sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Putin joga sua isca


15/9/2012, M K Bhadrakumar*, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Vladimir Putin
Com o “reset” EUA-Rússia permanentemente no limbo, não surpreende que o presidente Vladimir Putin tenha feito um dos mais importantes pronunciamentos de seus quatro meses de governo, chamando a atenção para a comunidade de interesses que ligam as duas maiores potências mundiais e, de fato, que ligam a Rússia e o ocidente, numa das questões mais candentes da atual política mundial: a questão do Oriente Médio.

O pronunciamento de Putin na 5ª-feira colheu a oportunidade de sua reação ao ataque terrorista contra o consulado dos EUA em Benghazi, Líbia, e à morte do embaixador dos EUA. Foi pronunciamento claramente estruturado – embora tenha sido oferecido em fatias, em diferentes declarações à imprensa. ­– E é expressão de uma dramática conclamação, para que Rússia e ocidente, juntos, empenhem-se em modelar a Primavera Árabe na direção certa.

O pronunciamento do Kremlin diferencia-se visivelmente dos secos comentários dos chineses, que, no geral, permaneceram na linha das homilias de “eu bem que avisei”. Fato é que Moscou viu uma janela de oportunidade para superar o ameaçador hiato que surgiu entre as respectivas posições da Rússia e do ocidente em questões complexas como Síria e Afeganistão – e Irã.

Putin falou longamente. “Condenou” o ataque na Líbia em termos excepcionalmente fortes, “terrível crime”, “distanciado da civilização moderna”. A veemência da condenação deixa claro que Moscou não trabalhará para extrair vantagens das dificuldades dos EUA na Líbia, apesar das vastas diferenças que há, entre os dois países, quanto à intervenção da OTAN naquele país.

Interessante, que Putin tenha ignorado completamente a evidência, muito clara, de que a intervenção ocidental é o fator principal que desencadeou a fúria dos grupos islamistas radicais na Líbia – fúria que, agora, agride interesses dos EUA. Moscou entende, obviamente, que o momento da tragédia não é oportuno para ‘ouvir verdades’, nem que venham em entrelinhas sutis.

“Somos todos norte-americanos”

Putin estendeu-se longamente sobre “as muitas diferenças de opinião” que se veem, em anos recentes, entre o que Moscou pensa e o que Washington pensa sobre “modos de resolver problemas em países com dificuldades”. Disse que a Rússia partilha com os EUA os princípios de democracia e liberdade; que concorda com os EUA quanto a haver um déficit de democracia em “numerosos regimes políticos”.

Mas a diferença está nas respectivas abordagens, dos russos e dos norte-americanos, para criar mundo melhor. Moscou acredita que esses problemas têm de ser resolvidos mediante negociações pacíficas, de modo que os regimes autoritários possam andar num rumo positivo que assegura a harmonia social nos planos das diferentes fés, religiões e etnias. Claro, esse pode ser “processo difícil, doloroso, que exige paciência e profissionalismo”. Mas não há qualquer real alternativa.

O mais próximo que Putin chegou de uma referência oblíqua à crise síria, foi quando disse que Moscou não pode apoiar o caminho da mudança de regime mediante emprego da força e intervenção externa. Se grupos armados rotulados como “combatentes da liberdade” recebem apoio externo, resulta “impasse absoluto”, que pode levar a que “a região mergulhe no caos, o que, de fato, já está acontecendo”.

Mohammed Mursi
Putin também enviou mensagem indireta ao Egito. Sem mencionar o nome do presidente Mohammed Mursi, Putin disse que líderes que conduzem hoje novos regimes têm “responsabilidade pessoal” pelo que “está acontecendo”. Putin parece estar fazendo eco à preocupação que há em Washington por Mursi ter demorado mais de 24 horas para manifestar sua primeira reação – e, quando reagiu, foi pelo Facebook – aos ataques à embaixada dos EUA no Cairo.

Em termos históricos, Putin pela segunda vez levanta-se e expõe-se, deixando-se ver como amigo – e potencial aliado – dos EUA, em momento de sofrimento e trauma emocional em Washington. A primeira vez foi há 11 anos, quando dos ataques de 11/9 contra New York e Washington. Veem-se aí (I) a marca da persistente agenda política de Putin, que quer integrar a Rússia com o ocidente, mas como parceira em pés de igualdade, com respeito mútuo e reconhecendo os legítimos interesses da Rússia como grande potência – e (II) o fracasso repetido, de sucessivos governos dos EUA, incapazes de entender e reconhecer a raison d’etre das políticas de Putin.

Verdade é que Putin manifestou, no pronunciamento da 5ª-feira, espírito de irrestrita solidariedade com o presidente Barack Obama:

Realmente espero que essa tragédia – porque claramente é uma tragédia, tragédia que, insisto, atinge nós todos, porque todos nós, nós e nossos parceiros ocidentais, inclusive os EUA, combatemos juntos contra o terrorismo –, realmente espero que essa tragédia nos motive, todos nós, a intensificar a luta conjunta, e enfatizo a palavra “conjunta” – contra o terrorismo e as ameaças terroristas. [1]

Muito claramente, Moscou enviou importante sinal ao ocidente e a Obama, em particular. Deve-se considerar que Putin com certeza sabe dos ataques que Mitt Romney desferiu contra Obama a propósito da crise em Benghazi; e atentamente se absteve de qualquer crítica direta às políticas norte-americanas no Oriente Médio.

A fala de Putin é, claro, a palavra final da posição russa sobre o contragolpe que os EUA sofreram no Oriente Médio, não importa o que diga a imprensa em Moscou. Outro fato que não pode passar sem registro é que Moscou adotou posição absolutamente diferente da posição de Pequim, sobre os mesmos ataques terroristas na Líbia.

O Ministério de Relações Exteriores da China publicou declaração formal, em que expressa choque e condena os “eventos violentos”. E lembra a imperiosa necessidade de que se observem as normas da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. Foi nota curta, seca, correta. Mas sem qualquer traço de empatia.

Um novo acionista...

Mas os principais jornais chineses abriram virtual guerra contra as políticas norte-americanas para o Oriente Médio, atribuindo a elas a responsabilidade pela tragédia da 2a-feira. Em coluna assinada do Global Times, lia-se:

O assassinato do embaixador e seus colegas demonstra o fracasso da política externa dos EUA na região. A política de “mudança de regime’’ de Washington na região pode bem levar a um “Inverno Árabe” (...) e o chamado “pivô” girado contra a Ásia se perderá no pântano do Oriente Médio. [2]

Se se considera a situação geral no Oriente Médio e Norte da África, vê-se que a tendência política hoje dominante é islamista, não secular (...) Há agudas contradições na política de Washington para o Oriente Médio. A política de mudança de regime na Síria alistou os EUA ao lado do extremismo político de grupos salafistas e wahhabistas e de terroristas na região (...), alguns dos quais têm ligações com a Al Qaeda.

Faltam calma e reflexão ponderada à política de Washington para o Oriente Médio (...) Os americanos estão colhendo uma colheita amarga e é tempo de reavaliação séria, atenta, por dolorosa que venha a ser.

Em outro comentário, lê-se no Global Times:

Os árabes exigem que os EUA respeitem sua cultura. Mas navios dos EUA com canhões carregados só podem gerar mais ódio no mundo árabe e não servirão àquele objetivo (...) Os norte-americanos cultivam profundo senso de superioridade cultural. Parecem ver outras culturas como marginais, com algum valor exótico. Culturas que se oponham ao ocidente são rotuladas como bizarras e ameaçadoras.

A cultura islâmica é sensível, devido à posição de relativa desvantagem em que está. O mundo deve respeitar os sentimentos dos muçulmanos. (...) Provocações contra a fé islâmica têm acontecido repetidas vezes no ocidente (...) Os norte-americanos devem aprender sinceramente sobre outras culturas. Devem aprender a ver os méritos de outras culturas que ajudaram muitos países emergentes a desenvolver-se rapidamente (...) Muita gente em todo o mundo tenta ainda conter a própria insatisfação em relação aos EUA. Washington também deve exercitar a contenção para melhor se comunicar com outras partes do mundo. [3]

A reação chinesa é motivada, pelo menos em parte, pelo temor crescente da estratégia norte-americana de contenção no Pacífico asiático. Isso posto, a espantosa realidade geopolítica é também que a China vai aos poucos se convertendo em mais um acionista das mudanças epocais em curso no Oriente Médio, inclusive da já visível e marcada gravitação da região na direção do islamismo como ideologia dominante.

Mohammed Mursi na China com Hu Jintao
A dramática decisão de Mursi, que escolheu a China como primeiro país que visitou como Estado expôs a evidência de que a China está tendo sucesso na operação para posicionar-se “do lado certo da história”. As empresas chinesas de petróleo estão ganhando presença na indústria iraquiana de petróleo; a China considera a possibilidade de fazer investimentos no Egito (a British Petroleum já anunciou investimento de US$10 bilhões, na exploração das reservas de gás do Egito); a China mantém amplas relações com os países do Golfo Persa (nos dois campos: com os estados do Conselho de Cooperação do Golfo e com o Irã); e até as relações com Israel e Turquia estão bem encaminhadas.

... e mais um status quo-ista

Chama a atenção o tom competitivo da crítica chinesa às políticas dos EUA para o Oriente Médio. As políticas regionais russas, por outro lado, enfrentam fase de combate montanha acima. A Rússia tem ainda de por ordem no saco de gatos dos laços que a ligavam ao regime de Hosni Mubarak no Egito; os laços com o Irã são complexos e pouco coerentes, e é indispensável separar-se para sempre de um doloroso passado histórico; há contradições nos laços que ligam Rússia e Israel (especialmente nas apostas israelenses contra interesses russos no Cáucaso e no Cáspio; e a aliança que liga a Rússia à Síria); os laços entre Rússia e os estados do Conselho de Cooperação do Golfo, sobretudo entre Rússia e Arábia Saudita, estão em cacos. Em resumo, a Rússia está longe de ter condições para competir contra os EUA, no estabelecimento de um “campo aplainado de jogo” onde expandir sua influência regional no Oriente Médio.

A Rússia preocupa-se, principalmente, como potência do status quo. As revoluções no Oriente Médio não servem aos interesses russos, ainda que, algum dia, pode-se supor, levem ao enfraquecimento da influência regional dos EUA. O que mais frustra os russos é que os EUA não entendem que de fato, numa perspectiva de longo prazo, os dois países podem vir a ter interesses e preocupações compartilhados no Oriente Médio.

Mas de modo algum a Rússia é capaz de tratar a ascensão do islamismo com o mesmo equilíbrio e equanimidade com que os chineses tratam hoje, pelo menos aparentemente, os processos históricos no Oriente Médio. O “baixo ventre macio”, vulnerável, da Rússia, vive muito próximo do Oriente Médio, altamente exposto aos vendavais do islamismo radical.

Além disso, a China dá sinais de ver com bons olhos o crescimento do islamismo em países como o Egito, num contexto cultural de arabismo mais amplo e imbuído de “sentimento antiocidental” (palavras do Global Times), que bem pode ser cenário favorável à expansão da influência da China no Oriente Médio.

Claro que ambas, Rússia e China, veem com horror o crescimento de combatentes salafistas na volátil situação de Líbia ou Síria. Ambas ressentem-se da intervenção ocidental para forçar “mudança de regime” em países do Oriente Médio. E para ambas a soberania dos estados independentes e a obediência à lei internacional, com respeito à integridade territorial, tornam-se princípios sacrossantos, entretecidos com seus interesses nacionais.

Mas o ponto que mais radicalmente diferencia a reação de Putin e os comentários dos chineses é que Moscou jogou uma isca, na tentativa de atrair pensamento novo em Washington. Moscou parece jogar suas cartas na possibilidade de que o governo Obama, que recebeu golpe violentíssimo, traumático, há menos de 72 horas, dê algum sinal de disposição para repensar, se não para criticar radicalmente, as políticas dos EUA. Especificamente, nesse momento, Moscou muito apreciaria que os EUA mudassem o modo de abordar a crise na Síria – onde a Rússia tem altos interesses em jogo.

Barack Obama
A política do governo Obama para a Síria é finamente calibrada, e sempre para um passo antes da intervenção, mas sempre mantendo aberta a porta para uma mudança de regime em Damasco. Moscou muito apreciaria uma mudança fundamental, uma fundamental correção de curso, pelo governo Obama. Moscou espera que Washington se oriente e, afinal, comece a tentar entender que, se a Síria escapar completamente de qualquer controle, a catástrofe será várias vezes pior do que o que se viu acontecer na Líbia, depois que a “revolução”, ali, degenerou completamente. Essa é a ideia que a declaração de Putin tenta fazer chegar a Obama.

A declaração foi pensada como um sinal, endereçado a Obama, num momento em que ele pode estar mais receptivo a reavaliar as posições dos EUA no Oriente Médio. Putin está sinalizando que, se se abrir uma janela de oportunidade para que a Rússia trabalhe com os EUA, para uma transformação política na Síria, abrir-se-á também novo panorama de possibilidades no Conselho de Segurança da ONU. Com o quê até a hoje fraca chama do “reset” Rússia-EUA poderia voltar a luzir outra vez.

A grande questão é se o governo Obama verá as coisas pelo mesmo prisma. Em 2001, George W Bush aceitou o apoio de Putin. Em seguida esqueceu tudo, durante sete longos anos.



Notas de rodapé
[1]   Na página do Kremlin, 13/9/2012, em: Vladimir Putin’s comments on events in Libya”  
[2]  13/9/2012, Global Times, Pequim, Regime change policy hits hard reality [Política de mudança de regime colide contra a dura realidade].
[3]  14/9/2012, Global Times, Pequim, US must learn to respect other cultures [EUA têm de aprender a respeitar outras culturas”].

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MK Bhadrakumarfoi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The HinduAsia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

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