4/8/2011, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
Traço recorrente nas relações entre Rússia e Irã é que elas lá ficam, hibernadas no horizonte, mas sempre podem saltar para o centro do palco à primeira criticalidade na situação do Oriente Médio. O ministro das Relações Exteriores do Irã Ali Akbar Salehi acertou recentemente, ao dizer em entrevista à imprensa russa, que o Irã “é o mais significativo vizinho” da Rússia –, postado no caminho da estratégia ocidental para cercar a Rússia.
Mensagem bem clara: os russos precisam mais do Irã, que o Irã, dos russos. Pelo sim, pelo não, as relações russo-iranianas já caminham pé-ante-pé para o centro do palco. A erosão continuada no “reset” das relações entre EUA e Rússia é o grande telão de fundo.
Ao mesmo tempo, o impasse EUA-Irã agravou-se, agravamento calibrado, em larga medida, pelo lobby pró-Israel nos EUA, que explora a deriva geral dos movimentos do governo Obama. Outros contextos aparecem, que aproximam Moscou e Teerã – o programa de mísseis de defesa dos EUA, a questão turca, a Síria, o Iraque e o Afeganistão.
Contra esse pano de fundo, Moscou rapidamente agendou um intenso diálogo estratégico com Teerã na próxima quinzena. O secretário do Conselho de Segurança Nacional Russa Nikolai Patrushev parte para Teerã no próximo fim de semana e imediatamente depois disso Salehi fará visita oficial a Moscou.
Parece que, ignorando os protestos de EUA-Israel, Teerã e Moscou afinal formalizarão a conclusão do negócio da usina nuclear de Bushehr no Irã, construída pela Rússia – encerrando assim uma saga de 13 anos que oscila conforme a geopolítica do Oriente Médio.
O ministro iraniano da Relações Exteriores confirmou que a agenda de consultas com Patrushev incluirá a questão nuclear iraniana. Teerã recebeu bem a proposta russa de uma abordagem “em etapas” para resolver o impasse nuclear, mediante a qual pode haver afrouxamento gradativo das sanções, em vez de o Irã ter de enfrentar diretamente as preocupações internacionais e as questões não resolvidas com a Agência Internacional de Energia Atômica. Os russos movem-se para esse front, depois de consultas com Washington.
Parece que o que se espera é que se gerem impulsos positivos durante as consultas de Patrushev em Teerã e conversas posteriores durante a visita de Salehi a Moscou, que podem ajudar a romper o impasse em torno da questão nuclear. Significativamente, o presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, participará da Assembleia Geral da ONU em New York.
A propaganda israelense de que haveria cisão dentro do regime iraniano parece ter sido desmascarada. A decisão de Teerã, de engajar a Rússia na questão nuclear tem o indispensável imprimatur do Líder Supremo Ali Khamenei. (Como também a escolha de Rostam Qasemi, ex-comandante do Corpo de Guardas Islâmicos Revolucionários, que Ahmadinejad nomeou para o posto de Ministro do Petróleo do Irã.)
E o que, nisso, interessa a Moscou? Além de reduzir as tensões no Oriente Médio, Moscou espera posicionar-se bem no primeiro círculo do processo, que pode ter ecos positivos no “reset” EUA-Rússia. Moscou está fazendo tudo que pode para impedir que Washington implante componentes do sistema de mísseis de defesa na região do Mar Negro, sobretudo na Turquia.
Dmitry Rogozin, enviado da Rússia à Aliança do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), alegou recentemente, durante visita a Ancara, que a instalação de mísseis antibalísticos [orig. anti-ballistic missiles (ABM)] na Turquia poderia ser prelúdio de ataque militar dos EUA ao Irã.
Ambas, Moscou e Teerã, estão perturbadas pela fluidez das políticas turcas para a Síria. O governo islâmico de Recep Tayyip Erdogan joga jogo duplo – sistematicamente desestabilizando e enfraquecendo a Síria, ao mesmo tempo em que professa interesse em reformas democráticas pacíficas; manifesta-se simpático à Primavera Árabe, mas sucumbe às tentações do “dinheiro verde” da Arábia Saudita e do Catar.
A trajetória futura de Erdogan depois da atual crise com a liderança do exército turco é questão que muito preocupa Moscou e Teerã. (Ver Turkey says farewell to the generals, Asia Times Online, 4/8/2011, [em tradução].) Há incertezas pela frente. Editorial do jornal Jerusalem Post comentava, na 4ª-feira:
À medida que diminuem as possibilidades de integrar-se à União Europeia, Erdogan claramente visa a reorientar o foco da Turquia para o oriente islâmico. Com os partidos seculares de oposição enfraquecidos, Erdogan torna-se cada vez mais autocrático.
Nesse país – dilacerado entre a ocidentalização e o islã tradicional – a destruição entre o legado Kamalista e a ressurgência do populismo islâmico, contra o desejo dos militares – reverberá bem além das fronteiras turcas. Sinal claro e preocupante – se se pode confiar no que se ouve hoje – de que a separação entre a Turquia e o ocidente já começou”.
A russos e iranianos interessa que Erdogan construa política exterior independente. A inclinação de Erdogan, para permitir a instalação dos mísseis antibalísticos é difícil teste para suas políticas regionais. Mas Moscou e Teerã aproximaram-se realmente, isso sim, na questão da Síria: as duas capitais já manifestaram apoio a reformas e rejeição de qualquer modalidade de interferência externa na Síria.
Salehi disse semana passada: “Vemos e consideramos inaceitável a distorção deliberada, por forças externas, das reivindicações dos sírios (...). O que se vê aqui é um quadro claro de envolvimento estrangeiro, a serviço de interesses colonialistas (...) A Síria desempenha papel muito importante na região. Tem influência significativa em todo o Oriente Médio, como linha de frente da resistência contra o estado sionista, E a pressão que hoje está sendo aplicada contra a Síria está diretamente relacionada ao papel de vanguarda da resistência”.
Teerã apreciou que, em relação à Síria, Moscou não tenha repetido o erro que cometeu no caso da Líbia, quando não vetou a Resolução que garantiu ao ocidente a folha de parreira de um mandado da ONU atrás da qual escondeu a vergonha de uma intervenção armada no conflito interno da Líbia. Do ponto de vista do Irã, a posição firme que a Rússia está adotando em defesa da Síria é teste crucial para que se possa avaliar até que ponto Moscou resistirá à pressão dos EUA. O vice-ministro de Relações Exteriores da Rússia Mikhail Bogdanov disse em entrevista em Moscou, na 2ª-feira:
“Cremos que os sírios devem resolver os problemas dos sírios integrados à sua agenda doméstica. Trata-se de conflito civil interno que não deve ser internacionalizado (...). Por outro lado, devemos aprender com nossos erros. Não se deve esquecer os efeitos da Resolução sobre a Líbia. Todos vimos o que aconteceu e o que está acontecendo agora – inúmeros atores internacionais que não se limitam a executar o mandado que receberam, nem o espírito daquela Resolução”.
Também aqui, Moscou dá sinais de apreciar o papel complexo nuançado que o Irã desempenha no Iraque – sem confrontação com os EUA, mas, embora passivo e nem sempre perfeito, nunca em atitude de colaboração com os EUA. A animação controlada sobre a situação dos EUA no Iraque entra agora em nova fase, com o governo Obama já desistindo de praticamente qualquer plano e virtualmente suplicando que Bagdá permita que 10 mil soldados norte-americanos lá permaneçam depois de esgotado o prazo limite, em dezembro de 2011.
Teerã opõe-se abertamente e declaradamente à permanência de longo prazo de militares norte-americanos; a Rússia ainda não manifestou qualquer opinião mais forte e parece mergulhada em profunda meditação. Mas nem Rússia nem Irã tem o que ganhar num Oriente Médio instável e querem obter o que veem como um fim do predomínio da Guerra Fria dos EUA na região.
Mas não há dúvidas de que Moscou e Teerã ainda terão de percorrer alguma distância até se tornarem realmente parceiros num projeto substantivo para o Oriente Médio.
Dito claramente, é preciso ainda construir confiança e confiabilidade mútuas e sustentáveis. Por hora, os dois lados ainda desconfiam que o outro lado esteja construindo algum tipo de negócio secreto com Washington. O Irã já passou por tristes experiências, vítima do “reset” EUA-Rússia. E Moscou avalia se o Irã perderia tempo em outras vias, no caso de acontecer, a qualquer momento, algum tipo de normalização das relações EUA-Irã.
Nesse quadro, a negociação em torno da usina Bushehr torna-se especialmente importante. Até agora, já várias vezes a Rússia desistiu no último momento, em diferentes fases da construção do projeto Bushehr. Moscou considerará que não será inteligente desagradar Teerã mais uma vez, na atual conjuntura. Com todas as políticas dos EUA para o Oriente Médio em completo desarranjo, é altamente provável que, a qualquer momento, Washington seja obrigada a buscar algum diálogo político com o Irã.
A realidade geopolítica é que a influência regional do Irã está posicionada para aumentar. O impasse em que o ocidente meteu-se na Líbia e o fracasso das tentativas ocidentais para derrubar o regime sírio; o movimento da Turquia na direção do Oriente Médio muçulmano e o rompimento de relações com Israel; o colapso do eixo EUA-Israel-sauditas e o fortalecimento do eixo Síria-Irã; as atribulações dos EUA no Iraque e no Afeganistão; a reaproximação entre Egito e Irã; a alta probabilidade de a ONU reconhecer o estado palestino, em setembro; e por último, mas fator de modo algum insignificante, a determinação da China, que insiste em construir uma parceria estratégica com o Irã – todos esses fatores trabalham a favor de Teerã.
Além do mais, Teerã iniciou agora operação de reparar cercas, com Riad; e, se merece alguma confiança o que diga o Fundo Monetário Internacional, a economia iraniana vai muito bem.
Moscou com certeza sabe que qualquer nova negligência que cometa nas relações com o Irã pode ter impacto negativo nas suas políticas para o Oriente Médio. A iniciativa, agora, de reativar o projeto da usina nuclear pode trazer Moscou de volta ao jogo e ressuscitar o diálogo estratégico com o Irã.
Embaixador*M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira; serviu no Ministério de Relações Exteriores da Índia. Ocupou postos diplomáticos em vários países, incluindo União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.
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