6/9/2012, John
Pilger, JohnPilger.com
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
John Pilger |
Qual o mais poderoso e mais
violento “-ismo” do mundo? A resposta automática será “islamismo”, agora que o
comunismo saiu do olho do alvo. Mas a resposta certa, escreveu Harold Pinter,
“praticamente nunca foi gravada, senão superficialmente, jamais foi documentada
nem reconhecida”, porque é a única ideologia que se apresenta como não
ideológica; nem de direita, nem de esquerda; e que se apresenta como a suprema
solução, é o liberalismo.
Em
seu ensaio de 1859, On Liberty, ao qual liberais modernos rendem
homenagens, John Stuart Mill descreveu o poder do império. “O despotismo é modo
legítimo de governo no trato com bárbaros”, escreveu, “desde que o objetivo seja
o progresso deles, seu aprimoramento; e o meio, justificado, porque realmente
leva àquele resultado.” Os “bárbaros” eram vastas porções da humanidade cuja
“obediência implícita” se exigia. O liberal francês Alexis de Tocqueville também
acreditava firmemente que a conquista sangrenta sobre outros seria “um triunfo
da cristandade e da civilização” que estaria “claramente predeterminado na visão
da Providência”.
“É
mito elegante e conveniente que os liberais sejam pacificadores, e os
conservadores, pró guerras”, escreveu o historiador Hywel Williams em 2001, “mas
o imperialismo à moda dos liberais pode ser mais perigoso, por sua natureza
ilimitada, sem prazo para acabar – a convicção de que representaria uma forma
superior de vida [ao mesmo tempo em que nega] o próprio fanatismo arrogante”.
Tinha em mente, naquele momento, um discurso de Tony Blair, proferido
imediatamente depois dos ataques do 11/9/2001, no qual Blair prometeu “reordenar
esse mundo à nossa volta” segundo seus próprios “valores morais”.
Um milhão de mortos – só no Iraque
– no mínimo, depois daquele discurso, esse perfeito tribuno do liberalismo vive
hoje como empregado pago pelo tirano que governa o Cazaquistão, com salário de
13 milhões de dólares [1].
Os
crimes de Blair não são raros. Desde 1945, mais de 1/3 dos países-membros da
Organização das Nações Unidas, ONU – 69 países – padeceram de uma ou de várias
das seguintes desgraças. Foram invadidos; tiveram governos derrubados;
movimentos sociais foram reprimidos; as eleições foram subvertidas e a
população, bombardeada. O historiador Mark Curtis estima em milhões o número de
mortos. Esse foi, principalmente, o projeto desse campeão liberal, os EUA, cujo
celebrado presidente “progressista”, John F Kennedy, como pesquisa recente acaba
de demonstrar, autorizou o ataque a bombas contra Moscou, na crise dos mísseis
em 1962. “Se temos de usar a força”, disse Madeleine Albright, secretária de
Estado dos EUA no governo liberal de Bill Clinton, “é porque somos os EUA. Somos
a nação indispensável. Estamos acima. Vemos mais longe, no futuro”. Difícil
encontrar definição mais compacta do mais violento moderno liberalismo.
A
Síria é projeto antigo. Eis um excerto de um telegrama conjunto, da inteligência
dos EUA e da Grã-Bretanha, que vazou:
Para
facilitar a ação das forças liberativas [sic] (...) esforço especial deve ser
feito para eliminar alguns indivíduos chaves [e] para dar prosseguimento aos
distúrbios internos na Síria. A CIA está preparada, e o SIS (MI6) tentará montar
ações menores de sabotagem e incidentes de golpes de mão [sic] dentro da Síria,
trabalhando mediante contatos com indivíduos (...) um necessário grau de medo e
(...) conflitos provocados de fronteiras garantirão um pretexto para intervenção
(...) CIA e SIS devem usar (...) capacidade no campo psicológico, e nas ações de
campo, para aumentar a tensão.
Foi escrito em 1957, embora só
tenha vindo à tona em recente relatório do Royal United Services Institute (RUSI),
intitulado A Collision Course for Intervention [Uma rota de colisão para
intervenção]
[2],
cujo autor diz, fingindo que adivinha: “É altamente provável que algumas forças
especiais e fontes de inteligência ocidentais já estejam na Síria há tempo
considerável”. E assim vão acenando com uma guerra mundial, a partir da Síria e
do Irã...
Israel,
a violenta criação e criatura do ocidente liberal, já ocupa parte da Síria. Não
é novidade: israelenses fazem piqueniques nas Colinas do Golan e dali assistem à
guerra civil dirigida pela inteligência ocidental a partir da Turquia e
financiada e armada pelos medievalistas que reinam na Arábia Saudita. Já tendo
roubado praticamente toda a Palestina, atacado o Líbano, matado de fome o povo
de Gaza e construído vasto arsenal ilegal de armas atômicas, Israel é mantido à
parte da atual campanha de desinformação orientada ao objetivo de instalar
fregueses fiéis do ocidente em Damasco e Teerã.
Dia
21 de julho, o colunista Jonathan Freedland do Guardian ameaçava que “o
ocidente não se manterá isento por muito tempo (...) Ambos, EUA e Israel olham
ansiosos as armas nucleares e as armas químicas da Síria, que hoje se diz que
estariam destravadas e em movimentação, temendo que Assad decida desencarnar
numa nuvem radiativa de glória.” Quem disse? Os “especialistas” e “jornalistas”
de sempre.
Como
eles, Freedland também deseja “uma revolução sem a total intervenção que se fez
necessária na Líbia”. Segundo números do próprio Freedland, a OTAN realizou
9.700 “voos-ataque” contra a Líbia, dos quais mais de um terço contra alvos
civis. Usaram-se mísseis com ogivas de urânio. Vestígios podem ser encontrados
nas fotos das ruínas de Misrata e Sirte e nas covas coletivas, já localizadas
pela Cruz Vermelha. Ou que se leia o relatório da Unicef sobre crianças mortas,
“a maioria das quais com menos de dez anos”. Como a destruição da cidade
iraquiana de Fallujah, não se noticiaram esses crimes, porque a imprensa, usada
como instrumento para desinformar é arma de ataque já plenamente integrada ao
arsenal ocidental.
Dia
14 de julho passado, o Observatório Líbio de Direitos Humanos, que fez oposição
ao regime de Gaddafi, relatava: “A situação dos direitos humanos na Líbia é hoje
muito pior que durante o governo de Gaddafi.” Ações de limpeza étnica são regra.
Segundo a Anistia, a população da cidade de Tawargha “continua impossibilitada
de voltar, porque suas casas foram saqueadas e queimadas”.
Entre
os acadêmicos do planeta anglo-norte-americano, teóricos influentes, conhecidos
como “realistas liberais”, ensinam há muito tempo que os imperialistas liberais
– expressão que jamais empregam – são os pacificadores do mundo, e gerentes
especializados em gestão de crises, não a causa da crise. Extraíram do estudo
das nações toda e qualquer consideração sobre humanidade, e congelaram seus
saberes num jargão que serve bem ao poder de fazer guerras. As nações são
analisadas como cadáveres em mesa de dissecção e autópsia. Assim identificaram
“estados falidos” (nações difíceis de explorar) e “estados bandidos” (nações que
resistem à dominação ocidental). Que o regime seja democrático ou ditatorial,
não faz diferença. O mesmo vale para os que são contratados para fazer o serviço
sujo.
No
Oriente Médio, desde o tempo de Nasser, até a Síria de hoje, sempre houve
liberais islamistas colaboracionistas aliados aos liberais ocidentais; agora, o
ocidente está aliado a al-Qaeda. E noções de democracia e direitos humanos, já
completamente desacreditadas, servem ainda como fantasia retórica para encobrir
as ações de conquista “como se exige”.
Plus
ça change...
Notas dos
tradutores
Tony Blair |
[1] Tony
Blair também arrecada lá seu dinheirinho de empresários paulistas, nobremente a
serviço da “melhoria de gestão” do governo do Estado de São Paulo, Brasil,
contribuição desinteressada que o governador Alckmin, da social-democracia (só
rindo) paulista, aceitou lépido. Há notícia sobre isso, do dia 27/8/2012, no
jornal O Estado de São Paulo, em: “Tony
Blair prestará consultoria ao governo de São Paulo”. Aí se lê que “a consultoria será
prestada por meio do Movimento Brasil Competitivo (MBC), que implantará um
projeto de modernização de gestão que custará R$ 12 milhões ao longo de um ano”.
Dinheiro excessivo, que a Vila Vudu jamais pagaria a homem sem qualquer
especialização reconhecida e que, há uma década, alardeava que obrava para
“reordenar esse mundo à nossa volta”, com o resultado que hoje se constata. Mas,
sim, claro, é possível que arrange negocinhos para os empresários paulistas que
pagam-lhe o michê.
[2] 25/7/2012 Syria Crisis
Briefing, Michael Clarke em: “A Collision Course
for Intervention” (em .pdf)
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