sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Samir Amin: Parte I - O mundo visto do Sul


Países semiemergentes, China, Rússia e o capitalismo monopólico generalizado [1]

Entrevista concedida a Irene León, Fedaeps*, março/2012
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

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Irene León
ENTREVISTADORA: Gostaríamos de dividir a entrevista em três partes distintas, mas relacionadas: sua visão do mundo e as possibilidades de mudar o mundo; sua proposta conceitual e política – a ideia da implosão do capitalismo e a ideia de nos desconectar dele; e o contexto mundial, visto especialmente do Oriente Médio e da África. Comecemos pela primeira parte: como o senhor vê o mundo, do sul, a partir de uma perspectiva do sul?

Samir Amin
SAMIR AMIN: Sua pergunta não é simples. Proponho também minhas três partes. Começaremos por sugerir três características importantes e decisivas do capitalismo contemporâneo. Não do capitalismo em geral, mas do capitalismo contemporâneo: o que tem de novo, o que caracteriza o capitalismo contemporâneo (Parte 1 da entrevista). Em segundo lugar, trataremos a natureza da atual crise a qual, mais que uma crise, tenho definido como uma implosão do sistema capitalista contemporâneo (Parte 2 da entrevista, em tradução). Em terceiro lugar, sob o mesmo critério e no mesmo campo, analisaremos as estratégias e as forças reacionárias hoje dominantes, quero dizer, do capitalismo dominante, da trinca imperialista Estados Unidos-Europa-Japão e de seus aliados reacionário em todo o mundo (Samir Amin: Parte III - Estratégias imperialistas e lutas políticas, 10/9/2012, em português). Só tendo compreendido isso será possível dimensionar o desafio que os povos do sul enfrentamos, nos países emergentes, semiemergentes e nos demais países.

Minha tese sobre a natureza do sistema capitalista contemporâneo – que, mais modestamente, chamo de “hipótese”, porque está aberta à discussão – é que entramos numa nova fase do capitalismo monopólico; é etapa qualitativamente nova, pautada pelo grau de centralização do capital, cuja condensação chega a tal ponto que, hoje, o capital monopólico controla tudo.

Claro que o conceito de “capital monopólico” não é novo. Foi cunhado no final do século 19 e, de fato, desenvolveu-se como tal, em três fases sucessivas durante todo o século 20. Mas é a partir dos anos 1970-1980 que se inicia etapa qualitativamente nova, porque, antes, o capital monopólico existia, mas não controlava tudo. Atualmente, já não há qualquer atividade econômica capitalista que seja autônoma ou independente do capitalismo monopólico, que controla todas e cada uma das atividades econômicas capitalistas, inclusive as que ainda conservam alguma aparência de autonomia. Exemplo, dentre vários que há, é a agricultura nos países capitalistas desenvolvidos, que é completamente controlada pelos monopólios que fornecem insumos, sementes selecionadas, pesticidas, crédito e cadeias de comercialização.

Essa é característica decisiva, é mudança qualitativa, que cria o que chamo de “monopólio generalizado”, quero dizer, que se estende a todos os campos e esferas. Esta característica provoca consequências substantivas e importantes.

Em primeiro lugar, a democracia burguesa foi completamente desvirtuada. Se, antes, se fundamentava numa oposição esquerda-direita, que correspondia a alianças sociais mais ou menos populares, mais ou menos burguesas, mas diferenciadas pelas diferentes concepções da política econômica, hoje, por exemplo nos EUA, Republicanos e Democratas; ou, na França, os socialistas de François Hollande e a direita de Sarkozy; são todos iguais, ou quase iguais. Estão todos já alinhados num consenso que é o consenso ordenado pelo capital monopólico.

Essa primeira consequência já constitui uma mudança na vida política. A democracia assim desvirtuada converteu-se em farsa – o que se vê claramente nas eleições primárias nos EUA. O capital monopolista generalizado provocou consequências muito graves: converteu os EUA em nação de idiotas. É grave, porque a democracia já não tem como expressar-se.

A segunda consequência é que o “capitalismo generalizado” é a base objetiva da emergência do que chamo de “imperialismo coletivo” da trinca Estados Unidos-Europa-Japão. Afirmo esse ponto com veemência porque, embora como hipótese, posso defendê-la. Não há já grandes contradições entre EUA-Europa-Japão; há alguma concorrência no plano comercial, mas, no plano político, o alinhamento com as políticas definidas pelos EUA como “a” política mundial, é imediato e completo. O que há quem chame de “comunidade internacional”, copia o discurso dos EUA e três minutos depois lá estão os embaixadores europeus, com alguns comparsas e notórios democratas, como o emir do Qatar ou o rei da Arábia Saudita. A ONU não existe. Como representação dos Estados, é uma caricatura.

Essa transformação fundamental, a transição do capitalismo monopólico ao “capitalismo monopólico generalizado”, explica a financeirização, porque esses monopólios generalizados conseguem, dado o controle que têm sobre todas as atividades econômicas, bombear parte cada vez maior da mais-valia em todo o mundo e convertê-la na rampa monopolista, a rampa imperialista, que é a base da desigualdade e do estancamento do crescimento dos países do norte e da trinca Estados Unidos-Europa-Japão.

Chega-se assim ao segundo ponto: esse é o sistema que está em crise e, ainda mais, não é simplesmente uma crise: é uma implosão, no sentido de que esse sistema não é capaz de reproduzir-se a partir das próprias bases, quero dizer: é a primeira vítima de suas próprias contradições internas.

Esse sistema implode, não porque seja atacado pelo povo, mas por causa de seu êxito. O sucesso que teve no processo de impor-se no povo leva-o a provocar crescimento vertiginoso das desigualdades, que não só é socialmente escandaloso, mas também é inaceitável. Mas acaba por ser aceito, e aceito sem objeções. Essa, claro, não é a causa da implosão. O sistema implode porque não consegue reproduzir-se a partir das próprias bases.

E há à terceira dimensão, que tem a ver com a estratégia das forças reacionárias dominantes. Quando falo de forças reacionárias dominantes refiro-me ao capital monopólico generalizado da trinca imperialista histórica Estados Unidos-Europa-Japão, à qual se somam todas as forças reacionárias em todo o mundo, que se agrupam, de um modo ou de outro, em blocos dominantes locais, que se inscrevem nela e mantém essa dominação mundial reacionária. Essas forças reacionárias locais são extremamente numerosas e diferem enormemente de um país a outro.

A estratégia política das forças dominantes, isso é, do capital monopólico generalizado, financeirizado, da trinca imperialista coletiva histórica tradicional: Estados Unidos-Europa-Japão, está definida por sua identificação do inimigo. Para eles, o inimigo são os países emergentes, quer dizer, a China; os demais – Índia, Brasil e outros são países semiemergentes.

Por que a China? Porque a classe dirigente chinesa tem um projeto. Não vou entrar em detalhes sobre a natureza socialista ou capitalista deste projeto. O importante é que tem um projeto, que consiste em não aceitar o que ordene o capital monopolista generalizado financeirizado da trinca; que se impõe mediante suas vantagens: controle da tecnologia, controle do acesso aos recursos naturais do planeta, dos meios de comunicação, propaganda, etc., controle do sistema monetário e financeiro mundial integrado e das armas de destruição em massa. A China, sem alarido, questiona essa ordem estabelecida.

A China não é subcontratualista, há setores na China que, sim, são subcontratistas, na qualidade de fabricantes e vendedores de brinquedos baratos de má qualidade, só porque precisam obter divisas. É fácil, mas não é isso que caracteriza a China. O que caracteriza a China é seu desenvolvimento e a rápida absorção de tecnologia de ponta, sua reprodução e desenvolvimento próprio. A China não é a fábrica do mundo, como dizem alguns. Não se trata de “made in China” [feito na China], mas de “made by China” [feito pela China]. E isso é hoje possível, porque fizeram uma revolução: o socialismo construiu, paradoxalmente, a via que tornou possível entrar na disputa num certo campo do capitalismo.

Eu diria que, exceto a China, os demais países emergentes são secundários. Se tivesse de classificá-los, classificaria a China como 100% emergente; o Brasil, como 30% emergente; e os demais países como 20% emergentes. O resto, comparados à China, são subcontratistas, porque têm negócios importantes de subcontratação, porque têm uma margem de negociação, há um compromisso entre o capital monopolista generalizado financeirizado da trinca e os países emergentes como Índia, Brasil e outros. No caso da China, é diferente.

Por isso a guerra contra a China é parte da estratégia da trinca. Há 20 anos, já havia norte-americanos doidos que defendiam a ideia de declarar guerra à China imediatamente, porque, depois, seria tarde demais.

Os chineses tiveram êxito. Por isso sua política exterior é tão pacífica. E, agora, a Rússia também já integra, com os chineses, a categoria de verdadeiros países emergentes. Lá está Putin, modernizando o exército russo, tentando refazer o que foi a armada russa, que, noutros tempos, constituiu efetivo contrapeso à potência militar dos EUA. Isso é importante. Não discuto aqui se Putin é ou não é democrata, ou se sua perspectiva é ou não é socialista; não se trata disso; hoje se trata da possibilidade de fazer frente ao poder da trinca.

O resto do mundo, o resto do Sul Global, todos nós egípcios, todos vocês equatorianos, e muito outros, ninguém de nós conta ou faz qualquer diferença. Ao capitalismo monopólico coletivo, nossos países só interessam por uma única razão: como fonte de recursos naturais aos quais o capitalismo monopólico coletivo tem de ter acesso, porque esse capital monopólico não consegue reproduzir-se sem controlar, sem consumir, sem detonar os recursos naturais de todo o planeta. Só isso tem interesse para ele.

Para garantir para eles mesmos acesso exclusivo aos recursos naturais, os imperialistas necessitam que nossos países não se desenvolvam.

O “lumpen-desenvolvimento”, como Andre Gunder Frank definiu-o, aconteceu em circunstâncias muito distintas, mas tomo a palavra emprestada agora, noutras condições, para explicar como o único projeto do imperialismo para nós é o “não desenvolvimento”.

Desenvolvimento, só, do anômalo: pauperização mais petróleo; falso crescimento; ou gás, ou madeira, o que for, desde que seja acesso a recursos naturais. E isso é que está a um passo de implodir, porque isso, precisamente, tornou-se moralmente intolerável. O povo já não aceita.

E aqui se geram as implosões. As primeiras ondas de implosões aconteceram na América Latina. Não por acaso, aconteceram em países marginais – Bolívia, Equador, Venezuela. Não é acaso. Depois, a Primavera Árabe. E já há outras ondas, no Nepal e em outros países. Porque esse não é movimento de uma região específica.

Para o povo, protagonista disso tudo, o desafio é enorme. Quero dizer: o desafio não se dá sob o marco desse sistema, tentando transcender o neoliberalismo rumo a um capitalismo “com cara humana”, entrar na lógica da “boa governança”, da redução da miséria, da democratização da vida política, etc., nada disso. Esses todos são modos de administrar, de gerir, a pauperização – único produto dessa lógica.

Minha conclusão – que toma por foco, principalmente, o mundo árabe – é que não estamos passando por alguma simples conjuntura: estamos passando por um momento histórico, que se mostra formidável para o povo. Falo de revolução, mas não quero abusar desse termo. Digamos que estão postas as condições objetivas para construir grandes blocos sociais alternativos, anticapitalistas. Há contexto para a audácia. Para pensar uma mudança radical.
[Continua]



Nota dos tradutores

[1]  Samir Amin: Parte II - A implosão do capitalismo, Irene León entrevista Samir Amin (junho 2012), [em tradução]  e Samir Amin: Parte III - Estratégias imperialistas e lutas políticas, Irene León entrevista Samir Amin, junho/2012 [traduzida].

Fedaeps* – Fundación de Estudios, Acción e Participación Social (Av. La Coruña N28-26 e Bello Horizonte, Quito, Ecuador. Fone (593 2) 290 4242. Fax: (593 2) 252 4481.  info@fedaeps.org

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