quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A segurança chinesa apresenta-se no Hindu Kush


27/9/2012, M K Bhadrakumar*, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Zhou Yongkang
Para um contato de tão alto nível, depois de meio século, Pequim disse de fato bem pouco sobre a não divulgada visita de quatro horas a Cabul, no sábado, de Zhou Yongkang, membro de grau nono do Politburo e principal encarregado da segurança chinesa – embora tenha tido o cuidado de anotar que a “outra visita [dessa natureza] aconteceu antes, feita pelo líder chinês Liu Shaoqi em 1966, quando era presidente da China”.

O alto status de Zhou faz a reticência de Pequim parecer ainda mais estranha, sobretudo quando o Hindu Kush, as montanhas Pamirs próximas e as estepes da Ásia Central veem-se a braços com “os demônios estrangeiros na Rota da Seda”.

Uma aura de suspense cerca a visita de Zhou, sobretudo porque o itinerário inicial da visita não incluía a parada em Cabul. Estava previsto que fosse a Ashgabat, Turcomenistão, depois de visita de dois dias a Cingapura. Mas Zhou resolveu dar uma passada de quatro horas por Cabul. A mudança de roteiro, claro, tornou a visita espetacular, histórica.

Hamid Karzai
É preciso acompanhar atentamente o contexto dessa visita. Numa perspectiva de longo prazo, uma declaração conjunta de China e Afeganistão sobre “estabelecimento de uma parceria estratégica e de cooperação” distribuída em Pequim depois de uma visita do presidente afegão Hamid Karzai em junho marcou nova etapa no desenvolvimento de relações bilaterais. A declaração identificava a segurança como um dos “cinco pilares em que se baseará” a parceria sino-afegã e afirmava que os dois países “intensificarão as trocas e a cooperação” no campo da segurança, incluído aí o “reforço nas trocas de inteligência”.

Nada de “Apocalypse Now”...

Com a “transição” no Afeganistão chegando à fase de profundas mudanças em 2013 – com os últimos cacos da “avançada” dos EUA já em retirada do cenário de guerra, e aproximando-se o prazo limite, em 2014, para a retirada também das forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – Pequim parece destinada a assumir papel mais importante. Em termos das prioridades nacionais da China para o desenvolvimento das regiões orientais do país, especialmente Xinjiang, e a consolidação de seus investimentos econômicos em rápida expansão no Afeganistão e na Ásia Central, não resta alternativa a Pequim: o país tem de se posicionar como força parceira na estabilização do Afeganistão. Em rápido comentário sobre a visita de Zhou a Cabul, o jornal Global Times observou:

Dentro da China há também acalorado debate sobre o papel que a China deve assumir (...) Mas, em termos gerais, todos concordam em que a deterioração da situação doméstica no Afeganistão não beneficia ninguém; para a China, a estabilidade nas regiões da fronteira noroeste sofrerá influência direta; e empresas chinesas na região enfrentarão crescentes problemas de segurança.

Historicamente, o Afeganistão sempre foi pesadelo para grandes potências. Como vizinha do Afeganistão, a China tem sensível interesse na segurança dessa região. Como ajudar o Afeganistão a sair das trevas do caos de uma longa guerra é um dos grandes desafios que a diplomacia chinesa terá de enfrentar.

Em declaração escrita ao chegar a Cabul, Zhou destacou que “É movimento alinhado com os interesses fundamentais dos dois povos, que China e Afeganistão fortaleçam uma parceria estratégica e cooperativa, que também trabalha a favor da paz, da estabilidade e do desenvolvimento da região”.

Bem claramente, a tônica está posta na cooperação bilateral, com recado enviado a terceiros de que a cooperação sino-afegã será fator de estabilidade para a região.

Como a China vê a situação afegã? A mais recente e detalhada declaração sobre o Afeganistão, feita pela China, foi distribuída menos de uma semana antes da visita de Zhou a Cabul, durante discussão sobre o Afeganistão no Conselho de Segurança da ONU, em New York. O que mais chamou a atenção na fala do embaixador Li Baodong foi o empenho em acentuar o tom de esperança e expectativas positivas.

Li Baodong
Li disse que “A paz e o processo de reconstrução no Afeganistão estavam alcançando resultados positivos; a transferência das responsabilidades com a segurança para as forças nacional prosseguia sem percalços, a economia afegã melhorava, e o comércio e a cooperação com outros países estavam sendo ampliados”.

Mas Li, de fato, criticou indiretamente a estratégia da OTAN, ao dizer que a transferência de responsabilidades deve prosseguir em passo lento; e ao dizer que a comunidade internacional deve continuar a ajudar para que melhore a situação da segurança. De fato, também, registrou oficialmente as graves preocupações da China sobre recentes incidentes de violência, sobretudo o alto número de civis mortos; e conclamou a OTAN a não se afastar do que impõe a lei internacional na condução de suas operações, no que tenha a ver com assegurar segurança e plena proteção aos civis.

A parte mais interessante da fala de Li foi ter dado forma articulada à certeza dos chineses de que a estabilização do Afeganistão tem de ser buscada mediante maior integração com a região, “alinhada aos princípios de buscar cooperação e benefícios mútuos” e fazendo-se “bom uso dos mecanismos já existentes”, como a Organização de Cooperação de Xangai.

Evidentemente, Pequim não endossa a ideia da inevitabilidade de um “Apocalypse Now” no Hindu Kush no pós-2014. Isso dito, a visita de Zhou a Cabul tem de ser analisada, em primeiro lugar e sobretudo, como forte manifestação de apoio ao governo de Karzai. Do ponto de vista de Pequim, Karzai é o amigo confiável que deu os passos indispensáveis para fortalecer as relações sino-afegãs.

... nem de jogo de soma zero

Do ponto de vista de Karzai, o apoio de Pequim já pode ter-se tornado imprescindível, sobretudo na atual conjuntura, quando outra vez suas relações com Washington tornaram-se incertas e problemáticas. A OTAN suspendeu sumariamente o treinamento para a polícia afegã e o ministro da Defesa do Afeganistão parece ter reduzido a menos de zero o envolvimento da OTAN nas operações conjuntas com forças afegãs.

Nas últimas várias semanas tem havido muitos casos que indicam a péssima química reinante entre Cabul e Washington. O mais visível foi Karzai ter falado de sua preocupação em relação aos pactos de segurança assinados com os EUA no início do ano. E dentro de três semanas devem começar as negociações sobre a presença militar de longo prazo dos EUA no Afeganistão depois de 2014. Nessa conjuntura, a visita de Zhou – e exatamente na véspera de Karzai viajar para os EUA – com certeza ajuda o presidente afegão a ganhar espaço de manobra em relação a Washington.

Karzai sente-se particularmente incomodado pelo excessivo interesse que os EUA mostram em conseguir influenciar a política interna do Afeganistão – a qual entra em fase delicada, à medida que se aproximam as eleições presidenciais afegãs, previstas para o final de 2014. Karzai disse a Zhou que “a China é boa e honesta amiga do Afeganistão (...) Vemos com entusiasmo a perspectiva de cooperação mais ampla e mais forte com a China”.

Zhou respondeu que o governo chinês respeita integral e completamente o direito de o povo afegão escolher suas próprias vias de desenvolvimento e deseja participar ativamente na reconstrução do Afeganistão.

Zhou assinou três termos de ampliação da cooperação econômica e de segurança com o Afeganistão: um Memorando de Entendimento sobre “plano de ação” para implementação da declaração conjunta de 8 de junho; um acordo com o Ministério de Finanças afegão para um pacote de ajuda de US$150 milhões; e um acordo com o Ministério do Interior afegão para “treinar, financiar e equipar a polícia afegã”.

Nas palavras do Global Times, o acordo de segurança visa a “proteger a segurança dos próprios projetos chineses” no Afeganistão. O grupo estatal China Metallurgical Group opera a mina de cobre de $3 bilhões em Aynak, na província de Logar, no leste do Afeganistão, que tem sido alvo da ação de grupos armados.

Os três acordos não explicam a visita de alto nível, cujo principal objetivo parece ter sido político. O mais provável é que a visita de Zhou tenha selado o quadro institucional para uma ligação de inteligência entre Pequim e Cabul em tempo real. Desnecessário dizer que o assunto interessa enormemente à China. Como a Índia já fez, os chineses buscam acesso ao excelente “banco de dados” da inteligência afegã onde, muito certamente, considerando-se a história, estão armazenados informes atualizados 24 horas por dia, sete dias por semana, sobre os grupos militantes que operam no Paquistão.

Karzai, por sua vez, sem dúvida, falou das suas prioridades políticas também para depois de 2014. As íntimas relações entre China e Paquistão fazem da China uma preciosa aliada de Cabul, em seus desesperados esforços para moderar as políticas paquistanesas. Antes, os EUA faziam esse serviço. Mas  Washington hoje já não consegue nem dar conta de seus próprios problemas com o Paquistão.

Apesar de tudo isso, como anotou um comentarista russo, “Hamid Karzai terá trabalho para apresentar show que seduza seus parceiros chineses. Porque os EUA não entregarão facilmente aos chineses posições que consideram suas”.

Por um lado, parece opinião interessada. Por outro, a grande questão é se o que vemos desenrolar-se pode ser considerado, seja lá como for, um jogo de soma zero – se se considera o quadro geral do “reequilibramento” dos EUA no Pacífico Asiático e a evidência de que Pequim está alerta sobre isso. De fato, no que tenha a ver com estabilizar o Afeganistão, China e EUA continuam no mesmo lado do campo de jogo – e persuadir o Paquistão a cooperar para que se alcance acordo estável continuará a ser objetivo comum das duas superpotências.

Vitaly Churkin
Os discursos do embaixador russo Vitaly Churkin e do embaixador chinês no Conselho de Segurança da ONU na 2a-feira são exemplares. A Rússia ataca sempre a futilidade da estratégia dos EUA para o Afeganistão, zomba dela, sem parar de levantar questões para as quais, é claro, não há resposta fácil.

Diferente disso, Li ofereceu crítica construtiva, com objetivo político claro e orientadamente propositivo. A Rússia enfrenta o problema das bases militares norte-americanas no Afeganistão, enquanto a China, que bem poderia partilhar as mesmas preocupações com Moscou, aborda de outro modo o campo minado, com elegante aplomb diplomático. Mas, no frigir dos ovos, é a Rússia – não a China – que está cooperando com a OTAN no Afeganistão, no plano prático, oferecendo garantias eficientes, confiáveis e sem prazo para acabar, para o trânsito ferroviário dos suprimentos para a OTAN.

O que se tem é a China a insistir abertamente que não tenta qualquer jogada em jogo de soma zero com os EUA; que, ao contrário, os interesses de China e de EUA e seus aliados misturam-se, no que tenha a ver com a estabilização do Afeganistão; e que não há aí qualquer contradição fundamental. Coincidência ou não, na semana passada, Pan Guang, o influente vice-presidente do Centro de Estudos Internacionais da Academia de Xangai [orig. Shanghai Center for International Studies at Shanghai Academy] falou pela primeira vez na história à comunidade estratégica dos EUA sobre o tema “Para compreender o papel da China na Ásia Central e no Afeganistão” [1]. Aconteceu apenas quatro dias antes da viagem não anunciada de Zhou a Cabul.

Pan Guang
Pan é facilmente identificável, entre analistas estratégicos, como voz qualificada do que se chama “Track II” [segunda trilha: diplomacia informal [2]]. Mas a coisa fica especialmente interessante, se se considera que Pan também é hoje o principal conselheiro de Zhou no Ministério em Pequim para questões de Ásia Central e Afeganistão (embora sua área inicial de especialização sempre tenha sido Israel).

Pan falou por mais de uma hora sobre o papel da China na Ásia Central e no Afeganistão. Focou-se no interesse dos chineses no combate ao terrorismo e ao extremismo na região, e no interesse na China em impedir a proliferação de armas de destruição em massa, promover o desenvolvimento econômico e energético, e apoiar o Afeganistão na reconstrução pós-guerra. O tema de sua fala foi que, como os EUA, a China está interessada em questões como crimes transnacionais, imigração ilegal, degradação ambiental, esgotamento de recursos vitais, como a água, e emergentes questões de saúde pública.

Pan reconheceu que Pequim tem ideias diferentes sobre reforma política na Ásia Central, alinhamento de oleodutos e gasodutos na região e sobre a retirada, do Afeganistão, das tropas da OTAN. E concluiu que China e EUA desempenham papéis cada dia mais crucialmente importantes na Ásia Central, e que ali se veem interesses comuns e divergentes, cooperação e concorrência.

Mensagem profunda

Como eco do processo mental de Pan, o Global Times resumiu a visita de Zhou:

A China tem boa oportunidade para melhorar sua imagem global e cumprir suas obrigações internacionais. Enquanto tantos estrategistas ocidentais mantêm-se limitados à mentalidade de políticas para dominar o mundo, a China faz movimentos estratégicos para salvaguardar não só os próprios interesses mas os interesses de toda a região.

Traço redentor da repentina viagem de Zhou a Cabul – que poderia passar despercebido na excitação geral que a viagem provocou, mas é radicalmente importante para a segurança regional – é que a viagem acontece num momento em que as tensões entre Afeganistão e Paquistão vivem momento de aguda escalada.

Zalmay Rassoul
Na semana passada o Ministro de Relações Exteriores do Afeganistão, Zalmay Rassoul alertou o Conselho de Segurança da ONU de que os repetidos ataques pelo Paquistão, contra as províncias afegãs de fronteira, ameaçam as relações bilaterais entre os dois países, “com potenciais consequências negativas para a necessária cooperação bilateral com vistas à paz, à segurança e ao desenvolvimento em nossos dois países e em toda a região”.

Curiosamente, no domingo – no momento em que Zhou viajava para Cabul – o jornal China Daily, voz do governo chinês, comentou com destaque matéria do Xinhua sobre a aprovação, no parlamento afegão, da decisão de Cabul de formalizar queixa ao Conselho de Segurança contra qualquer tipo de ataque paquistanês às fronteiras afegãs.

A longa matéria do Xinhua dizia:

O Paquistão tem algumas vezes bombardeado áreas de fronteira nas províncias orientais de Kunar e Nuristão, forçando os moradores a deixar suas casas e buscar abrigo, acusação que o Paquistão tem rejeitado.

A parte curiosa é que o China Daily deu destaque às partes do discurso de Rassoul, no discurso ao Conselho de Segurança da ONU, semana passada, em que condenava as agressões paquistanesas.

A questão crucial agora é: Como Pequim reagirá a queixa que Cabul formalize, no Conselho de Segurança, contra violações, pelo Paquistão, à integridade territorial do Afeganistão?

O ponto é que a declaração conjunta sino-afegã de 8/6 compromete Pequim e Cabul a “firmemente apoiar as reivindicações dos dois signatários em questões ligadas à soberania nacional e à integridade territorial”, a “ampliar a cooperação e a coordenação de ações na ONU e (...) manter contato e coordenar posições”.

Tudo faz crer que a visita de Zhou a Cabul, nesses tempos convulsos, também leva mensagem profunda dirigida à “amizade incondicionada” entre China e Paquistão.

________________________________

Notas dos tradurores

[1] Evento promovido pela Jamestown Foundation, dia 18/9/2012. Assiste-se (vídeo, 1h37’, em inglês).à conferência a seguir:


[2] Ver, sobre isso em: Track II diplomacy  

___________________________
MK Bhadrakumarfoi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The HinduAsia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.