quarta-feira, 5 de setembro de 2012

“Certo negro brasileiro leproso” num sonho político-filosófico de Spinoza (I)


22/8/2012, Nicolás González Varela, Mosca Cojonera
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O sonho de Spinoza

“Estes negros – dizem os holandeses – são ferozes, pérfidos, infiéis aos tratados e irreconciliáveis”
(Barão de Bessner, Memória sobre os negros fugitivos do Suriname, 1777)

“[trata-se de fazer ver] a eficácia específica e local de uma alienação de braços longos” (Roberto SCHWARZ, Ao Vencedor as Batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo (Brasil), Duas Cidades, 1981) [A]

“Spinoza, o primeiro judeu liberal”
(Carl Schmitt, O Leviatã na teoria do Estado de Thomas Hobbes, 1934)

“As contradições de um autor são significativas porque contêm problemas que o autor com certeza não resolve, mas que, ao contradizer-se, revela”
(Karl Marx, Teorias da mais-valia, 1861-1863)

Nicolás Alberto González Varela
Spinoza, o “homem embriagado de Deus”, o “marrano [B] da Razão”, o “judeu subversivo”, o homem que o filósofo cortesão Leibniz descreveu como “homem de pele olivácea, com algo de espanhol no semblante”, foi sem dúvidas pensador radical para sua época, ligado aos rios, canais e ao oceano. Sua reflexão curta, mas profunda está indelevelmente marcada pelo surgimento do novo imperialismo, da emigração, da perseguição, da precariedade, das travessias incertas, do risco mercantil da burguesia desafiante e do mais moderno cosmopolitismo [1]. Impressiona sua dimensão total, ao melhor estilo de homem do Renascimento: metafísico e moralista, pensador religioso e filósofo político, exegeta crítico da Bíblia, crítico social, talentoso polidor de lentes, comerciante multinacional, físico e cosmólogo, herege até o último de seus dias. 

Poder-se-ia dizer que fosse espanhol, já que a família Spinoza, como o nome indica, vinha da cidade castelhana de Espinosa de los Monteros, província de Burgos, no limite cantábrico, e porque era costume, entre os judeus sefaradis portugueses falar português, mas escrever em espanhol; hispano-português, porque seus pais foram emigrantes forçados, de formação católica não judia, os Anusim, ou “marranos” (os antepassados judeus de Spinoza viviam já na Espanha ao tempo de Cartago e Roma); era judeu, porque foi recebido na comunidade de Abraão, recebeu ensinamentos tradicionais talmúdicos e contribuiu economicamente para sua sinagoga; era português, pois essa foi durante toda a vida sua língua primeira, materna (sempre preferiu os poetas ibéricos, tanto que assinava, com naturalidade com um “D’Espiñoza”); era holandês, porque nasceu em  Amsterdã, num bairro que havia entre o rio Amstel e o porto, Vlooienburg (hoje, Waterlooplein), em casa alugada, espaçosa; e porque morreu em Haia; porque estava ligado a Rembrandt pela mesma cultura; mas, por destino, Spinoza continuará a ser outsider, intempestivo, homem póstumo, nunca atual.


Sua situação é excepcional e gerará uma filosofia impossível de reduzir a uma religião, impossível de cooptar pela peste nacionalista, mas ao mesmo tempo bem ancorada nas relações materiais de seu tempo e atenta à tradição política. Mas, apesar de seus esforços, a ideologia holandesa da burguesia viverá, para seu pesar, enroscada nas entrelinhas, até nos seus sonhos.

Foram vários os motivos da emigração massiva de judeus espanhóis e portugueses, e nem sempre foram motivos exclusivamente religiosos: o anacrônico império espanhol (que, para Marx, era uma forma tardia de “despotismo asiático”) já estava economicamente decadente desde o nascimento, com relações de produção baseadas na conquista, privilégio fiscal e monopólio real, quando a Holanda já exibia uma nova forma de imperialismo militar & comercial centrado no espírito do capitalismo, graças à mediação ideológica do protestantismo (calvinismo). A Holanda foi o primeiro país em toda a Europa a fazer, com êxito, uma revolução burguesa ao emancipar-se do despotismo espanhol. O calvinismo, com toda sua filosofia política liberal, é aqui criador de uma nova forma de estado.

A comunidade portuguesa em Amsterdã e em Rotterdã, unida pelo idioma e pelas plagas natais, considerava-se ela própria nação exilada, constituída de uma elite comerciante e industrial, para a qual a religião não era realidade: era problema. Aqui não dominavam, entre os Sefardim, como no caso dos judeus do leste (Asquenazes), os dogmas absolutos, a intolerância étnica e a Cabala, mas a grande tradição humanista do judaísmo ibérico: Crescas, Gebirol, Halevy, Hebreo, Herrera, Ezra e o grande Maimônides.

A nova pátria não foi fácil para a comunidade: periodicamente, os setores mais conservadores da alta sociedade holandesa, os Predikanten, pediam a expulsão dos “mercadores portugueses” [2]. Sobretudo e em primeiro lugar, seria erro grave supor que, antes do final do século 18, as ideias modernas acerca da igualdade entre as raças já tivessem lançado raízes nos Países Baixos.

A tolerância, muito afamada nos Países Baixos, não se baseia nos princípios modernos, mas em considerações crisológicas e práticas, para que uma população que era (e continua a ser) profundamente dividida sobre assuntos religiosos encontrasse meios e modos para viver lado a lado e conviver. As minorias religiosas católicas e judias foram discriminadas e excluídas dos cargos públicos.

O próprio Spinoza viu-se forçado a publicar como obra anônima o seu tratado mais político; teve de falsificar a informação sobre a cidade onde a obra fora editada; e temia ser morto; todas as suas obras foram afinal proibidas em 1674, junto com o Leviathan de Hobbes [3].


Há uma boa historieta, sobre esse falso clima de tolerância, narrada, muitos anos depois, por um destacado médico e professor universitário holandês, Herman Boerhaave: em 1693, ainda estudante, viajando a bordo de um navio de passageiros, ouviu animado debate entre seus companheiros de viagem, sobre Spinoza. A maioria das opiniões era veementemente negativa. Então Boerhaave aproximou-se e perguntou a um dos “críticos” se havia, algum dia, lido alguma obra de Spinoza, porque tudo o que dizia era falso. Outro passageiro perguntou seu nome e o anotou. Resultado: Boerhaave foi denunciado em Leiden como “spinozista” e perdeu (embora afinal não lhe interessasse) qualquer possibilidade de fazer carreira na Igreja oficial [4]. Na Holanda perseguiram-se homossexuais, ciganos, mendigos e prostitutas, em ânsias de “purificação”. Não havia na Holanda sistema de trabalhos forçados para esses “outros”, como houve em outros locais (na França, Espanha, Portugal, Grã-Bretanha), mas aquele excepcionalismo carcerário não estava baseado em algum tipo de atitude indulgente e antirracista, como reza a fábula, mas no simples fato de que o mercado de trabalho nos Países Baixos estava fortemente impulsionado pela oferta, com afluência constante de trabalhadores imigrantes de países vizinhos, vale dizer: contava com uma força de trabalho multinacional.

Talvez se deva concluir que os holandeses eram tão racistas como todo mundo naquele momento, mas tinham menores necessidades e portanto não se aplicavam tanto na prática do racismo em sua pequena pátria (em volta de 1650, a população não passava de 2 milhões de pessoas). Não por acaso, na Holanda o forte movimento abolicionista europeu não teria qualquer destaque, e mais: só por pressão da Grã-Bretanha aboliu-se a escravidão nas colônias holandesas. Déficit moral coletivo? Vasta bancarrota ética, que passou despercebida em sua filosofia prática?


O pai do filósofo, Miguel D’Espinosa, tornou-se sócio do irmão Abraão num estabelecimento comercial, que parece ter sido importante, como se deduz da movimentação financeira registrada no Banco de Amsterdã. A empresa exibia o nome de fantasia “Manuel Rodrigues”, português; importava frutas exóticas e frutos secos, emprestava dinheiro a comerciantes de armas, inclusive a contrabandistas de Málaga, e parece que foi das empresas mais afamadas da cidade em sua época. Por acaso ou não, o pai de Spinoza morrerá em 1654, pouco depois de os portugueses, com nativos brasileiros, tomarem a cidade do Recife e expulsarem de lá os holandeses definitivamente – derrota que se traduziu em enorme prejuízo financeiro para a comunidade sefardim de Amsterdã e para os negócios da família Spinoza.

Há uma fable convenue [aprox. “história acertada”, “versão combinada”] relacionada à vida de Spinoza, cujos dois principais mitos são sua extrema solidão e a pobreza sempiterna, mas ambos são isso, mitos, não correspondem à verdade. Spinoza é filho de família da classe mais alta, na estrutura de classes da Holanda da época [5]. Claro, pode ser considerado intelectual pobre, se o comparamos ao extremo do continuum: o filósofo cortesão gastador Leibniz.


Solidão? Eremita? Um moderno Diógenes? “Spinoza viveu na quietude esotérica do indivíduo isolado” – diz o jurista nazi-católico Carl Schmitt, acompanhando o mito historiográfico [6]. Isolado? Spinoza estava em contato com toda a cúpula liberal da Holanda, os dirigentes chaves que conduziam o novo estado; e era íntimo amigo do Péricles da história da Holanda, principal estadista republicano da época: Jan de Witt. Act est fabula! [A peça teatral acabou!]

Mas há outra dimensão da fable convenue sobre Spinoza, pouco analisada, reprimida como em outros filósofos da época do nascente capitalismo europeu: a flagrante discrepância entre pensamento e prática, entre teoria e práxis, que marcou a fogo o período de transformação da forma mercantil do capital até sua forma quase moderna, protoindustrial e financeira. Em outras palavras: será que Spinoza apresenta na forma de uma quimera delirante, o paradoxo entre o discursos da liberdade e democracia absoluta... e a prática da escravidão?

Como diz Williams em sua importante obra sobre Capitalismo e Escravismo [7], a instituição da escravidão, promovida e organizada por europeus no hemisfério ocidental entre os séculos 16 e 19, não foi fato “acidental” nem derrapagem na história econômica moderna. A escravidão foi, isso sim, peça crucial nos primeiros momentos da formação do capitalismo mundial e, no específico, da arrancada da acumulação primitiva na Holanda. Não é possível explicar o surgimento do capitalismo a partir de 1500 sem os escravos como força de trabalho e sem o florescente comércio de escravos no Atlântico: até 1900, calcula-se que para cada europeu que chegou às Américas, chegaram três escravos africanos. Calcula-se que, na somatória, chegaram vivos às Américas 12 milhões de africanos para trabalhos forçados; só entre 1500 e 1640, foram 788.000 escravos. O trabalho forçado e quase gratuito impulsionou o que se poderia chamar de primeira agricultura de exportação capitalista: o cultivo de açúcar, mas também de fumo e de algodão [8].


A Holanda é o primeiro caso exemplar a considerar: o esplendor holandês entre os século 16 e 17 é resultado de uma política militar de agressão e do domínio do tráfico de escravos [9]. De fato, os holandeses foram os primeiros a trazer mão de obra escrava da África para o estado de Virginia em 1619, e para a ilha de Manhattan em 1624, onde depois seria fundada New York. Entre 1657 e 1663, quatro barcos holandeses chegaram ao porto de Buenos Aires (ponto chave do contrabando continental da época) repletos de escravos, que foram imediatamente comprados por espanhóis e criollos [10].

A partir de 1630, os holandeses começaram, nas plantações de açúcar, a substituir os índios Tupani por africanos (os portugueses iniciaram antes o comércio de escravos; e, antes dos portugueses, os reinos islâmicos), por razões que os espanhóis já haviam percebido: em termos de produção, um negro valia por quatro índios.

A história do “Brasil holandês”, muito relacionado com a família Spinoza, pode ser dividida em três atos: primeiro, conquista e consolidação de um território importante para o cultivo de açúcar; depois, uma década de relativa paz e prosperidade sob o governo ilustrado de Johan Maurits van Nassau; e, finalmente, a guerra interimperialista com os colonos portugueses locais e escravos forros brasileiros, que levam à rendição da colônia holandesa em 1654. Até esse ano, barcos de bandeira holandesa transportaram 23.000 escravos da África ao Brasil; e das seis colônias de ultramar que a Holanda chegou a ter, no auge como potência mundial, três eram sociedades escravistas; e em três delas, a maioria da população era constituída de escravos de origem africana condenados a trabalhos forçados [11].

Não surpreende que ninguém menos que o pai do Constitucionalismo burguês, Montesquieu, registrasse que “o açúcar seria caro demais, se os escravos não fossem obrigados a cultivar a cana”. Porque o açúcar era e é essencialmente empresa capitalista complexa, que implica não só operações agrícolas, mas também as etapas primárias do refino final. A razão era crisológica e econômica, não racial. Nada tinha a ver com a cor do trabalhador, mas com os custos para reproduzir sua força de trabalho e a possibilidade de exploração extensiva e intensiva.

Pela nova ótica capitalista, comparado com o trabalho dos índios, o escravo negro era eminentemente superior. Foi durante esse período que Spinoza encarnou como pensador mais destacado e paradigmático da nova ótica capitalista. Mas veremos como sua própria Filosofia prática tem a cabeça bifronte de Jano: como o legendário rei do Lácio, tem o dom de encarnar tanto o passado que não terminou, como o futuro que ainda não se cristalizou. Flutua na filosofia de Spinoza um duplo silêncio: ela silencia sobre o racismo e silencia sobre a escravidão.


Nosso pensador recebe formação típica de um jovem marrano de família rica, com destino prefixado: a profissão mercantil, para herdar a empresa do pai. Claro que isso não excluía a formação religiosa talmúdica, dado que, entre os judeus, o estudo religioso equivale a servir a Deus; tampouco excluía a formação humanista radical: na biblioteca erudita que deixou ao morrer, além de gramáticas, dicionários e várias edições da Bíblia, há quase todos os clássicos espanhóis (Góngora, Montalván, Quevedo, Cervantes), gregos, latinos e da filosofia neoescolástica e moderna da época: Diofanto, Josefo, Aristóteles, Hipócrates, Epítecto, Arriano, Luciano, Homero, Euclides, dos latinos Tácito, Tito Lívio, Petrônio, Virgílio, Julio César, Sêneca, Salustio, Marcial, Plínio, Ovídio, Curcio, Plauto, Cícero, evidentemente Thomas Morus, Petrarca, Calvino, Bacon, Maquiavel, Grocio, Hobbes e Descartes [12]. Spinoza, contra a opinião corrente de muitos comentaristas, tomou a iniciativa de fazer-se expulsar da sinagoga, com um escrito, Apologia, em que justificava uma diferença de opinião, e que escreveu... em espanhol! A sinagoga nada teve a fazer além de aplicar-lhe uma excomunhão furibunda (Cherem), que ratificava sua condição de “ateu”, o que sempre o desgostou, e concluía com violenta exortação para que toda a comunidade hebraica o isolasse.

No mesmo momento da excomunhão, em 1656, aconteceu mudança decisiva em sua posição social, em sua consciência de classe: é quando herda, com o irmão Isaac, o florescente negócio de exportação & importação e de intermediação financeira e bancária do pai. Já nessa data assinava as cartas comerciais e notas promissórias escritas de próprio punho, como “Bento D’Espiñoza”. Nos documentos de cartório, Bento aparece qualificado como “mercador português residente em Amsterdã”. Já se viam os primeiros sinais das consequências comerciais desastrosas que teria, para o negócio familiar, a guerra interimperialista entre Holanda e Inglaterra e entre Holanda e França. Porque a Holanda está em posição de desafiante frente ao mundo, com sua porção colonial, a integração militar e comercial de áreas não capitalistas, a conquista do mercado mundial, destinada a cumprir o destino do ciclo lógico do capital.

Como assinala Toni Negri, “nas Províncias Unidas da Holanda conjugam-se no espaço tempo a ordem capitalista do benefício e a aventura selvagem da acumulação no mar, a fantasia construtiva que os comércios produzem e o assombro que tudo isso produz na Filosofia”. Mas o assombro filosófico ignorou o maior crime da Holanda: os escravos e o trabalho forçado. O eixo sobre o qual girava o milagre capitalista holandês – e é curioso que Negri não chame atenção para isso – era a prática geral da escravidão, inclusive o uso e abuso doméstico de escravos africanos.


Os principais postos de comércio de escravos, os famosos “Asientos[13] [em português do Brasil, “entrepostos”], tanto na América como na África, estavam sob bandeira portuguesa, holandesa, francesa, inglesa, dinamarquesa ou de Branderburg. Calcula-se que a Holanda (mediante a Companhia das Índias Ocidentais, CIO, que foi a maior empresa privada de comércio de escravos de toda a história) [14] enviou para a América (das regiões de Angola e do Congo) mais de 100 mil escravos, até 1730. Amsterdã seria a capital do tráfico de escravos, na província de Zeeland (Middelburg e Vilssingen); seus portos eram os mais importantes e eficazes no mecanismo escravista. Os holandeses até inovaram nas ferramentas: desenharam um bem-sucedido galeão super rápido, chamado Fluyt (“Barco voador”*) que, com convés largo, baixo calado e pequena tripulação, converteu-se no barco ideal para transporte de escravos [15].

Quando a conquista de uma parte do Brasil abriu novas oportunidades econômicas, os escrúpulos morais protestantes (e judeus) evanesceram rapidamente. De modo similar, a simpatia pelos sofrimentos dos indígenas americanos nas mãos dos espanhóis, parte da “Lenda Negra”, não sobreviveu por muito tempo ao contato real, mais que ideal, com os índios na Nova Holanda.

É muito claro que havia um Common Sense racista que teria necessariamente de participar como pano de fundo ideológico para anular todo arrepio moral ou discrepância ética; era impensável que os europeus fossem submetidos à escravidão (naquela época), mas escravizar africanos e negros sans phrase já era questão ontologicamente diferente. Evidentemente, o racismo não criou o comércio e o tráfico de escravos dos quais a Holanda beneficiou-se, mas ajudou muito: deu aos europeus uma superestrutura lógico-moral para participar e tomar parte nele.

Ou seja: os europeus, incluídos os holandeses, já eram racistas muito antes de meterem-se no comércio de escravos no Atlântico. O papel atlântico dos holandeses foi importante: tiveram papel decisivo na combinação da tecnologia de produção do primeiro sistema do Atlântico (Norte) com o capitalismo do chamado segundo sistema do Atlântico. E dentro desse mecanismo, os judeus holandeses tiveram papel crucial [16].

Como resultado, as principais zonas produtoras de cultivos tropicais do Brasil mudaram-se para o Caribe e as regiões meridionais da América do Norte. A escravidão era a única fonte de trabalho nos dois sistemas, já que a mão de obra era insuficiente, fosse a dos emigrantes disponíveis no Novo Mundo, fosse a dos ameríndios ou dos colonos novos.

A oferta da mão de obra africana era relativamente elástica, e essa elasticidade forçada é um dos elementos chave na orientação distintiva do segundo sistema do Atlântico para o mercado internacional. É óbvio que a ideologia holandesa de meados do século 16 apresentava dois níveis da consciência moral na sociedade civil: um conjunto de valores não racistas para uso doméstico (e entre os europeus), e outro, racista, unicamente para uso no mundo exterior (não europeu).

O “padrão duplo” ético podia ser materialmente constatado: a diferença entre a força de trabalho muito livre e móvel na República Holandesa e, simultaneamente, a ausência de uma força de trabalho clássica, na maioria das colônias holandesas no estrangeiro. Em especial, os holandeses judeus tiveram papel destacado nesse mecanismo: tinham títulos de propriedade de 59 plantações de açúcar no Brasil recém conquistado pela Holanda e estima-se que controlavam cerca de 20% da produção [17]. Quanto à ética comercial, os holandeses não se limitavam à raça negra: escravizaram portugueses capturados no mar, indonésios no Índico e até japoneses.

Spinoza transcendeu esse contraditório horizonte liberal?


Da crise interior e exterior que converteu o “marrano da Razão” Spinoza, de comerciante multinacional de frutos secos e jóias e operador da Bolsa, em filósofo solitário em busca de Deus, há rastros indiretos, indeléveis e muito significativos.

A decisão fundamental de Spinoza acontece no mesmo momento em que a empresa familiar decai economicamente, resultado da crise no Brasil e do bloqueio no Atlântico, pela Inglaterra. Além disso, o pai deixara dívidas não liquidadas. O filósofo nascerá das ruínas de uma empreitada comercial e da rejeição, violenta e pública, da religião de seus pais.

Em escrito crítico sobre a Filosofia de Descartes, Spinoza expôs, numa confissão rara, como havia superado a mera consciência burguesa, o modo de mediação mercantilista, o espírito do capitalismo plasmado no judaísmo mais prosaico, tanto quanto no novíssimo calvinismo holandês:

Depois que a experiência me ensinara que tudo que acontece na vida ordinária é vão e fútil; depois de ter visto que tudo que para mim era objeto ou motivo de temor não continha nada nem de bom nem de mau em si, além dos efeitos que produzia em minha alma, decidi-me finalmente a investigar se não haveria algo que fosse um bem verdadeiro, alcançável e ao qual se pudesse entregar a alma, depois de rechaçadas todas as demais coisas (...) Via, claro, as vantagens que nos advêm das honrarias e riquezas, e via, mesmo assim, que era necessário renunciar a elas, se queria entregar-me seriamente a esse outro novo propósito. Cheguei à conclusão de que, mesmo que a Felicidade suprema consistisse nas honrarias e riquezas, teria de privar-me disso (...) compreendi que adquirir dinheiro, sensualidade e glória são sempre obstáculos, quando são buscados por eles mesmos, não como meios para outros fins (...)  [18]

Um conflito moral que aparentemente atormentava Spinoza: a separação entre sua vida diurna, exotérica, de comerciante (na qual, inclusive, enriquecia indiretamente do trabalho forçado dos escravos) e sua vida espiritual noturna, esotérica. Spinoza considera que levar vida de comerciante é “um grande obstáculo”, dado que o Dinheiro é bem incerto [falso] “por sua própria natureza”. Acompanha ad verbatim a frase de seu admirado Demócrito: “Quem queira gozar de paz de alma não se deve ocupar com muitos assuntos privados ou públicos” [19].

O texto não implica que Spinoza confesse alguma aversão ao comércio per se, de modo absoluto, mas que a disposição para a Filosofia é impedimento à prática do comércio como tal, como contou, servindo-se de argumentos de Tales de Mileto, a seu amigo Jarig Jelles, comerciante de especiarias. Primeiro, descrevia a “mísera condição dos que perseguem honras e riquezas; (...) os estados devem perecer e, de fato, realmente perecem, pela ânsia ilimitada de honras e riquezas (...); adiante, conta uma historieta filosófica da antiguidade:

Basta seguir esse raciocínio de Tales de Mileto: tudo que há entre amigos – dizia ele – é propriedade comum dos amigos; os Sábios são amigos dos Deuses; tudo é propriedade comum dos Deuses; logo, tudo é propriedade dos Sábios. Assim, com uma palavra, aquele grande Sábio tornou-se riquíssimo, mais por desprezar nobremente todas as riquezas, do que por buscá-las sordidamente (...) Os Sábios não carecem de riquezas, não porque não as possam obter, mas porque não as querem. [20]


Esta ruptura existencial e social com a nova “Sociedade Comercial” (como Adam Smith chamava o feroz capitalismo nascente) produz-se no período que vai de 1656 a 1660.

Nossa história começa numa carta que Spinoza recebe em 1664 de seu amigo Peter Balling, quando Spinoza já é outro homem, pensador que pode viver sem apuros, graças à renda vitalícia que ganhou de um admirador, mas ainda ressoam nele as bases ideológicas do capitalismo mercantil e o colonialismo holandês transoceânico.

Desde o verão europeu de 1663, Spinoza já está trabalhando em sua obra mais importante, a futura Ética, livro que chama de Philosophia, que ainda é escrito de talhe eminentemente metafísico, tem numerosos desenvolvimentos fundamentais de filosofia política. A carta é curiosa por muitos motivos, Spinoza é um pensador muito reservado em seus textos exotéricos e públicos, nos quais pouco se pode saber de sua vida íntima ou de seu círculo mais privado: é uma das poucas cartas nas quais Spinoza evoca uma experiência íntima. Em segundo lugar, esta carta em particular foi escolhida pelo joven Marx na composição de seu caderno sobre o pensamiento de Spinoza, no qual resumiu extratos do famoso Tractatus Theologico-Politicus e de sessenta cartas do pensador holandês[C] [21]. Peter Balling, jovem comerciante amigo de Spinoza, membro dos famosos “Colegiantes” (ex-Mennonitas, ex-Remonstrans, quackers dissidentes, heréticos de diferentes pelagens e outros cristãos “sem igreja”) de Rijnsburg, muito culto e conhecedor de grego e latim, autor de um manifesto daquela seita político-religiosa, Het licht op den Kandelaar (Luz sobre o candelabro) de 1662, onde defende uma fé interior cujo fundamento é a “luz divina” presente em cada um de nós. Parece que se podia expressar em espanhol (representava em Amsterdam comerciantes importantes da Espanha) e isso o aproximou de Spinoza.

Em 1664, traduz ao holandês a versão spinozista dos Principia de Descartes; Spinoza o descreve nas cartas como “muito culto e prudente”. Na carta de que aqui se trata, Balling, que acabava de perder um filho pequeno, conta que tivera pressentimentos e augúrios do falecimento ouvindo vozes e gemidos que anunciavam o desenlace fatal. Spinoza responde-lhe o seguinte:


Digo-lhe que não é caso raro, e posso confirmar que se passou comigo algo semelhante no inverno passado em Rijnsburg [22], que explicarei. Quando, uma manhã, despertava de sono muito pesado, o céu já clareando, as imagens que que vira no sonho apareciam ante mim, como se fossem coisas reais, em particular a aparição de um certo negro brasileiro leproso [23], que nunca vira antes. Esta imagem desaparecia quase por completo quando, para distrair-me com alguma coisa e manter-me ocupado, meus olhos fixavam-se num livro ou em outra coisa; se tirava os olhos desse objeto e não fixava minha atenção em nada de especial, por momentos reaparecia a imagem do etíope (Æthiopis) [24], com igual intensidade anterior, até que se ia desvanecendo até desaparecer. O mesmo que aconteceu nos meus sentido internos deve ter ocorrido ao seu ouvido.


Em poucos lugares Spinoza perde a compostura e o férreo controle da argumentação, como nessa carta [25]. É, além disso, a única referência explícita em toda a obra de Spinoza à generalizada instituição da escravidão e à escravidão dos negros em particular.

A figura de um brasileiro ameaçador era, para um patrício médio e informado de Amsterdã, ainda mais para um comerciante transatlântico como Balling, algo que não exigia nenhuma explicação suplementar. Recordemos que Spinoza chega à conclusão de que a alucinação auditiva dos gemidos do filho de seu amigo Balling era, de fato, um presságio da enfermidade iminente, porque se baseia em conhecimento íntimo do menino; mas seu sonho do negro brasileiro leproso não poderia ser, por sua vez, produto de enfermidade física ou delírio. Spinoza explica o significado do delírio auditivo de Balling, mas não é plenamente consciente do próprio sonho. E é claro que Spinoza agrega o adjetivo “negro”, nigri.

Para os leitores pósmodernos de Spinoza, não parece haver qualquer problema: por exemplo, Hardt & Negri assinalam, para justificá-lo, que ninguém menos que Kant e Hegel também falavam de “negros” em seus textos [26].

Analisar uma forma de comunicação invariavelmente distorcida, nesse caso um sonho delirante é, portanto, revelar de que maneira suas lacunas, imagos, repetições, omissões e equívocos são por si mesmos significativos e apontam para o reprimido, o inominável, o excluído. Se podemos revelar as condições que compelem um discurso particular (narração da aparição intensa de um negro escravo enfermo) a incorrer em alguns enganos e disfarces, igualmente podemos examinar os restos diurnos gerados pelas condições materiais de uma época e lugar, que introduzem informação (“conteúdo manifesto”, segundo Freud) no texto de um sonho.

Terry Eagleton ensina que o que se produz (seja sonho diurno ou complexa produção ideológica) tem de ser entendido em termos de suas condições de produção. 

Permitam-me sugerir que Spinoza chegou a conclusão equivocada sobre seu próprio sonho: intimamente, tinha o necessário equipamento ideológico para engendrar a alucinação, o fantasma do escravo raivoso, a imago nigri. A causa imediata do sonho pode ter sido alguma forma de delírio, mas o conteúdo do sonho – quer dizer, a imagem aterradora de uma colônia nativa de escravos e trabalhadores braçais em rebelião contra seus amos europeus – não podia ser explicado por causas puramente físicas, mas, sim, pela confusa consciência mental de Spinoza, do capitalismo holandês, da própria empresa colonial em si mesma, do sonho imperial de uma Nederlands-Brazilië, de uma grande Nieuw-Holland e das representações dessa empresa em sua cultura, calvinista e liberal, no núcleo mais duro e mais reprimido da Ideologia holandesa.


O escravismo como realidade material atravessava transversalmente a vida dos Spinoza, era o Business as normal, numa cidade como Amsterdã, onde os mercadores judeus controlavam cerca de 20% do comércio, até 1630 [27]. Até um irmão de Spinoza, Gabriel, havia emigrado para a colônia de Barbados, onde tinha participação em plantações de açúcar e era proprietário de escravos; outra meia-irmã, Rebecca, emigrou com dois filhos para Curaçao, ilha onde não havia economia agrícola importante, mas que era utilizada como depósito central, um enorme entreposto de escravos, e parada para classificação dos escravos africanos destinados à comercialização nas colônias inglesas e espanholas [28]. O sistema escravista era uma presença natural e cotidiana entre a comunidade de ricos comerciantes da potente província de Holanda.

O chamado plano geopolítico Groot Desseyn (Grande Projeto), no qual colaboravam lado a lado a Companhia das Índias Ocidentais e o Estado Geral das Províncias Unidas da Holanda, pretendia estabelecer uma grande colônia holandesa ex-novo, na costa de territórios de Portugal em Angola e Brasil, explorar o viciante acúçar mediante o tráfico de escravos africanos numa única zona econômica, plano que começou a se materializar com a primeira expedição militar em 1624 para conquistar a Bahia [29]. Spinoza tem delírios do fracasso do Groot Desseyn?

Não se pode apagar sem mais nem menos o reprimido na alta Teoria. Ele reaparece como resto diurno claro e simples num delírio persecutório. A narração desse sonho obsessivo já de olhos abertos foi debatida por alguns especialistas.

Em dezembro de 1640, Portugal separa-se da Espanha, e a comunidade portuguesa de Amsterdã volta a restabelecer vínculos comerciais com a nova nação e suas colônias em todo o mundo, especialmente na extensa colônia brasileira. E os Spinoza começam a importar frutas e nozes do Algarves português. As novas relações permitem fazer lobby a favor dos mercadores judeus holandeses que se haviam estabelecido no norte do Brasil, especialmente no Recife. A Holanda invadira territórios do norte do Brasil em várias etapas desde 1624, apoiada financeiramente pela Companhia das Índias Ocidentais, a Geoctroyeerde West-Indische Compagnie, a famosa e primeira multinacional da história do capitalismo, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, com sede em Amsterdã.

Precisamente o órgão político da Holanda, o Estado Geral, onde havia muitos amigos e admiradores de Spinoza, deu-lhe uma concessão em monopólio, de 24 anos, sobre o tráfico comercial e comércio de escravos para América e África. A Holanda inclusive designou um vice-rei para governar suas novas conquistas: Johan Maurits van Nassau-Siegen, administrador moderno, liberal que colaborou com a instalação da comunidade judia no Recife e Pernambuco.

É sintomático que o templo judeu do Recife (cidade que será rebatizada como Mauritsstad), a Kahal Zur Israel, será a primeira sinagoga construída em todas as Américas. Com o Tratado de Münster, na primavera de 1648, chega a paz entre o reino de Espanha e as Províncias Unidas; com a paz será possível reatar relações comerciais tanto com o reino como com suas colônias, abrindo-se para a Holanda todos os portos sob domínio espanhol, período que ficou conhecido como a “Idade de Ouro” dos judeus portugueses em Amsterdã, apesar de um decreto de Felipe IV que obrigava todos os judeus confessos a ter um agente católico ou protestante como intermediário (que ficava com 20%).

A prática econômica capitalista da escravidão (sistemática, altamente sofisticada, extensiva e intensiva, con um Profitque podia chegar aos 300%) dos povos não europeus como força de trabalho nas colônias, era de tal magnitude que, em meados do século 17, todo o sistema econômico do Ocidente, e sua correspondente acumulação primitiva, estava baseada nela [30]. Imediatamente, a Holanda teve de enfrentar outro imperialismo competitivo: a Inglaterra, a qual, mediante um Navigation Act de 1651, impedia que navios holandeses partidos da Europa ancorassem em suas águas; e proibia o comércio com suas colônias. A primeira guerra anglo-holandesa acontecerá afinal em 1652. Não é por acaso que, adiante, Kant, em seu escrito de 1795 Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf [Paz Perpétua. Um Esboço Filosófico], criticará essa geopolítica escravista, exploradora, violenta e racista do novo capitalismo europeu, denunciando “a conduta hostil dos Estados civilizados de nosso continente, em especial dos estados comerciais” e destacando “a injustiça que exibem aos visitar povos e países estrangeiros (que, no seu caso, é o mesmo que conquistá-los)”; e finaliza dizendo que:

a América, os países negros, as ilhas das especiarias, o Cabo, etc. eram para eles, ao descobri-los, países que não pertenciam a ninguém, pois para nada levavam em conta os habitantes. Nas Índias orientais (Industão) introduziram tropas estrangeiras, sob o pretexto de estabelecimentos comerciais e, com as tropas, introduziram a opressão dos nativos, a incitação de seus diferentes estados a grandes guerras, fomes, rebelião, perfídia e a litania de todos os males que afligem o gênero humano. [31]  [D]


Entre os séculos 15 e 16, a escravidão como topoi retórico (embora sua origem também seja histórica) havia-se convertido na principal metáfora da filosofia política ocidental, mediante a qual se conota tudo que haja de nefasto, perverso e negativo nas relações de poder absolutistas (europeias, não europeias e clássicas).

Sem dúvida, a metáfora política condensou-se em ideologia oficial do Iluminismo nascente, quando a prática econômica da escravidão incrementa-se qualitativa e quantitativamente.

A tópica na ideologia funciona como um depósito de provisões; de modo sistemático e normativo, nela podem-se encontrar as ideias mais gerais, ad usum delphini, prontas para serem citadas em todos os escritos e discursos que operam como um tipo especial de discurso demonstrativo. Os topoi que se usam no Iluminismo – a metáfora escravista é um deles – são testemunho de uma nova “atitude espiritual” relacionada à ascensão da burguesia comercial e proprietária.

A discrepância escandalosa entre Theoria e Praxis, entre Ser e Mundo, entre pensamento e prática, a escansão sem resolver, pode muitas vezes adotar a forma do silêncio, porque não seja percebida, ou quando o aparelho conceitual seja bloqueado. E pode acontecer de ser silenciada e ao mesmo tempo fundamentada, como acontece no caso de Spinoza e de seus contemporâneos. Essa dupla visão, esse olhar vesgo em duas direções era bastante frequente nos filósofos dos 1500s e 1600s.

O que acontece na Ideologia holandesa? Será uma autêntica anomalia selvagem? Ou, na realidade, estamos ante uma simbiose paralisante do conflito burguês? Os pensadores do Iluminismo continental, inclusive os mais radicais, utilizavam com generosidade a figura retórica da escravidão como argumento para enfrentar o Absolutismo, em especial o católico e o espanhol, indignavam-se contra a escravidão qua teoria, ao mesmo tempo em que ignoravam & reprimiam soberanamente a prática concreta, o ofício terrestre e o enriquecimento que lhes vinha da escravidão.

O berço do racismo moderno (e suas  variantes) cristalizou-se no Ocidente durante o período que vai de 1500 a 1700 [32], mas a maioria dos filósofos do Iluminismo (inclusive da ala mais radical) aceitavam como “natural” a exploração forçada de milhões de trabalhadores escravos, os Untermenschen [sub-homens] da Modernidade, nas colônias, os mesmos que proclamavam que a Liberdade era o estado natural do homem e direito inalienável e intrasferível. Untermenschen, sub-homens, é termo geralmente útil, mas tem de ser subdividido, sob pena de não se compreender ou compreender-se mal a complexidade ideológica ou reduzir o racismo a uma caricatura, um cão de palha.

Tradicionalmente, produziram-se hierarquias raciais dentro dos grupos subordinados ao capital, por exemplo, com os “bárbaros”, que se distinguem dos simples “selvagens”. Os “orientais” ou “asiáticos” (eslavos, índios, chineses), por exemplo, de forma padrão situam-se sempre acima da maioria dos nativos americanos, africanos e aborígenes australianos. Por outra parte, devido à variedade dos marcos teóricos racistas que se utilizam para justificar a escravidão e o trabalho forçado, sempre há uma ampla gama de concepções que às vezes opõem-se e entram em luta: “Racismo teológico” [33] versus “Racismo científico”; “Poligênese” versus “Monogênese”; “Ambientalistas” versus “Biologicistas”, etc.; para nem falar das variedades internas a cada uma delas. Era possível ser inferior por ser dito animal não humano; ou por ser entidade intermediária entre os animais não humanos e os seres humanos (“o elo perdido”), por serem seres humanos de uma gênese diferente inferior evolutivamente; por serem seres humanos da mesma gênese, mas por padecer de atraso evolucional irreversível, e assim por diante.

O conceito de Untermenschen foi conceito que visou a “simplificar” a manutenção dessa situação de inferioridade moral, dar legalidade à “morte social” de populações inteiras, com uma suspensão de juízo em relação a outras diferenciações.

Mas, depois que se implanta, passa a haver grande número de formas pelas quais alguém pode ser um Untermenschen, uma subpessoa, do ponto de vista do ocidente e da nascente ideologia burguesa, o liberalismo.

(Continua)
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Notas de rodapé

[1] Para informações sobre a vida de Spinoza ainda é vigente e insubstituível o livro de Carl Gebhardt, autor da edição definitiva, nos anos 1920s [em espanhol] da obra completa: Spinoza, Losada, Buenos Aires, 1940; também os soberbos trabalhos de Steven Nadler: Spinoza. A Life, Cambridge University Press, Cambridge, 1999; Spinoza’s Heresy. Immortality and the Jewish Mind, Oxford University Press, New York, 2001, e A Book Forged in Hell. Spinoza’sScandalous Treatise and the Birth of the Secular Age, Princeton University Press, Princenton, 2011.

[2] Estudioso inicial de Spinoza como Feuer descreve a comunidade judia de Amsterdã como “Entidade socioeconômica virtualmente autônoma”. Ver FEUER, Lewis, Spinoza and the Rise of Liberalism, Beacon Press, Boston, 1958, p. 5.

[3] E em 1678 proibiram-se até traduções em outros idiomas ou a publicação de excertos do livro. ISRAEL, Jonhattan: “The Banning of Spinoza’s Works in the Dutch Republic (1670-1678)”, in VAN BUNGE, W./ KLEVER, W. (eds.),Disguised and Overt Spinozism around 1700, Brill, Leiden, 1996, pp. 3-14. O mesmo se pode dizer da situação de emigrado de Descartes, sempre sob ameaça de expulsão e censura, e outros intelectuais holandeses de destaque como Ericus Walten, ou artistas como De Hooghe.

[4] A história do chamado “Pai da medicina moderna na Holanda”, in LINDEBOOM, Gerrit Arie, Herman Boerhaave: the man and his work, Methuen, London, 1968, p. 46 y ss.

[5] Ver VAZ DIAS, A.M. / VAN DER TAK, W.G.; Spinoza, Mercator et Autodidactas, Nijhoff, La Haye, 1932; trata-se de importante coleção de documentos privados e comerciais da família Spinoza.

[6] SCHMITT, Carl; Der Leviathan in der Staatslehre des Thomas Hobbes: Sinn und Fehlschlag eines politischen Symbols, Hohenheim Verlag, Colonia/Lövenich, 1938.

[7] WILLIAMS, Eric; Capitalismo y Esclavitud, Traficantes de Sueños, Madrid, 2011.

[8] Os números estão em ELTIS, DavidThe Rise of African Slavery in the Americas, Cambridge University Press, Cambridge, 2000, p. 9, Table I-I.

[9] Os dinamarqueses foram os primeiros a por fim ao tráfico de escravos, em 1804; Grã-Bretanha, em 1831; França, em 1848; Rússia e EUA, só em 1861, mas a tolerante Holanda só aboliria o comércio de escravos em 1863, sendo uma das últimas nações europeias a fazê-lo [no Brasil, só foi abolido em 1888 (NTs)].

[10] ZACARIAS, Moutoukias; Contrabando y control colonial en el siglo XVII: Buenos Aires, el Atlántico y el espacio Peruano, Centro Editor de America Latina, Buenos Aires, 1988, pp. 143-47.

[11] BLAKELY, Allison: Blacks in the Dutch World: The Evolution of Racial Imagery in a Modern Society, Indiana University Press, Bloomington, 2001, p. 8. Ver a completa base de dados do comércio escravista, agora online em Trans-Atlantic Slave Trade Database (TSTD2), 

[12] Spinoza tinha, ao morrer, biblioteca de cerca de 160 volumes: VAN ROOIJEN, A. J. Servaas, Inventaire des livres formant a bibliothèque de Bénédict Spinoza, The Hague: W. C. Tengeler, 1888; VULLIAUD, Paul; Spinoza d'après les livres de sa bibliothèque, Chacornac, Paris, 1934; PANNIER, J.; Les Livres protestants chez Spinoza, Etudes religieuses et théologiques, Montpellier, 1935; AA.VV.; Catalogus van de Bibliotheek der Vereeniging Het Spinozahuis te Rijnsburg, E. J. Brill, Leyden, 1965.

[13] A Espanha sempre foi, até o século 19, dependente de estrangeiros no que concernia aos escravos, fosse porque aderia à arbitragem papal que a excluía da África (foi outorgada a Portugal), ou porque carecia do capital e das técnicas necessárias para traficar escravos. O suculento negócio de fornecer escravos ao império espanhol, eufemisticamente denominado Asiento de negros [assentamento de negros], converteu-se num dos troféus mais cobiçados da diplomacia e comércio internacional.

[14] Cerca de 7% das ações da Companhia das Índias Ocidentais pertenciam a judeus holandeses.

[15] Sobre o tema, ver o trabalho de EMMER, Pieter, C.; The Dutch Slave Trade 1500-1850, Berghahn Books, Oxford, 2005.

[16] Até 1644, os comerciantes judeu-holandeses compravam 63% dos escravos vendidos on-shore no tráfico da Companhia das Índias Ocidentais para o Brasil. Ver “Jews and New Christians in the Atlantic Slave Trade”, in The Jews and the Expansion of Europe to the West, 1400-1800, Paolo Bernardini (Ed.), Berghahn Books, 2004, p. 450. O papel dos judeus no tráfico de escravos do Atlântico, apesar da lenda antissemita divulgada pelo historiador Werner Sombart, foi em geral muito localizado e de curta duração, e associado ao novo colonialismo holandês.

[17] Ibidem, DRESCHER, Seymour, p. 475  y ss.

[18] SPINOZA, Benedictus; Opera, ii, Winter, Heildelberg, 1925, p. 5 y 6; em espanhol: SPINOZA, Baruch; Tratado de a reforma del Entendimiento. Principios de Filosofia de Descartes. Pensamientos metafísicos; Alianza, Madrid, 1988, p. 75 y ss.

[19] Demócrito, en: D I E L S/ K R A N Z , Die Fragmente der Vorsokratiker, II, p. 12, frag. 3. Essa sentença havia sido apropriada pelos epicúreos. 

[20]Carta XLIV, 17 de fevereiro, 1671; em: SPINOZA, Baruch de; Correspondencia Completa; Hiperión, Madrid, 1988, p. 133-134.

[21] Remetemos o leitor à primeira edição em espanhol do trabalho do jovem Marx sobre Spinoza, com estudo preliminar e tradução nossas: MARX, Karl Heinrich; Cuaderno Spinoza, Montesinos, Mataró, 2012. (Há entrevista sobre o lançamento desse livro, com o autor, traduzida ao português, na redecastorphoto em 12/8/2012, Sobre: El Cuaderno Spinoza de Karl Heinrich Marx [NTs]).

[22] Spinoza terá visitado os colegiantes rebeldes de Rijnsburg no inverno de 1663-1664, para expor-lhes suas ideias? Recordemos que Spinoza mudou-se para Voorburg em abril de 1663.

[23] Textualmente: “…et praesertim cujusdam nigri et scabiosi Brasiliani quem nunquam antea videram… Alguns textos em espanhol traduzem a expressão como “sarnento”; outros como “peludo” (!!), na época, confundiam-se os sintomas do parasita da sarna com as úlceras da lepra; e, não raro, há infecção por sarna em pacientes que sofrem de lepra.

[24] A maioria das edições ao espanhol (inclusive em inglês) traduzem a palavra como “negro”.

[25] O estranho sonho de Spinoza foi debatido por especialistas e intérpretes, desde o trabalho pioneiro, de enfoque psicanalítico de Feuer: FEUER; Lewis, S.; “The Dream of Benedict Spinoza”, in American Imago, XIV, 1967, pp. 225-242: BERTRAND, M.; Spinoza et l’immaginaire, Presse Universitaire de France, Paris, 1983; ROSENTHAL, Michael A.; “The Black, scabby Brazilian. Some Thoughts on Race en Early Modern Philosophy” in Philosophy&Social Criticism, 31, 2005, pp. 211-221; MONTAG, Warren; Bodies, Masses, Power. Spinoza and his Contemporaries; Verso. London-New York, 1999, p. 84 y ss., em espanhol, Cuerpos, masas, poder: Spinoza y sus contemporáneos, Tierra de Nadie ediciones, Madrid, 2005; “Chi ha paura della moltitudine?”, em: Quaderni Materialisti, 2003, pp. 63-79. No influente livro de Toni Negri, o sonho de Spinoza é diluído, sem análise dos conteúdos e sua conexão com a Ideologia holandesa, como mera introdução formal e ilustração filosófica ao poder constitutivo da imaginação no Real: ver NEGRI, Antonio; La anomalia salvaje. Ensayo sobre Poder y Potencia en Spinoza; Anthropos, Madrid, 1993, pp. 157-159.

[26] O que é exato, mas não num contexto classista-racista como o de Spinoza. Uma péssima comparação, mutatio controversiae, em especial no caso de Hegel, do qual não encontram exemplo a citar. A fantasmagórica imagem do escravo negro é subsumida no símbolo criativo Calibán, o poder criativo da imaginação (!!). Ver HARDT, Michael/ NEGRI, Antonio; Commonwealth, Belknap Press, Harvard, 2009, p. 99 y ss.; em espanhol: Commonwealth: O proyecto de uma revolución del común, Akal, Madrid, 2011, p. 112; e um tema que já havia desenvolvido, “A la sombra del negro sarnoso brasileño”, en sua obra clásica: La anomalia salvaje. Ensayo sobre Poder y Potencia en Spinoza; Anthropos, Madrid, 1993.

[27] O dado em STEVEN, Nadler: Spinoza. A Life, Cambridge University Press, Cambridge, 1999, p. 22.

[28] Na época, estimava-se que chegassem por semana a Curaçao entre 1.000 e 2.000 escravos.

[29] ISRAEL, Jonathan I.; The Dutch Republic: Its Rise, Greatness and Fall, 1477-1806, Oxford University Press, Oxford-New York, 1995.

[30] Ver EMMER, Pieter, C.: “The Dutch and the Making of the Second Atlantic System”; in SOLOW, Barbara L. (ed.),Slavery and the Rise of the Atlantic System, Cambridge University Press, Cambridge, 1991), pp. 75–96.

[31] Em espanhol, KANT, Immanuel; Sobre la paz perpetua; Tecnos; Madrid, 1998. Alguns pesquisadores sustentaram que Kant é o criador do conceito moderno de raça, não do racismo per se, como Emmanuel Eze, “The Color of Reason: The Idea of 'Race' in Kant's Anthropology”; in EZE, E. (ed.), Postcolonial African Philosophy: A Critical Reader, Blackwell, Cambridge, 1997, pp. 103-40; Charles W. Mills debate a tesis de Eze: “Kant's Untermenschen” in VALLS, Andrew (ed.); Race and Racism in Modern Philosophy, Cornell University Press, Ithaca, 2005, pp. 169-93.

[32] Ver a história geral de Georg L. Mosse: Toward the Final Solution: A History of European Racism, University of Wisconsin Press, Madison, 1985.

[33] Os três principais grupos raciais reconhecidos na Modernidade, brancos, amarelos e negros, como descendentes dos três filhos de Noé: Jafet, Sem e Caim, como acreditava, por exemplo, o almirante Cristóvão Colombo, aos encontrar os três primeiros indígenas no Caribe.




Notas dos tradutores

[A] Epígrafe acrescentada pelos tradutores brasileiros que não resistiram à tentação. Os que se interessem por uma leitura seminal sobre os “enroscamentos” da ideologia liberal escravista na formação do romance brasileiro – e na mesma chave da interpretação marxiana, encontram material de primeira qualidade em SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo, Duas Cidades, 1981. Capítulo central desse estudo já clássico nos estudos literários marxianos, “As ideias fora de lugar” (pp. 11-31), pode ser lido (em português).

[B] Ver sobre o termo em “marrano”.

*Difícil não pensar, aqui, na lenda que inspira o Der fliegende Holländer [“Holandês voador”, também traduzido como “Navio Fantasma”], ao qual Wagner deu tratamento de ópera romântica, que estreou em 1843. Para aproveitar a oportunidade, os que gostem, ouve-se “A Balada de Senta”, maravilhosa, a seguir:

[C]Sobre esses cadernos de estudo do jovem Marx, sobre Spinoza, em português, ver 12/8/2012, redecastorphoto: Sobre: El Cuaderno Spinoza de Karl Heinrich Marx 
[D] Kant poderia estar falando dos EUA hoje, na Europa Ocidental e no norte da África. Difícil dizer melhor.

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