influência. Evidentemente, com a chegada ao poder de Meles Zenawi, as esperanças foram largamente ultrapassadas! O novo governo, não só actua em defesa dos seus próprios interesses e não dispõe de qualquer base social, como destruiu todas as instituições herdadas de Mengistu, esvaziando o corpo do Estado da sua substância. Hoje em dia, por isso mesmo, Zenawi está totalmente dependente do apoio financeiro, militar e diplomático dos Estados Unidos. Em consequência, nada pode recusar-lhe. Washington quer instalar uma base militar? Ok, de acordo! Washington pretende que o exército etíope invada a Somália? Ok, de acordo Nem sequer há negociações. Washington pede, Zenawi executa. É completamente o contrário do que a Eritreia deseja para o Corno de África: o fim das ingerências estrangeiras. É por isso que a Eritreia recusa normalizar as suas relações com o seu vizinho etíope. Certamente que a Eritreia preconiza o diálogo entre os actores regionais para resolver os conflitos e estabelecer as bases duma cooperação. Mas enquanto um dos actores continuar a ser uma marionete manipulada por Washington, este projecto não será realizável.

GL e MC: - No entanto, após a queda de Mengistu em 1991, houve acordos de cooperação entre a Eritreia e a Etiópia. Porque é que não funcionaram?
MH: -
É verdade, os países assinaram acordos de livre-comércio: eliminação gradual das barreiras económicas, cooperação nos sectores financeiro e monetário, livre circulação de pessoas, etc. Com a independência da Eritreia, a Etiópia encontrou-se privada dum acesso ao Mar Vermelho. Mas esses acordos permitiam aos etíopes dispor livremente dos portos da Eritreia. Em Assab, por exemplo, a taxa de emprego de etíopes era muito elevada. A Etiópia pode até abrir nesta cidade quatro escolas funcionando de acordo com o seu próprio programa escolar.

Os dirigentes eritreus pensavam verdadeiramente poder construir uma colaboração frutuosa com os seus homólogos etíopes. Conheciam-se bem, tinham combatido juntos. Mas não contavam com a falta de visão política de Meles Zenawi, nem com a sua submissão ao imperialismo americano.

GL e MC: - Em pouco tempo, a Eritreia e a Etiópia passam da cooperação à guerra. Um conflito fronteiriço opõe os irmãos inimigos em 1998. O que estava em jogo nesta guerra ?
MH: -
A questão da fronteira não passava dum pretexto invocado por Zenawi para tentar derrubar o governo eritreu. Esta fronteira é uma das melhor demarcadas da África. Foi repetidamente traçada e confirmada por meio de acordos concluídos entre os colonos italianos e o império etíope no início do século XX. Serviu igualmente para demarcar o território eritreu, primeiro como entidade federada, e depois como província da Etiópia. Foi internacionalmente reconhecida.

Mas Meles Zenawi pôs em causa a sua validade em finais dos anos 90. Até aqui, Isaias Afwerki, o presidente eritreu, não valorizou grandemente esta questão e pensava que o mesmo se passava com o seu homólogo etíope. Afwerki sabia que a fronteira estava claramente definida e que por outro lado, a sua importância era muito relativa, tendo em conta os acordos entre os dois países estabelecendo a livre circulação de pessoas. Também considerava que os défices sócio-económicos a ultrapassar na região eram mais essenciais.

As coisas também se complicaram quando a Etiópia tentou anexar as zonas contestadas e impor uma legitimidade de facto: Addis-Abeba produziu um mapa do Estado etíope incluindo de largas extensões do território eritreu e intensificou as suas incursões militares nas regiões disputadas, expulsando ou aprisionando os habitantes. Em Maio de 1998, escaramuças entre patrulhas ao longo da fronteira degeneraram em conflito aberto. A Eritreia venceu as primeiras batalhas e recuperou rapidamente o controlo dos territórios contestados. E por aqui se vê bem como Asmara e Addis-Abeba interpretavam o conflito de maneira diferente. Para a Eritreia, tratava-se claramente dum conflito fronteiriço: uma vez recuperados os seus territórios, manteve as suas posições, esperando que as instâncias internacionais viessem confirmar que o país estava no seu direito. Isto acontecerá em 2002, quando o Tribunal de arbitragem internacional de Haia deu razão à Eritreia sobre o traçado da fronteira. Para a Etiópia, pelo contrário, as motivações desta guerra eram muito diferentes. Tratava-se, de acordo com as declarações de dirigentes etíopes, de «pôr fim à arrogância eritreia», «de infligir uma punição» e de «castigar duma vez por todas» a FPLE.

GL e MC: - É o que explica as importantes ofensivas do exército etíope lançadas de seguida ?
MH: -
De facto. Depois que a Eritreia retomou o controlo dos seus territórios, os combates continuaram episodicamente. Mas em 12 de Maio de 2000, o exército etíope lançou uma nova ofensiva, aumentando os seus efectivos de 50 mil para 300 mil homens. Addis-Abeba tinha ainda reorganizado o seu comando e gasto quase um mil milhões de dólares em armamento. O campo de batalha estendia-se à nessa altura muito para lá das zonas contestadas na fronteira. O conflito fronteiriço tornou-se, de facto, uma verdadeira guerra de invasão. A Etiópia não pretendia reaver o controlo de territórios disputados, mas fazer cair o governo. Tinha também escolhido cuidadosamente o momento para atacar: o período em que os camponeses começam as sementeiras. Penetrando na região mais fértil da Eritreia, o exército etíope pretendia fazer fugir os camponeses e provocar a fome no país.

Esta guerra foi efectivamente uma catástrofe humanitária, mas a Etiópia não conseguiu tomar a capital Asmara. Suplantados em armas e em número, os combatentes eritreus recorreram às suas antigas técnicas de guerrilha e expulsaram o invasor.

GL e MC: - Porque razão queria Meles Zenawi derrubar o governo eritreu?
MH: -
Zenawi queria fazer da Etiópia a potência dominante do Corno de África e assegurar uma base social de apoio. Na Etiópia, o poder está concentrado nas mãos da minoria Tigre, que apenas representa 6% da população. Além disso, os dirigentes no poder em Addis-Abeba estão muito longe da sua região de origem. Na capital, não dispõem do apoio da população, nem das elites. Com esta guerra contra a Eritreia, Zenawi contava forjar a ocasião de reincarnar o sonho do império etíope e obter o apoio das multidões. Durante um tempo, isto deu resultado: as contradições que emergiam no seio da sociedade etíope deram lugar ao patriotismo. Mas a derrota do exército etíope e os seus métodos de combate depressa fizeram ressurgir as desigualdades.

De facto, enquanto os oficiais eram Tigres, a maior parte dos soldados provinham das etnias Oromos e Amharas, as mais importantes demograficamente. Durante a grande ofensiva lançada contra a Eritreia, os oficiais etíopes utilizaram a táctica da vaga humana herdada da Primeira Guerra Mundial. Esta técnica consiste em enviar, contra as posições defendidas, um número de tal maneira importante de soldados que o inimigo é submerso. Evidentemente, as perdas humanas são enormes e a História mostrou que esta táctica tem os seus limites. Mas os oficiais Tigres do exército etíope não tiveram isso em conta e enviaram estupidamente para a morte milhares de Oromos e de Amharas, sem conseguir dominar o adversário. Para Zenawi, a derrota face à Eritreia e as contradições no seio do Exército deitaram por terra as suas esperanças de construir uma base social. Apenas pode contar com o apoio duma parte da comunidade Tigre, o que não é grande coisa. A sua reeleição é antes de mais surpreendente. As fraudes foram manifestas e a oposição ao regime está em crescimento. Quanto tempo mais poderá ainda Zenawi reprimi-la?

GL e MC: - O último escrutínio etíopie foi manchado por irregularidades. Mas, na Eritreia, nunca houve eleições presidenciais desde a independência, em 1993. Também não existe oposição política, um partido único governa o país. A Eritreia é uma ditadura?
MH: -
Na África, os partidos políticos não existem e a democracia multipartidária não funciona. Primeiro, porque este modelo político cria divisões. No Congo, por exemplo, há quase tantos partidos políticos como habitantes. O fim de de tudo isso é o de dividir as pessoas, já não por tribus como antigamente, mas por partidos políticos. São democracias de baixa intensidade.

Depois, o multipartidarismo não funciona em África porque este modelo de democracia é um cavalo de Tróia para os imperialistas. As potências neocoloniais falseiam o jogo democrático, financiando os candidatos que melhor corresponderão às suas exigências: acesso às matérias-primas para as multinacionais, alinhamento pela política estrangeira, etc. Com o multipartidarismo em África, os imperialistas dizem todos os quatro ou cinco anos :«Ide votar nestes candidatos que nós seleccionamos para vós. Eles vão empobrecer-vos e matar-vos. Votai neles!»

A questão é esta: a democracia multipartidária é um ideal ao qual todos os países devem imperativamente chegar ou antes, qualquer Estado é livre de escolher o sistema político que melhor lhe convém, tendo em conta as suas especificidades, a sua história e a sua cultura? Tendo em conta a disparidade étnica e religiosa na Eritreia e o facto que a mobilização é um componente essencial do modelo de desenvolvimento, é preciso privilegiar um sistema que reforce a unidade do povo. Portanto, um sistema de partido único corresponde melhor às especificidades da Eritreia que o multipartidarismo.

GL e MC: - No Ocidente, temos frequentemente tendência a acreditar que o nosso modelo de democracia é o melhor conseguido. Erradamente, na sua opinião?
MH: -
A democracia que os Ocidentais promovem é uma democracia de minorias. O poder não está no parlamento nem nos partidos políticos. Está por detrás, concentrado nas mãos dos que têm o dinheiro, fazem girar a economia e financiam os partidos. Mas esta elite económica jamais foi submetida ao sufrágio universal. No entanto, é ela que detém a maior fatia do poder. É isto democrático?
Um exemplo muito simples: a publicidade para as crianças. Estudos científicos demonstraram que a publicidade destinada às crianças tem um efeito negativo no desenvolvimento dos mais pequenos. Se a população fosse correctamente informada sobre este assunto e se lhe pedissem para se pronunciar sobre a questão, sem dúvida que escolheria a interdição deste tipo de publicidade. No entanto, a maior parte dos governos ocidentais sempre rejeitaram esta ideia sob a pressão dos lobbies. Vemos assim, claramente, como os interesses da elite económica se sobrepõem à vontade popular.

No seu livro «Os Estados falhados», Noam Chomsky preocupa-se com o défice democrático dos Estados Unidos. Não voltaremos à eleição, no mínimo estranha, de Georges W. Bush face a Al Gore em 2000. Meles Zenawi não teria provavelmente feito melhor. Chomsky relata um outro facto esclarecedor. Quando a administração Bush apresentou o seu orçamento, em Fevereiro de 2005, um estudo revelou que as posições populares estavam no pólo oposto das políticas seguidas. Onde o orçamento aumentava, a opinião pública desejava que ele diminuísse (defesa, guerras no Iraque e no Afganistão, dependência do petróleo, etc.). Pelo contrário, onde a opinião pública desejava que o orçamento crescesse, este diminuía (educação, redução do défice, apoio aos antigos combatentes, etc.).

Seria demasiado longo analisar aqui todas as lacunas das democracias ocidentais. Mas crer que este modelo é a panaceia, é muito pretensioso e está longe da realidade. A vice-ministra da Cultura da Bolívia propunha recentemente uma definição pessoal da democracia: «Um país é democrático quando as necessidades fundamentais de todos as seus cidadãos estão satisfeitas». Se adoptarmos esta concepção, o Ocidente tem muito a aprender com a Eritreia em matéria de democracia.

GL e MC: - O presidente Isaias Afwerki conduziu a resistência contra a Etiópia e preside o país desde a sua independência. Não prometeu eleições ?
MH: -
O presidente disse que o país tem necessidade de democracia mas que para ir ao encontro dessa necessidade, é necessário primeiro estabelecer estruturas de base. A Eritreia é um jovem país, ainda marcado pela guerra contra a Etiópia. Nada é perfeito, há um caminho a percorrer. Na minha opinião, a Eritreia é uma democracia popular, onde as pessoas têm acesso aos cuidados de saúde, não se arriscam a morrer ao beber um copo de água, têm trabalho, comida, energia eléctrica… Prefiro viver num país como este, que numa dita democracia como o Congo ou a Etiópia. E se, apesar de tudo, a Eritreia é considerada como uma ditadura, prefiro viver sob uma tal ditadura. Para mim e para os meus filhos, porque sei que não lhes faltará nada e que poderão ir à escola.

GL e MC: - O governo eritreu é amiúde criticado sobre a questão dos direitos do Homem e nomeadamente sobre a liberdade de culto. Além das quatro religiões reconhecidas pelo Estado (Igreja Ortodoxo da Eritreia, Igreja católica, Igreja evangélica luterana da Eritreia e Islão), todos os outros grupos religiosos são interditos. Como explica esta posição do governo?
MH: -
As outras religiões não são interditas, mas se alguém pretender aderir a um culto além dos autorizados pelo governo, deve entregar um pedido específico e entregar um dossier mencionando nomeadamente as fontes de financiamento estrangeiro. Trata-se, na verdade, duma medida de protecção do governo contra as religiões exportadas que servem interesses políticos, principalmente a religião protestante e a corrente pentecostal.

O pentecostismo veio directamente dos Estados Unidos e está muito ligado à extrema-direita americana que rodeava o presidente Georges W. Bush. Em nome da liberdade de culto, este vírus ataca a juventude africana para a destruir, promovendo o sucesso material e exacerbando o individualismo.

Muito próximas dos valores anglo-saxónicos, estas religiões exportadas para África sempre serviram interesses políticos, permitindo à Grã-Bretanha e principalmente aos Estados-Unidos infiltrar a sociedade africana. Já em 1946, o cônsul geral de França no Congo belga se inquietava: «o governo americano fingindo não afastar os missionários do seu verdadeiro apostolado, serve-se deles para alargar a sua influência sobre os países do centro-oeste africano. (…) Não existem dúvidas que os missionários dispõem de fundos consideráveis e que os autóctones serão desse modo atraídos para a órbita americana».

Actualmente, as técnicas foram melhoradas com o método Pizza Land! Imagine: eu sou um missionário protestante americano e desembarco em África. Reparo em jovens eloquentes e recruto-os. Eles são muito pobres, basta-me uma pequena quantia de dinheiro para os converter. De qualquer forma, compro-os. De seguida, envio-os para os Estados Unidos, para escolss de marketing próximas da sociedade Pizza Land, uma firma agro-alimentar que pratica técnicas de marketing muito agressivas. Formados, os meus jovens pregadores regressam a África, onde irão começar o seu trabalho de conversão, fazendo numerosos discursos, criando grupos de música, montando emissões de televisão… Os Estados-Unidos delinearam este projecto de influência que tomou amplitude por todo o mundo.

A Eritreia luta contre isto, porque esta religião está muito centrada na riqueza material e no individualismo. Alguns destes pregadores passeiam-se de 4×4 e exibem relógios de ouro: é preciso demonstrarem que foram abençoados pelo Senhor! Mas em Asmara, pregamos o bem-estar geral e a solidariedade. Por outro lado, o serviço militar é obrigatório na Eritreia e é complementado por um serviço civil durante o qual os jovens participam na construção de hospitais ou ajudam os agricultores no seu trabalho, por exemplo. Mas o governo começou a confrontar-se com problemas quando jovens protestantes se recusaram a cumprir estas tarefas, sob o pretexto que a sua religião o proibia. Eis então porque hoje em dia, na Ertreia, se pode aderir à religião que se queira, mas é preciso primeiro abrir o jogo. O governo não quer que a juventude se deixe infiltrar por este vírus.

GL e MC: - Mesmo agindo para o bem-estar da população e do país, o governo não deveria permitir a livre opção aos seus cidadãos ?
MH: -
Não podemos falar de opção quando os missionários oferecem dinheiro a pessoas que não têm quase nada. Quando não se tem nada, não nos podemos dar ao luxo de fazer opções. Optamos naturalmente pela solução que nos parece mais vantajosa. É quase uma questão de sobrevivência. Pode parecer estranho, visto do Ocidente, que um Estado imponha restrições em matéria de liberdade de culto. Mas na África, nos países que conhecem a miséria, não se pode falar de livre escolha quando os missionários protestantes compram as pessoas para as converter, infiltrar a sociedade e ingerir-se nos assuntos públicos.

GL e MC: - Um outro ponto sobre o qual a Eritreia é regularmente criticada: a liberdade de imprenssa. Porque são interditos no país os média privados?
MH: -
Os média privados africanos não existem. Para lançar um média privado, é necessário um capital importante e concorrer com os grupos mediáticos ocidentais num mercado liberalizado. É praticamente impossível para os pequenos Estados do Sul. Nos anos 70, numerosos países do Terceiro Mundo tinham denunciado o imperialismo cultural de que eram vítimas, ou seja, segundo o especialista da comunicação Herbert Schiller: «o conjunto dos processos pelos quais uma sociedade é introduzida no seio do sistema moderno mundial e a forma como a sua camada dirigente é levada, pela sedução, pela pressão, pela força ou pela corrupção, a moldar ou a promover as instituições sociais para que elas correspondam aos valores e às estruturas do centro dominante do sistema». A Unesco lançou então a Nova Ordem Mundial da Informação visando reequilibrar os fluxos de informação através do planeta. Mas os países ocidentais boicotaram esta iniciativa. A Grâ - Bretanha e os Estados Unidoss chegaram a abandonar a Unesco.

Os países ocidentais ocupam, portanto, uma posição hegemónica no mundo da informação e utilizam os média como arma de propaganda ao serviço dos seus interesses no Terceiro Mundo e particularmente em África. Este género de prática teve início com os fascistas italianos nos anos 20. E durante a Segunda Guerra mundial, o grande Mufti de Jerusalém foi convidado a falar no programa árabe da Rádio Roma para incitar os povos colonizados a erguerem-se contra o inimigo britânico. Os países imperialistas retiraram ensinamentos desta propaganda de guerra e as tecnologias foram melhoradas. E tão bem que , actualmente, a BBC tem um programa internacional muito completo. E a Voz da América, o serviço de difusão internacional do governo americano, está muito presente em África, emitindo em amarico, tigrinia, somali, etc.

Evidentemente, estes grandes média internacionais, quer dependam directamente do seu governo, quer pertençam a ricos capitalistas, não vão lançar flores aos países do Sul que procuram resistir ao imperialismo. É por isso que, no desejo de se proteger desta guerra mediática onde os países não lutam todos com armas iguais, a Eritreia tomou a decisão de interditar os média privados.

GL e MC: - A criação da Al Jazeera não veio reequilibrar um pouco as desigualdades Norte-Sul no mundo da informação ?
MH: -
É verdade. E muitos outros media árabes se seguiram. Mas recentemente, o Congresso dos Estados Unidos produziu um relatório muito esclarecedor sobre o perigo destes media árabes. O relatório afirma que estas televisões que reportam a realidade no terreno, no Iraque nomeadamente, veiculam ideias anti-americanas e influenciam a opinião pública americana. O Congresso acha que se trata de televisões terroristas que é necessário proibir. Portanto, os imperialistas criticam a ausência de media privados na Eritreia e inundam os países do Terceiro Mundo com as suas informações. Mas recusam que, por outro lado, os media do Sul possam informar os cidadãos ocidentais. Porquê? A liberdade de expressão só será boa quando serve os interesses das potências imperialistas? Os governos ocidentais têm alguma coisa a esconder à sua população sobre o que fazem no Sul?

GL e MC: - Além da inexistência de média privados, a Eritreia é acusada de manter um grande número de jornalistas na prisão. O governo está pouco aberto à crítica?
MH: - Antes de mais, seria necessário poder verificar os números avançados. Depois, é preciso esclarecer que muitas pessoas se fazem passar por jornalistas, mas na verdade estão ao serviço das potências imperialistas. Um deles, por exemplo, trabalhava directamente para a embaixada americana. A Eritreia é um país soberano que procura desenvolver-se. Mas alguns, a coberto do jornalismo, tentam de manipular a opinião pública e desestabilizar o governo. Os serviços secretos americanos sustentam tudo isso. Tentam infiltrar a sociedade eritreia e incitam os jovens a fugir do país. A ideia por detrás disto é que se a maior parte dos jovens deixar o país, o exército será enfraquecido, a economia deixará de funcionar e o governo será derrubado. Esta técnica não é nova. Foi já aplicada a Cuba. Na Venezuela igualmente, os serviços secretos americanos financiam meios de comunicação anti-Chavez, partidos de oposição, ONG críticas em relação ao governo, etc. Os Estados Unidos sempre procuraram desestabilizar os governos que não alinham pela sua política.

GL e MC: - A reacção do governo eritreu não é demasiado dura? Enquanto jornalista, em França posso criticar o governo, e não serei preso por isso.
MH: -
Não será preso, mas se as suas críticas forem verdadeiramente pertinentes, não verão nunca a luz do dia. Os seus artigos serão publicados em sítios de informação alternativa ou em panfletos, por exemplo. E chegarão a um público muito reduzido, quando comparado ao que vê as informações da TF1, por exemplo. Se quiser exprimir-se nestes grandes media capitalistas, terá de contar o que eles querem ouvir. Portanto, duma certa maneira, já está na prisão.

Certamente que pode inquietar-se sobre a falta de liberdade na Eritreia. Mas pergunte-se: como reagiria a Bélgica se o Irão financiasse grandes cadeias de televisão apelando ao derrube do governo e ameaçasse constantemente bombardear Bruxelas? Como reagiria a França, se Cuba apoiasse grupos terroristas que tentassem assassinar Nicolas Sarkozy? Como reagiria Washington se a Venezuela financiasse e formasse grupos políticos e sindicatos de oposição nos Estados Unidos? É muito duvidosos que os cidadãos ocidentais continuassem a usufruir das mesmas liberdades. Nos Estados Unidos, nem sequer foi necessário chegar a um tal estado para que o governo votasse um conjunto de leis liberticidas, como famoso Patriot Act, supostamente para lutar contra o terrorismo.

Certamente que pode inquietar-se sobre a falta de liberdade na Eritreia. Mas pergunte-se: como reagiria a Bélgica se o Irão financiasse grandes cadeias de televisão apelando ao derrube do governo e ameaçasse constantemente bombardear Bruxelas? Como reagiria a França, se Cuba apoiasse grupos terroristas que tentassem assassinar Nicolas Sarkozy? Como reagiria Washington se a Venezuela financiasse e formasse grupos políticos e sindicatos de oposição nos Estados Unidos? É muito duvidosos que os cidadãos ocidentais continuassem a usufruir das mesmas liberdades. Nos Estados Unidos, nem sequer foi necesario cegar a um tal estado para que o governo votasse um conjunto de leis liberticidas, o famoso Patriot Act supostamente para lutar contra o terrorismo.

GL e MC: - Finalmente, a Eritreia parece-se muito com Cuba. Isaias Afwerki e Fidel Castro, o mesmo combate?
MH: -
É verdade que ambos lutaram para libertar o seu país antes de serem presidentes. Lançaram uma revolução social em favor do povo. E tanto a Eritreia como Cuba são bastiões contra o imperialismo. O que lhes vale serem fulminados pelos Estados Unidos.

Tal como faz contra Cuba, Washington desenvolve uma campanha contra a Eritreia, criticando por exemplo, a sua falta de democracia. Os sistemas políticos são, de resto, bastante parecidos em Havana e em Asmara. Mas as críticas de Washington têm o mesmo fundamento?

François Houtart, contava recentemente este episódio: um deputado luxemburguês, de visita a Havana, tinha-lhe confessado ter encontrado mais democracia em Cuba que no seu próprio partido! Porque, para lá da existência dum partido único e da longevidade de Fidel Castro nos assuntos políticos, existe uma quantidade de instâncias democráticas, noutros escalões. A mesma coisa é válida igualmente para a Eritreia, onde, desde a luta pela independência, a FPLE instalou conselhos democráticos nas aldeias, derrubando a ordem feudal e promovendo a emancipação das mulheres que passaram a poder participar na gestão política.

GL e MC: - Outro cavalo de batalha dos USA contra Cuba e contra a Eritreia: a questão dos direitos do Homem. Neste caso, trata-se ainda de uma técnica de propaganda?
MH: -
A preocupação manifestada pelos Estados Unidos pela questão dos direitos do Homem é rapidamente desmascarada quando observamos a política externa deste país. Washington preocupa-se com o respeito dos directos do Homem em Cuba e na Eritreia, mas apoia a Arábia Saudita onde uma mulher que seja violada é condenada a chicotadas e metida na cadeia. Apoia a Colômbia, onde os opositores políticos e os sindicalistas são massivamente assassinados. Apoia o ditador Islom Karimov que manda ferver até à morte os dissidentes no Uzbequistão. E a lista é comprida…

Por outro lado, os Estados Unidos não devem nada a ninguém em matéria de tortura. O que se passa no Afeganistão, no Iraque ou nas prisões secretas da CIA, de alguma forma mancha a armadura do cavaleiro branco USA.

Enfim é preciso ainda recordar que a carta dos Direitos do Homem comporta igualmente direitos sócio-económicos. Por exemplo, «Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para assegurar o seu bem-estar e o da sua família, nomeadamente para a alimentação, o vestuário, o alojamento, os cuidados médicos, bem como os serviços sociais necessários». Estes direitos sócio-económicos, os Estados Unidos militam para os retirar da carta. Segundo Jeane Kirkpatrick, antiga embaixatriz americana junto das Nações Unidas, (os Direitos do Homem) são uma carta ao Pai Natal. Poderíamos, com efeito, perguntar qual dos países - Eritreia, Cuba ou Estados Unidos - respeita mais os direitos do Homem. Quando desembarcamos no aeroporto de Havana, podemos ver um cartaz com esta legenda: «Esta noite, 200 milhões de crianças vão dormir na rua, mas nem uma só é cubana». Nos Estados Unidos pelo contrário, famílias americanas foram despejadas das suas casas por culpa dos bancos e do Estado, que desregulamentou o sector financeiro. Em França, «país dos Direitos do Homem», há cerca de 800 mil sem-abrigo. A questão dos Direitos do Homem é um argumento a que recorrem frequentemente as potências imperialistas para tentar desacreditar os seus inimigos. Mas tudo isso é muito hipócrita. Dito isto, esta instrumentalização não deve impedir nenhuma crítica ao governo eritreu, que tem ainda um caminho a percorrer. Simplesmente, temos de desconfiar, quando um país como os Estados Unidos utiliza a questão dos direitos humanos para conduzir uma política de guerra.

GL e MC: - Os Estados Unidos sempre lutaram contra Cuba para evitar que outros países na América Latina sigma o exemplo. Actualmente, Washington mostra as mesmas inquietações relativamente à l’Eritreia. Pensa que a revolução eritreia e o seu modelo de desenvolvimento poderiam inspirar outros países em África e libertar o continente do néo-colonialismo?
MH: -
Cada país tem as suas especificidades. Uma revolução não se exporta tal e qual. No entanto, esta vontade de se libertar das potências imperialistas deverá inspirar outros governos na África. O continente dispõe de enormes riquezas. Note ainda que a visão política da Eritreia é regional. O país não quer dar lugar a que haja interferências das potências estrangeiras, mas tem perfeita consciência que não pode desenvolver-se sozinho. Todos os países do Corno de África devem mobilizar-se e resolver as suas contradições pelo diálogo. A região é rica e está bem situada. Poderá vir a ser um pólo económico muito importante. A crise somali poderá igualmente ser resolvida se abordarmos o problema nesta perspectiva regional. É o que a Eritreia tenta fazer, mas os imperialistas esforçam-se para bloquear este projecto que lhes mete medo. Então os Estados Unidos acusam Asmara de apoiar terroristas e levantam a Etiópia contra os seus vizinhos. Imagine se a zona de livre comércio entre a Eritreia e a Etiópia se tivesse estendido ao Sudão, ao Djibouti, ao Quénia e mesmo ao Uganda. Teríamos tido aí um grande mercado, com abundantes recursos, sem intervenção das potências ocidentais e ligado aos países árabes e ao mercado asiático.

Já existiu uma experiência nos anos 60: o Quénia, o Uganda e a Tanzânia criaram um mercado comum com acordos de livre troca. Mas os imperialistas, tomados de medo, organizaram um golpe de Estado no Uganda, colocando Idi Amin Dada no poder em 1971. Um ano mais tarde, o projecto de mercado comum afundava-se e todos os seus países membros entravam em crise. Quanto ao Uganda, atravessou uma guerra civil durante longos anos. O facto é que o imperialismo e particularmente o imperialismo USA, é o pior inimigo da região. Enquanto existir esta interferência, a Eritreia terá problemas. Mas se os actores regionais conseguirem pôr-se de acordo com a Eritreia, mesmo só a 50%, as coisas mudarão completamente. Haverá um enorme salto económico, que terá efeitos muito para lá do Corno de África!

* Mohamed Hassan, diplomata etíope, é especialista de geopolítica e mundo árabe.Este texto foi publicado em: Tout ce que vous ne devriez pas savoir sur l'Erythrée

Tradução de Carlos Coutinho para ODiario.info