quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Boykinismo* - Joe McCarthy compreenderia


25/9/2012, Andrew J. Bacevich, American Empire Project
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Andrew J. Bacevich
Primeiro, foi o bru-ha-ha em torno da “Mesquita no Marco Zero”. Depois, o pastor Terry Jones de Gainesville, Florida, nas manchetes, promovendo o “Dia Internacional de Queimar Alcorão”. Mais recentemente, um norte-americano que postou vídeo antimuçulmano escandaloso na internet, com o consequente torvelinho.

Durante todo esse tempo, a posição oficial dos EUA permaneceu imutável: o governo dos EUA condena a islamofobia. Os norte-americanos respeitam o Islã como religião de paz. Incidentes que sugiram coisa diferente são serviço de alguma minoria insignificante – doidos, semeadores de ódios e caçadores de publicidade. Entre os muçulmanos, de Benghazi a Islamabad, a “explicação” não pegou.

E não sem razão: embora seja confortador desqualificar as irrupções de anti-islamismo nos EUA, como serviço de uns poucos fanáticos, o quadro, de fato, é muito mais complicado. E as complicações, por sua vez, ajudam a explicar por que a religião, antes considerada ativo da política externa dos EUA, converteu-se, nos últimos anos, em dívida exigível de curto prazo.

Comecemos por rápida aula de história. Do final dos anos 1940s ao final dos 1980s, quando o comunismo oferecia argumento guarda-chuva ideológico para o projeto do globalismo norte-americano, a religião foi tema destacado da política externa dos EUA. A antipatia comunista contra a religião ajudou a conferir notável durabilidade ao consenso da política exterior da Guerra Fria. Bastava declarar que comunistas eram gente sem deus, para excluí-los da ordem humana. Para muitos norte-americanos, a Guerra Fria ganhou toda a clareza moral que chegou a ter, graças à convicção de que havia uma disputa em que se confrontavam fiéis tementes a Deus e infiéis negadores de Deus. Dado que os EUA estavam do lado de Deus, passou a ser verdade axiomática que Deus retribuiria a deferência.

De tempos em tempos, ao longo das décadas durante as quais o anticomunismo foi a alma mater que animou o espírito das políticas norte-americanas, estrategistas judeu-cristãos em Washington (eles mesmos nem sempre crentes), obraram sobre a noção teologicamente correta de que cristãos, judeus e muçulmanos todos cultuavam um mesmo Deus, não raras vezes alistando muçulmanos, às vezes de crenças fundamentalistas, para lutarem diretamente em eventuais escaramuças contra infiéis locais. Exemplo notável disso foi a Guerra Soviético-Afegã de 1979-1989.

Para causar dano máximo aos ocupantes soviéticos, os EUA apostaram seu peso no apoio à resistência afegã, elegantemente apresentada em Washington como “combatentes da liberdade”, e canalizaram sua ajuda (com a intermediação de sauditas e paquistaneses) para o grupo mais religiosamente extremista dos que por ali havia. Quando esse esforço resultou em massiva retirada dos soviéticos, os EUA celebraram o apoio que haviam dado aos mujahedin afegãos como prova do gênio estratégico dos EUA. Foi praticamente como se Deus assim o tivesse decidido e sentenciado.

Mas, poucos anos depois da retirada soviética, os combatentes da liberdade viraram os ferozes Talibã antiocidente, que deram santuário à al-Qaeda enquanto planejava – com pleno sucesso – atacar os EUA. Evidentemente, alguém enfiara uma cunha na engrenagem dos planos de Deus.

Com o lançamento da Guerra Global ao Terrorismo, o islamismo substituiu o comunismo como corpo de crenças que, se não fossem contidas, ameaçavam espalhar-se pelo mundo, com terríveis consequências para a liberdade humana. Os mesmos que Washington armara como “combatentes da liberdade” tornaram-se então os mais perigosos inimigos dos EUA. Ou, pelo menos, nisso acreditavam membros do establishment da segurança nacional, ou diziam que acreditavam. E, assim, sumiu de pauta qualquer discussão sobre se o globalismo militarizado seria ou não abordagem adequada para promover globalmente os valores liberais ou, mesmo, só os interesses das grandes empresas dos EUA. 

Verdade que, como palavra-de-ordem, fazer guerra ao islamismo sempre foi empreitada difícil, desde o início. Com políticos obrando para impedir que o islamismo se confundisse com o Islã na mente popular, muitos norte-americanos – por sincero medo, ou mal-intencionadamente – viram aí uma diferença sem diferença alguma. Muitos esforços fez o governo Bush nesse terreno, tentando meter a ameaça pós-11/9 na rubrica “terrorismo”. Mas não deu certo, porque “terrorismo”, como explicação genérica, nada explicava sobre os motivos dos ataques. Por mais que o governo Bush tenha feito e refeito, o único motivo que se via, para explicar os ataques, “tinha a ver” com religião.

Onde exatamente situar Deus, na política dos EUA no pós-11/9 foi verdadeiro desafio para os políticos, especialmente para George W. Bush, que acreditava, com profunda e sincera fé, que Deus o escolhera para defender os EUA naquele momento de perigo máximo. Não foi fácil porque, diferentes dos comunistas, em vez de negadores da existência de Deus, os islamistas eram afirmadores, cada vez mais furiosos, de Sua existência. De fato, nas ácidas denúncias contra os EUA, e na prática de atos de violência antiamericana, eles audaciosamente se apresentavam como instrumentos da realização da vontade de Deus, na guerra contra o Grande Mal, o Grande Satan-EUA.

Guerra em nome de Jesus

O debate sobre quem realmente representa a vontade de Deus é um dos debates que dois governos, de George W. Bush e de Barack Obama, atenta e dedicadamente trataram de evitar. Os EUA não estão em guerra contra o Islã per se, insistem os funcionários do governo. Mas, para os muçulmanos do outro lado do mundo, de pouco servem as repetidas negativas de Washington: a suspeita persiste, e não sem razão.

William Boykin
Veja-se, por exemplo, o caso do tenente-general William G. (“Jerry”) Boykin. Ainda na ativa, em 2002, esse oficial altamente condecorado do Exército falou, fardado, num congresso no qual se reuniam cerca de 30 igrejas e organizações religiosas, ocasião em que respondeu diretamente à famosa pergunta do presidente Bush: “Por que nos odeiam?” E o general tinha opinião bem diferente da opinião de seu comandante-em-chefe: “Eles nos odeiam porque somos nação cristã. Somos odiados porque somos nação de crentes fiéis” – discursou ele.

Noutra ocasião, o general recordou encontro com um senhor-da-guerra da Somália, que se jactava de ser protegido de Alá. O senhor-da-guerra estava redondamente enganado, declarou Boykin, e explicou: “Eu sabia que meu Deus era maior que o dele. Eu sabia que meu Deus é Deus de verdade. E o dele é só um ídolo”. Sendo nação cristã, Boykin esclareceu, os EUA só conseguiriam esmagar o inimigo se “nos erguermos contra eles em nome de Jesus”.

Quando as frases de Boykin chegaram às manchetes, choveram declarações do alto – da Casa Branca, do Departamento de Estado e do Pentágono – todos aflitos para se desassociar dos discursos do general. Mas imediatamente começaram a aparecer sinais de que, embora com excessiva clareza, Boykin, sim, manifestava ideias que prosperavam na cabeça de não poucos de seus concidadãos.

Um desses sinais surgiu imediatamente: apesar do furor espalhafatoso, o general não perdeu seu importante emprego no Pentágono como vice-subsecretário de Defesa para questões de inteligência; sinal de que o governo Bush não vira, nas declarações do general, crime muito grave. Talvez Boykin tenha falado fora de hora; mas ofender alguém, não, não ofendeu. (Diferente seria, se um funcionário de alto escalão do governo dos EUA e fardado, dissesse, falando do primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu, que “meu Deus é Deus de verdade; o dele é só um ídolo”).

Um segundo sinal apareceu imediatamente depois que Boykin aposentou-se do serviço ativo. Em 2012, o influente Family Research Council (FRC) em Washington contratou o general para o posto de vice-presidente executivo. Dedicado a promover “a fé, a família e a liberdade”, o FRC apresenta-se como órgão cristão enfático. Todos os peso-pesados do Partido Republicano são presenças frequentes nos eventos do FRC. A organização é parte do núcleo mais duro dos conservadores, tão constitutiva dele como, digamos, a American Civil Liberties Union é constitutiva da esquerda-esquerda.

Não há dúvidas de que é digno de registro que o FRC contrate, para a função de chefe de operações, um general que pensa e diz o que Boykin pensa e diz sobre o Islã. No mínimo, os que o contrataram nada viram de problemático, no modo como o general vê o mundo. Nada viram de politicamente indesejável, ou arriscado, em associarem-se ao Boykinismo. Boykin é gente deles. O mais provável é que, ao contratar Boykin, o FRC tenha querido enviar uma mensagem: nas questões nas quais o novo diretor é especialista – questões de guerra, sobretudo – o mais politicamente incorreto, declarado, é virtude.

Depois que o FRC adotou o general Boykin, uma coisa é certa: já não se pode – e será erro grave fazê-lo – reduzir a islamofobia nos EUA a qualquer simples minoria insignificante.

Joseph McCarthy
Como os apoiadores do senador Joseph McCarthy, que, nos primeiros tempos da Guerra Fria viam comunistas debaixo de cada mesa do Departamento de Estado, essa gente já se atreve a expressar abertamente suas ideias porque sabem que outros, em maior número, partilham as mesmas ideias. Dito de outro modo: o que, nos anos 1950s, os norte-americanos conhecemos como McCarthyismo, já reapareceu, sob a forma de Boykinismo.

Há divergência entre os historiadores sobre se o McCarthyismo foi uma perversão do anticomunismo ou sua mais perfeita tradução. Do mesmo modo, hoje, haverá quem discuta se o Boykinismo é apenas resposta ardente, ou completamente ensandecida, ao que há quem veja como “ameaça islamista”. Mas uma coisa é indiscutível: assim como o senador de Wisconsin em seus dias de glória incorporou um traço não trivial da política norte-americana, assim também acontece com o ex-agente-de-operações especiais e general “ordenado pastor com vocação para pregar o Evangelho de Jesus Cristo”.

Chama a atenção que, como líder supremo do Boykinismo, as ideias do ex-general são espantosamente semelhantes às do falecido senador. Como McCarthy, Boykin acredita que, se o inimigo externo é perigoso, muito mais perigoso é o inimigo interno: “Estudei a guerrilha marxista” – disse ele num vídeo de 2010. – “Foi parte do meu treinamento. E sei que tudo que é feito nos governos marxistas está sendo feito hoje nos EUA”. Comparando explicitamente os EUA governados por Barack Obama à URSS de Stálin, à China de Mao Tse Tung e à Cuba de Fidel, Boykin já disse que, sob o disfarce de reforma da saúde, o governo Obama está organizando uma “força militar que controlará toda a população dos EUA”. Será força maior que o exército dos EUA e funcionará como os Camisas Marrons de Hitler. E tudo aí, sob nossos narizes!

Boykinismo: o novo McCarthyismo

Quantos norte-americanos endossaram o delírio conspiratório que era o modo como McCarthy via a política nacional e mundial? Difícil saber com certeza, mas número suficiente para reelegê-lo ao Senado em Wisconsin, em 1952, com maioria confortável de 54% contra 46% de votos em seu concorrente. O que bastou para insuflar medo mortal no coração de muitos políticos, que estremeciam à simples ideia de serem acusados por McCarthy de serem “moles contra o comunismo”.

Quantos norte-americanos endossam as ideias igualmente incendiárias de Boykin? Número suficiente para persuadir os fundadores e financiadores do FRC a contratá-lo, confiantes de que a contratação promoveria, sem em nada denegrir, a marca do grupo. Com certeza, Boykin de modo algum compromete a capacidade do FRC de funcionar como usina de projetos da direita doméstica nos EUA. O recente evento “Cúpula dos valores do eleitor” promovido pelo FRC reuniu luminares, como o candidato a vice-presidente Paul Ryan, o ex-senador Republicano e candidato à presidência Rick Santorum, Eric Cantor, líder da maioria na Câmara de Deputados, e a deputada Michele Bachmann – além do próprio Jerry Boykin, que discursou sobre “Israel, Irã e o Futuro da Civilização Ocidental”. (No início de agosto, Mitt Romney manteve encontros privados com um grupo de “destacadas lideranças conservadoras”, entre os quais, Boykin).

A presença no evento do FRC significa que Ryan, Santorum, Cantor e Bachmann subscrevem os fundamentos do Boykinismo? Tanto quanto os que exploraram o momento do auge do McCarthyismo para extrair vantagens políticas – Richard Nixon, por exemplo – mesmo sem concordar com todos os delírios de McCarthy. Mas a presença de lideranças Republicanas em evento do qual Boykin é um dos conferencistas sugere que nada veem de especialmente objetável ou politicamente daninho, no que ele diz e prega.

As comparações entre o McCarthyismo e o Boykinismo param por aí. O Senador McCarthy fez seu inferno sobretudo no plano doméstico, pregando a caça às bruxas, destruindo carreiras e atropelando direitos civis, dando à política dos EUA ares ainda mais circenses que o habitual. Em termos de relações internacionais, o McCarthyismo só fez reforçar um consenso anticomunista que já havia no mundo. As loucuras de McCarthy não criaram inimigos em outros países, todos contra os EUA. O McCarthyismo simplesmente reafirmou que o inimigo eram os comunistas, e tornou ainda mais dificultosa a tarefa de exercer o pensamento crítico no campo político.

O Boykinismo, não. O Boykinismo tem impacto em todo o mundo. Diferente do McCarthyismo, não inspira medo algum a candidato algum, a cargo algum, aqui mesmo nos EUA. Atrair ou o apoio ou a ira do general Boykin não definirá o rumo de nenhuma eleição. Mas as várias manifestações de Boykinismo ajudam a alimentar o sentimento antiamericano no mundo islâmico. Reforçam a crença, entre os muçulmanos, de que a Guerra Global ao Terror é, isso sim, guerra contra eles.

O Boykinismo confirma o que muitos muçulmanos já tendem a crer: que os valores muçulmanos e os valores norte-americanos seriam irreconciliáveis. Presidentes e secretários de Estado dos EUA dedicam-se a repetir que o Islã é umas das maiores tradições religiosas e patrimônio imaterial da humanidade, e relembram as muitas ações militares que os americanos empreenderam para defender (pelo menos à primeira vista), povos muçulmanos. É mijar contra o vento, se se considera o que os EUA fazem hoje a iraquianos, paquistaneses, afegãos e outros povos do Oriente Médio Expandido.

Se nem nos EUA há número significativo de americanos que engulam o argumento ideológico inventado para justificar a intervenção dos EUA no mundo islâmico – invadir e ocupar e detonar e destruir, sim, mas respeitando a concepção de liberdade (inclusive a liberdade religiosa) dos muçulmanos – ainda muito menos os muçulmanos a engolem. Nesse sentido, os apoiadores do Boykinismo que rejeitam (até) aquela tentativa de argumento, estimulam os muçulmanos a odiar cada vez mais os norte-americanos. E assim, cada vez mais, reafirma-se a indispensabilidade da violência de forças armadas, forças especiais, forças clandestinas e outras, como único instrumento da política dos EUA no mundo islâmico. E continuam a reproduzir-se os erros e vícios que criaram e definiram a era pós-11/9.



Nota dos tradutores
*Do Urban Dictionary: Boykinism. Fanatismo religioso imbecil, que se expressa mediante ignorância da história mundial, de teologia e da história da Cristandade. É uma forma de terrorismo teológico do mais primitivo. Ocorre boykinismo quando um adulto pensa como criança em questões de religião. É uma doutrina da imaturidade religiosa e da incompetência. É palavra derivada do nome do tenente-general William G. (“Jerry”) Boykin (detalhes no texto). [verbete assinado por Kasala Djibwanda Musema Kweli].

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