sexta-feira, 4 de março de 2011

A Fraternidade Muçulmana: novas luzes para o Egito

Mahan Abedin

4/3/2011, Entrevista a Mahan Abedin, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


A Fraternidade Muçulmana (Ikhwan Al-Muslimeen) foi fundada em 1928. Ao longo de 80 anos, tornou-se organização política, social e religiosa com enorme e profunda influência em todo o Egito, onde nasceu. A Fraternidade Muçulmana também é movimento internacional com ramos em vários países árabes e no ocidente. 

A derrubada do presidente Hosni Mubarak em fevereiro e o período de governo de transição que se iniciou no Egito abriram caminho para que a Fraternidade Muçulmana participe ainda mais plenamente na vida nacional do Egito. Depois de décadas de repressão, a Fraternidade prepara-se para beneficiar-se o mais possível do sistema político emergente. 

Ibrahim Mounir
Ibrahim Mounir nasceu em 1937 no Egito. É formado em Direito e sempre trabalhou como advogado. Ligou-se à Fraternidade Muçulmana ainda na adolescência, e passou por todos os vários escalões da organização. Hoje, é dos mais antigos e prestigiados membros do comitê executivo, Maktab Al-Irsha (“Comitê de Orientação”) do movimento Fraternidade Muçulmana.

Mahan Abedin: Na sua opinião, os protestos no Cairo e em outras cidades, chegaram às ruas cedo demais? 
Ibrahim Mounir: A revolução ainda está em andamento. A multidão nas ruas foi indispensável para derrubar Mubarak. Nos estágios seguintes da revolução talvez sejam necessárias outras formas de protesto e resistência. 

MA: Em que medida se pode falar de mudança de regime no Egito? 
IM: Mubarak saiu do palco, mas a estrutura do regime permanece. Mas é estrutura frágil, sem filosofia ou ideologia que lhe dê sustentação. 

MA: Parece que o regime egípcio voltou aos pontos de apoio de sempre, ou seja, às forças armadas. O exército egípcio diz que conduzirá o processo de transição e preparará o terreno para a democracia. Os comandantes militares são confiáveis? 
IM: Em princípio, confiamos no exército. Ponto importante, ao qual os observadores internacionais têm dado pouco destaque, é que o governo Mubarak sempre usou a estratégia de dividir para governar. Mubarak criou cisões dentro do exército e entre o exército e outras instituições, sobretudo as várias brigadas políticas e as forças de segurança. 

Há 1,5 milhão de soldados nas forças de segurança; no exército, 500 mil. Mubarak semeou a animosidade entre Omar Suleiman [ex-chefe das forças de segurança] e Habib el-Adly, ex-ministro do interior e chefe das forças de segurança. Mubarak criou divisões até dentro de seu próprio partido [Partido Nacional Democrático, ing. National Democratic Party (NDP)]. O principal objetivo dessa política era manter as instituições frágeis, para não comprometer a base de poder de Mubarak. Nenhuma instituição jamais se fortaleceu, no Egito, nem o exército. Não se devem superestimar as capacidades políticas ou de segurança do exército. 

MA: O senhor está dizendo que confia no exército e há salvaguardas adequadas para obrigar o exército a fazer o que promete? 
IM: Primeiro, o mundo está de olhos no exército egípcio, à espera de que cumpra o que prometeu. Segundo, há divisões entre o oficialato mais antigo e os oficiais mais jovens. Os mais jovens estão mais próximos da população e resistem a tomar atitudes que agridam os interesses do povo. Terceiro, ainda que quisesse, o exército, com meio milhão de homens, não conseguirá controlar todo o país. 

MA: Isso significa que se o exército faltar às promessas, os manifestantes voltarão às ruas? 
IM: Os egípcios já venceram a barreira do medo. Mostraram que estão seriamente empenhados em buscar a realização de suas legítimas aspirações políticas. 

MA: A mídia ocidental tem especulado muito sobre o papel (ou o nenhum papel) da Fraternidade Muçulmana nos protestos. Qual foi a real extensão da participação da Fraternidade na revolução? 
IM: Ninguém pode falar com absoluta precisão sobre o que aconteceu nas ruas. Houve protestos em todo o país, não só na Praça Tahrir no Cairo. Posso confirmar que fora da capital a Fraternidade Muçulmana e suas redes locais organizaram parte importante dos protestos. 

Além disso, praticamente todos os serviços logísticos na Praça Tahrir foram prestados pela Fraternidade Muçulmana (banheiros químicos, por exemplo, foram instalados pela Fraternidade e apoiadores [a BBC noticiou fartamente a participação de médicos, enfermeiros, socorristas voluntários, muitos deles entrevistados ao vivo, e todos ligados mais diretamente ou menos, aos serviços sociais oferecidos, em todo o país, pela Fraternidade Muçulmana; a BBC também destacou, em inúmeras matérias, que equipamentos médicos e medicamentos também foram fornecidos, além dos hospitais-tendas montados na Praça Tahrir, pela Fraternidade Muçulmana (NTs)]. Esses recursos, como se sabe, são determinantes para manter um movimento de rua que se estime que deva ser mantido por longo período. 

MA: Tem-se dado muita atenção ao exército e pouca atenção ao Estado, a saber, aos serviços da inteligência egípcia. Parece que a revolução não conseguiu deslocar essas organizações, que conservaram seus privilégios e sua posição, embora secreta, na cena política. Que planos tem a Fraternidade Muçulmana para desmobilizar essas organizações secretas e obrigá-las a se reorganizar em termos democráticos? 
IM: As entidades a que você se refere continuam mobilizadas, como você diz, e são muito influentes, mas não têm o poder que se atribui em geral a elas. É preciso tempo para reformar essas instituições. É programa que envolverá todos os elementos da política egípcia, não só a Fraternidade Muçulmana. Todos os principais atores políticos, inclusive o exército, terão de participar do processo de reforma dos serviços de inteligência e segurança no Egito. 

MA: Alguns observadores dizem que, a menos que se reformem os serviços de segurança de cima abaixo, reforma institucional e cultural, não se construirá democracia sustentável no Egito. 
IM: Estamos falando de coisas diferentes: o curto prazo e o longo prazo. No curto prazo, o fim das Leis de Emergência, para garantir a independência do Judiciário e a liberdade de imprensa, já será grande passo para obter mais transparência para tudo, no país; essas mudanças ajudarão a pressionar os próprios serviços de segurança, para que se autolimpem, eles mesmos. As reformas culturais de que você fala, são reformas demoradas. É preciso treinar os oficiais de segurança e da polícia, para que aprendam a pensar em termos de servir a população e respeitar normas internacionais e padrões de direitos humanos. 

MA: Qual é o status legal preciso e a situação de Ikhwan e sobretudo de Khairat al-Shater[1]? Ainda estão presos? 
IM: Sim, continuam presos. Em termos mais amplos, tão logo a Lei de Emergência seja cancelada e a Constituição seja reformada, a Fraternidade Muçulmana poderá a voltar a participar mais amplamente da política. 

MA: Falando sobre o presente, diminuíram a repressão policial direta e a pressão dos órgãos judiciários sobre a Fraternidade Muçulmana, depois da derrubada de Mubarak? 
IM: Em linhas gerais, pode-se dizer que sim. Mas prossegue a luta de gato e rato entre a Fraternidade e o aparato de segurança. Mas Sobhi Saleh, da Fraternidade, é membro da comissão encarregada de reformar a Constituição. A Constituição terá de marcar um referendum para, o mais tardar, daqui a dois meses. 

MA: Há eleições marcadas para daqui a seis meses; as eleições para o Parlamento e para a Presidência serão simultâneas? 
IM: Não se sabe. Mas esperamos que o exército entregue o poder ao final do governo de transição. Muitos esperam que o exército saia do centro do palco, no final da transição, e que continue a acompanhar os acontecimentos. Esse tipo de ‘supervisão’ é semelhante ao que fizeram os militares na Turquia, nas últimas décadas. 

MA: A Fraternidade Muçulmana apresentará candidato próprio às eleições presidenciais? 
IM: Não. 

MA: Por que não? 
IM: Ninguém, nem interna, nem externamente, defende essa via, nesse ponto dos acontecimentos. 

MA: Pode-se dizer que a Fraternidade Muçulmana tem medo de vencer as eleições no Egito?! 
IM: Há 60 anos, o Egito e a comunidade internacional são bombardeados com propaganda contra a Fraternidade Muçulmana. Não somos partido político e não visamos ao poder político. Queremos mudar o modo como o povo egípcio nos vê e o que pensam sobre nós. Nesse estágio inicial, quem governe o Egito não é o fator mais importante. O fator realmente importante é como o Egito será governado. 

MA: Supondo que as eleições sejam relativamente livres e justas, a Fraternidade espera ser maioria no próximo Parlamento? 
IM: Contamos com cerca de 30% dos votos. Talvez mais, se concorrermos às eleições parlamentares como parte de uma coalizão política, com outros grupos. Mas essa decisão só será tomada quando se conhecerem as condições objetivas. 

MA: Até que ponto a Fraternidade Muçulmana tem planos para alterar a política exterior do Egito? 
IM: Até o ponto que o povo egípcio decidir alterá-la. Respeitaremos o voto popular. 

MA: Mas política externa é tema de alta especialização, tratado por especialistas, não pelo povo, diretamente. Minha pergunta é: se a Fraternidade Muçulmana alcançar posição mais firme na paisagem política do Egito, até que ponto “os Irmãos” gostariam de alterar a política externa? 
IM: É pergunta que não posso responder agora. Em qualquer caso, os eventos estão acontecendo em ritmo muito veloz e em diferentes campos, inclusive, também, no conflito Israel-palestinos e nos relacionamentos dentro do próprio campo palestino. Em termos gerais, hoje, a única resposta possível é que as políticas regionais do Egito e nossas políticas globais serão decididas pelo povo, pelo voto. 

MA: Mesmo assim, permita-me fazer algumas perguntas específicas. A Fraternidade Muçulmana tem algum projeto para reestruturar as relações Egito-EUA? 
IM: Gostaríamos de deter a influência ilegítima dos EUA nos negócios do Egito. Ninguém, em sã consciência, pode ignorar os EUA, especialmente os avanços no campo científico; mas, como qualquer nação independente, o Egito aspira a impedir que qualquer influência vinda de fora determine nossos negócios e nossa posição no quadro regional e global. 

MA: A Fraternidade deseja ver diminuída ou, mesmo, completamente suspensa, a ajuda militara anual que o exército egípcio recebe dos EUA? 
IM: A Fraternidade Muçulmana rejeita todo o conceito de ajuda militar, por princípio. Mas o que tenha a ver com relações entre os dois exércitos, tudo dependerá do processo democrático no Egito. 

MA: A Fraternidade Muçulmana, portanto, não exclui a possibilidade de um futuro governo egípcio cortar a ajuda que os militares recebem anualmente dos EUA? 
IM: Nossa resposta é muito clara. Nunca pedimos essa ajuda. Parte considerável da corrupção que devasta o Egito tem raízes nesse pacote de ajuda. 

MA: E quanto ao cerco de Gaza. Quando será a aberta a fronteira? 
IM: A posição da Fraternidade Muçulmana é que a fronteira já deveria ter sido plenamente aberta. 

MA: Quanto antes seja aberta, melhor? 
IM: Exatamente. 

MA: Quais são os cenários de longo prazo mais prováveis para as relações Egito-Israel? 
IM: Israel é uma ameaça e sempre criou dificuldades profundas e intrincadas para toda a Região, desde 1948. Mas não conhecemos os fatos, nem há informação confiável sobre esse assunto. Não faz sentido propor essa pergunta, quando ainda não temos acesso à informação pertinente. 

MA: A que tipo de informação o senhor refere-se? Fala exclusivamente de informações sigilosas? 
IM: Falo de toda a informação que existe e de fatos. Teremos de revisar toda a informação que ainda não está acessível, antes de tomar posições e tomar decisões políticas. 

MA: A Fraternidade Muçulmana não exclui a possibilidade de renegociar o acordo de paz de Camp David? 
IM: Outra pergunta sem sentido, hoje. Como já disse, temos de revisar muitas informações, antes de concluir. Além do mais, o povo egípcio terá de participar e não posso antecipar, aqui, o que o povo decidirá. Temos de ouvir e considerar os valores, as crenças, os sentimentos da rua, também nos conflitos internacionais. E também, a posição de outros países. 

Um comentário:

  1. (comentário enviado por e-mail e postado por Castor Filho)

    Dentro da Fraternidade há quem defenda o lançamento de um candidato às eleições presidenciais.

    O temor real é que a repressão se torne insuportável, mas fora da Fraternidade não há quem possa defender os pontos de vista da maioria do povo Egípcio.

    Na entrevista ele cita o exemplo da tutela militar na Turquia, é bem estratégico nisso, bem tático também, mas por lá terminou tudo num governo muçulmano moderado, mas de extrema importância para muitos avanços.

    Vamos ver como eles responderão à discussão interna em torno da disputa eleitoral.

    O jornalista perguntou certo ao dar a entender que as eleições seriam vencidas pela Fraternidade e ela abre mão de vencer.

    Não tem sentido, concorda? Perfeita a tradução e bem sensatas as colocações dele, pelo menos de acordo com os muçulmanos que num espectro maior, vários países, vários grupos, leram a entrevista, embora todos entendam que a Fraternidade deva ter candidatos a presidente e ao parlamento.

    Um abraço,

    Laerte

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