sábado, 5 de janeiro de 2013

Apocalipse quando? O desejo de Ano Novo da Comunidade de Inteligência dos EUA


4/1/2013, Tom Engelhardt, Tom Dispatch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Para pensar na Comunidade de Inteligência dos EUA, a melhor fórmula é a mais simples: se você é contratado (e bem pago) para conservar o que há, você é congenitamente mal equipado para imaginar o que deva ser. Há também a urgência, não só de apresentar esboços de algum futuro, mas, também, de implantar a bandeira dos EUA - Stars and Stripes - em qualquer futuro, que mantém sitiada a Comunidade de Inteligência dos EUA, desde meados dos anos 1990s.

Foi quando ocorreu pela primeira vez, a alguém, em Washington, que o poder dos EUA teria de ser suficientemente enorme para controlar simplesmente tudo cuja ocupação, obtenção e controle justificassem desgraçar globalmente o planeta, se não por toda a eternidade, pelo menos pelo tempo necessário para que os EUA se tornassem proprietários exclusivos de todos os futuros.

Desde então, a cada três, quatro anos, o Conselho Nacional de Inteligência (CNI-EUA) [orig. National Intelligence Council (NCI)], o “centro para análise estratégica de longo prazo da Comunidade de Inteligência dos EUA”, dedica-se a apresentar um documento denominado “Tendências Globais para...” [orig.Global Trends], e só muda o ano. A mais recente edição, saída bem a tempo para o segundo mandato de Obama leva o título de Tendências Globais para 2030 [orig. Global Trends 2030]. [1]

Escritório do Diretor Nacional de Inteligência dos EUA e as 16 agências subordinadas
Uma coisa aparece sempre presente no tal documento, espantosamente previsível: cada nova edição é maior e mais elaborada que anterior; então, TG 2030 é maior e mais elaborado que TG 2025. Há uma previsão que, por difícil que seja adivinhar o futuro, tem 99,9% de chances de acontecer: quando lançarem TG2035, o livrão será ainda maior. Custará mais caro e, como o anterior, lá estarão um nó para cada ponto, nenhum ponto sem nó, algum registro para cada probabilidade por vaga que seja, e uma via de fuga para cada previsão que aconteça de não acontecer. 

Nada disso é surpresa. Nos anos recentes, a Comunidade de Inteligência – com orçamento geral de US$75 bilhões, esse labirinto mais labiríntico do que jamais antes foi, em toda a história, 17 agências, cada uma com seus muitos braços e disfarces – é uma das indústrias que mais cresce em Washington. E em troca de dinheiro praticamente ilimitado e de uma década de expansão em seus poderes, a Comunidade de Inteligência promete uma coisa ao povo norte-americano: segurança, especialmente contra “o terrorismo”. Como parte de um complexo de segurança nacional que se beneficiou enormemente do cerco interno ao país e aos cidadãos pós-11/9 e da criação de um estado de guerra permanente, a Comunidade de Inteligência sofre do mal clássico que acomete todas as burocracias: inchaço mórbido. 

Assim sendo, que ninguém se sinta chocado ao descobrir que a tarefa de produzir futuros que produzam ansiedade, que começou relativamente modesta em 1997, converteu-se hoje em operação gigantesca, massiva. Na quinta edição do seriado, os autores nos oferecem um hino de proporções (gráficas) bíblicas, ao futuro e seus imensos muitos perigos.

Para tal obra, reuniram-se grupos de “especialistas” vindos de mais universidades norte-americanas do que a vista alcança, consultaram-se professores-doutores em tal número que a lista não caberia no livro, apesar da longuíssima relação de “Agradecimentos”, e realizaram-se “reuniões para discutir o esboço inicial em cerca de 20 países”. Em outras palavras, fez-se esforço monumental para inventar e montar um futuro que reafirme a Washington que, embora “relativo declínio econômico vis-à-vis estados emergentes seja inevitável”, as décadas futuras ainda assistirão ao sucesso dos EUA (mesmo que, em alguma medida, tenha de ser dividido com a China e as tais outras potências emergentes). 

Frack é o novo crack [2]

Já tendo alcançado tamanho gigante, as “tendências” no título do projeto são cada dia mais... gigantescas. E a linguagem do Tendências Globais 2030 acompanha a pretensão tamanho mamute.

Atualmente, para dar conta do futuro que os políticos pensam que pensam, são indispensáveis: Megatendências (“Empoderamento do Indivíduo”, “Difusão do Poder”), Viradores de Jogo [orig. Game-Changers] (“Economia Global Sujeita a Crises”, “Vácuo de Governança”, “Potencial para Violência Ampliada”), Cisnes Negros (“Pandemias Severas”, “Mudança Climática Muito Mais Rápida”, “Um Irã Reformado”) e Mudanças Tectônicas (“Crescimento da Classe Média Global”, “Envelhecimento sem Precedentes e Alastrado”), para nem falar de Mundos Potenciais ou cenários futurísticos nos quais as tais Megatendências, Viradores de Jogo, Cisnes Negros e Mudanças Tectônicas casam-se e misturam-se.

Disso tudo, o quê, exatamente, os epítomes da inteligência dos EUA, representantes da última única potência global remanescente, concluíram? 

Aí vai o que seria o meu resumo parcial:

– ninguém precisa preocupar-se com o surgimento de alguma novidade da qual já não tenhamos algum sinal ou notícia;

– as várias versões do presente cognoscível podem ser acuradamente projetadas para o futuro;

– tudo, até aí, depende do que aconteça ao maior estado da Terra (embora já com a China fungando-lhe nos calcanhares). É o mesmo que dizer que, com sua “preponderância em praticamente todas as dimensões do poder, seja hard seja soft”, os EUA continuarão a ser benévolos “provedores globais de segurança”; ou “policiais globais” da estabilidade planetária; ou – desastre dos desastres! – os EUA curvar-se-ão sobre eles mesmos, criando uma fortaleza declinista;

– a verdadeira crise norte-americana pode assumir as feições de cortes nos gastos militares;

– a economia global, com mais de um bilhão de novos consumidores “de classe média”, pode melhorar ou piorar um pouco, dentro da margem de erro;

– não se sabe com certeza: o Irã pode construir armas atômicas, mas pode ser que não;

– o conflito global pode aumentar um pouco (com ênfase nas guerras por recursos naturais) – ou diminuir;

– o estado nacional pode continuar por aí, com algo bem próximo do poder que tem hoje, ou perder algum poder para corpos não governamentais e “cidades inteligentes” etc..

Há itens e tópicos que absolutamente não aparecem, sumiram completamente, desapareceram em combate, na versão do Conselho de Inteligência Nacional dos EUA para o nosso mundo futuro. Por exemplo, nem é preciso procurar; nenhuma das seguintes palavras ocorre nas tais Tendências Globais 2030:

corporações (na prática, é como prever que elas não terão qualquer papel digno de registro no mundo do futuro);

depressão (não se pronuncia o nome); fala-se de “recessão” e, até, in extremis, de “colapso”, mas não haverá “depressão global”, nem mesmo se se comparam os EUA a outras potências imperiais planetárias, como a Grã-Bretanha do século 19, de um tempo em que depressões eram coisa corriqueira (uma possível “grande depressão” recebe rápida menção, mas com “baixa probabilidade”);

imperial  (é que... somos ahm... quero dizer... somos a única potência, você sabe... que restou no mundo...); claro; todo mundo sabe que “império” e “imperial” serão palavras sem qualquer serventia no mundo de 2030;

revolução (ah, sim, houve aquelas, em 1848, que se podem citar, mas...), apesar do fato de que o globo sofreu recentemente convulsões, abalos e levantes não previstos, até 2030 a revolução continua inimaginável;

capitalismo (e quem precisaria falar de capitalismo, em mundo no qual só há capitalismo?) A simples ocorrência da palavra faria pensar que, em 2030 algum outro tipo de sistema poderia já ter surgido, para desafiar [o capitalismo], o que, claro, é absolutamente impensável e inconcebível;

arsenal nuclear de Israel (por que trazer à baila o arsenal nuclear de Israel?); existe, claro, e, claro, lá estará, em 2030, onde está hoje, focado diretamente sobre esse fantástico Cisne Negro de nome “Irã” com seu correspondente e inexistente (como até hoje) arsenal também nuclear; e, finalmente,

bases militares (será expressão perfeitamente aceitável para, digamos, Tendências Globais 2040, depois de os chineses já terem implantado algumas [bases militares] pelo planeta, mas) hoje, em mundo no qual os EUA já têm mais de 1.000 bases em todos os cantos do planeta, não se recomenda trazer o assunto à baila, nem discutir o fato de que Washington, na prática, já fechou o cerco contra o mundo, como nunca, em tempo algum, antes. 

Nas Tendências Globais 2030 tampouco se encontrará qualquer consideração séria sobre o poder militar dos EUA ou a tendência, que Washington tem manifestado em anos recentes, não para assegurar alguma estabilidade a alguém, mas para disseminar instabilidade, agitação, revolta e caos em terras sempre distantes [de Washington].

Há um capítulo sobre aviões-robôs armados tripulados à distância, os drones, mas não se trata da guerra norte-americana de drones contra o mundo, nem da alta probabilidade real de que prossiga até 2030. (Outras das palavras-tabu, que não se pronunciam, são “assassinato”, “assassinatos predefinidos”, “lista de pessoas a serem assassinadas”, sempre ao alcance da caneta do presidente Obama. Os levantes árabes são referidos de passagem, mas nenhuma previsão de qualquer levante indiano, aquele, que aconteceu em 2023, naquela nação de tantos milhões de jovens cujas expectativas sempre crescentes colidem frontalmente, já hoje, com frustração e fracasso econômico igualmente crescentes).

Leem-se páginas e páginas sobre problemas com recursos naturais e a possibilidade de guerras de disputa pelos mesmos, mas nem uma palavra sobre o gorila de várias toneladas bem no meio da sala de estar global. Coisas como mudança climática global, embora, sim, sejam citadas, não são problema imediato, para 2030. (Os autores-redatores das previsões praticamente confessam que não houve reunião alguma do Comitê de Inteligência Nacional dos EUA em cidades do sudoeste desertificado dos EUA, nem em cidades do meio-oeste naufragado em inundações, nem no litoral de New Jersey depois do Furação Sandy.).

Qualquer leitor perceberá facilmente que nossos futurologistas pulam de felicidade e trocam entre si abraços metafóricos de congratulações, ou experimentam o equivalente a um “grande barato” movido a drogas, a cada menção ao tal “fracking” hidráulico, que citam e citam e citam inúmeras vezes. Não estou mentindo. Para eles, o fracking tem efeito semelhante ao do crack, um novo crack. Se, algum dia, esse documento virar filme (que Deus nos livre!), pode ganhar o título de Frack to the Future [Frack rumo ao futuro]. Sim, senhores. Em muitos dos tais futuros previstos, o fracking, método que libera tanto da tal “energia extrema”, torna os EUA energeticamente autossuficiente, exportadores de gás natural e praticamente garante que 2030 será, outra vez, ano americano! Yippee!

Mas... e a democracia, filha do tempo?

Principal problema é que os analistas do Conselho de Inteligência Nacional dos EUA conseguiram em larga medida apagar do tal “futuro” deles o aspecto mais essencial, inevitável, inescapável de qualquer futuro: a surpresa. Essa evidência diz muito mais sobre o mundo de Washington habitado pelos autores, do que sobre o que pode acontecer em 2030. Mas antes de abordarmos esse aspecto, permitam-me um instante de autocongratulações.

Vejam bem: prestei-lhe, caro leitor, um enorme favor. Li, de fato, de cabo a rabo, só a carta de duas páginas do presidente do Conselho de Inteligência Nacional dos EUA, autor dessas Tendências Globais 2030. Duas páginas, que começam com “Caro Leitor”, e li também o “sumário executivo” de 136 páginas, de duas colunas, e li também, creiam, a lista longuíssima dos “Agradecimentos”. Nessa condição, posso assegurar que é material produzido por gente de inteligência normal, perfeita, e inclui, até, alguns trechos interessantes. Aquela multidão de especialistas fez o que pôde, em matéria de ficção futurológica e pelo menos um dos artigos, uma análise dita “marxista”, “atualizada” para o século 21 tem, sim, relativo valor como entretenimento. 

Mas no cômputo final, o documento, como a própria Comunidade de Inteligência dos EUA, não passa de objeto hiperinflado para manifestar as próprias limitações e temores de Washington. É também, inenarravelmente tedioso, confuso, repetitivo, hiper-sobrecarregado de elaboradíssimos infográficos para “mostrar” exatamente o mesmo que apareceria mostrado, também, se alguém fosse suficientemente desocupado ou obsessivo para ler o calhamaço inteiro, parágrafo a parágrafo. É exatamente o tipo de coisa que todos os coletivos burocráticos deveriam ser expressamente proibidos de escrever e lançar como arma de destruição em massa contra o grande futuro, sobretudo depois do que gente como H G Wells, Arthur Clarke, Isaac Asimov, Ray Bradbury, Philip Dick, Ursula Le Guin, George Orwell, William Gibson produziu. 

Mas também por tudo isso, a estranheza do projeto, falando em termos históricos, merece nossa atenção. Paremos por um segundo, para refletir sobre o Estado e o tempo.

Tradicionalmente, os Estados têm ímpetos de controlar o passado (não raras vezes, trabalham muito para assegurar para o próprio Estado o monopólio da narrativa histórica). E – não surpreendentemente – muitos Estados também têm ímpetos de controlar o presente. Mas... e o futuro? O futuro é o tempo da democracia. Não está assegurado, jamais, para nenhum governo. Nenhum exército pode ocupar o futuro. As agências de espionagem não podem ‘infiltrar’, no futuro, os seus espiões disfarçados. 

Por isso, precisamente, o seriado Tendências Globais, originalmente brotado do mundo cada vez mais autoconfiante da “única superpotência”, têm lá sua importância e alguma graça. O que se vê ali é tentativa quase inimaginável de um único Estado, pressuposto autossuficiente, encurralar o futuro, a seu modo. Era uma vez, há muito tempo, o futuro foi espaço privilegiado habitado por pensadores utopistas ou distópicos, autores de livros populares de autossalvação, de adivinhos, visionários e também malucos de vários tipos. Mas não se tem notícia de serviços de inteligência estatais que se tenham dedicado a distribuir ‘previsões de ano novo’. Ler o tal documento é, no melhor dos casos, uma estranha aventura de imaginação individual: aquele pessoal está tentando inventar um futuro. É quase como ler Edward Bellamy ou Charlotte Perkins Gilman  [3], Yevgeny Zamyatin ou H G Wells, George Orwell ou Aldous Huxley.

Claro, todos estes escreveram antes de o Pentágono ter começado a planejar-se para ser gigantesco arsenal, sem limites, que já era em 2020, 2035 e 2050; antes de a guerra tornar-se atômica e, portanto, exceto em duas cidades, em 1945, só ser “lutada” com tanques em romances de ficção. Foi antes de os líderes da única superpotência terem sido de tal modo tomados pela húbris, que se puseram a crer e a pregar aos incréus que o futuro, como o presente, lhes pertencem completamente.

O caso é que o futuro é, continua a ser e sempre será, de todos. Até que se converta em passado, o meu palpite, em casa, é tão bom como qualquer palpite da CIA ou do Conselho Nacional de Inteligência dos EUA. O meu, muito provavelmente, é melhor que o deles. Na verdade, aqueles são os piores futurologistas possíveis. E nada muda, mesmo que, como se vê em Tendências Globais 2030, eles conheçam a própria dificuldade para fugir dos modelos gastos das “continuidades” e tentem começar a pensar por “descontinuidades e crises”; não faz diferença.

Façam o que façam, tentem o que tentem, são absolutamente incapazes de pensar pensamento novo, original, fora da caixa. Não se atrevem a deixarem-se surpreender, negam ao futuro o inalienável direito à absoluta novidade, embora – parece-me, pensando cá com meus botões – quaisquer que sejam nossos futuros, serão semeados, cada dia mais, com as tais descontinuidades. O crescimento da China, o colapso do banco Lehman Brothers, o Levante Árabe, a irrupção de ambos – movimento Tea Party e movimento Occupy – até as mais minúsculas ratoeiras que surjam no caminho de ratos e homens, como Paula Broadwell destronando o “maior” general dos EUA – são eventos que, conceitualmente, ultrapassam as “análises” da Inteligência futurologista. São eventos carregados de surpresa. Para a “inteligência”, surpresa é veneno. Preferem esconder algumas cartas e embaralhar meio baralho, a reconhecer que o futuro simplesmente não lhes pertence.

Apocalipse quando?

Os primeiros anos da era George W Bush foram tempos enlouquecidos, mas, de algum modo, visionários. Foi quando Washington cavou um fosso no coração petroleiro do planeta e, muito provavelmente, lançou, ali mesmo, as sementes do Despertar Árabe. Depois, a política passou a ser conduzida mais por gerentes comerciais que por políticos, e a imaginação imperial dos EUA como tal começou a atrofiar. As Tendências Globais 2030 recém lançadas refletem essa realidade tão americana, motivo pelo qual o livrão não chega a nos garantir acesso, mesmo, a futuro algum; parece, isso sim, roteiro de visita turística guiada, pelos sufocantes corredores do pensamento coletivo que se (des)respira em Washington, nesse começo de 2013.

Claro, sim, o futuro é cheio de becos escuros, e não é fácil guiar alguém nessa caminhada. Vejam, por exemplo, a China. Ninguém diria, em sã consciência, que o crescimento da China não seja fato de alta relevância histórica. Mesmo assim, pode-se dizer, sem medo de errar, que, do início do século 19 ao final do século 20, quem previsse a recente, bizarra, espetacular virada que houve na estrada da China rumo ao futuro, seria objeto de risadas e do escárnio de qualquer grupo de especialistas, fosse quem fosse: o colapso da China Imperial, a improvável ascensão do movimento comunista de Mao Tse Tung, brotado do caos da invasão e da guerra civil; ou – o mais absolutamente improvável e imprevisível de tudo – a criação, pelo Partido Comunista Chinês, depois de uma década de radicalismo e extremismo, de uma usina de crescimento capitalista como o mundo jamais viu (condenada, como as Tendências Globais 2030, isso, sim, preveem, a ultrapassar os EUA como maior economia do globo, à altura de... 2030, se não antes).

Assim sendo, por que alguém suporia que, no que tenha a ver com a China, as atuais tendências poderiam, sem mais nem menos, ser extrapoladas para o futuro? Pois extrapolá-las é exatamente o que faz a turma das Tendências Globais 2030; projetam série de eventos ainda mais audaciosos que os “normais”, precisamente para a China: o futuro da China “irá”, de cooperação com os EUA, numa hegemonia regional harmônica, até surtos de nacionalismo e “aventureirismo” (na China) e (verdade que contabilizado como “extremamente improvável” pelos futurólogos da Inteligência Nacional dos EUA) um cenário de “colapso” econômico, que sacudiria a economia global. (...)

Mas, com raras exceções, os autores das Tendências Globais 2030 relegam o choque do futuro à ação malsinada dos Cisnes Negros de sempre: alguma pandemia que mataria milhões de seres humanos; ou tempestades solares geomagnéticas que destruiriam todos os sistemas de satélites (cenário que os roteiristas do programa Revolution da rede NBC já exploraram antes e melhor que os experts do CNI-EUA). Não sendo essas calamidades de novela de televisão e no que tenha a ver com mundo realmente disjuntivo e disfuncional, para o mal ou para o bem, podem desistir: nada se encontra, de realmente importante, nas Tendências Globais 2030. (...)

Contam-nos, por exemplo, que “o mundo consumiu mais comida do que produziu em sete dos oito últimos anos” (tendência que os experts esperam ver revertida com a modificação genética de grãos para alimento); que a água desaparece a olhos vistos (“em volta de 2030, cerca de metade da população global viverá em áreas nas quais haverá carência severa de água”); que a demanda por energia aumentará cerca de 50% nos 15-20 anos à frente; e que os gases de efeito estufa, lançados à atmosfera como se fossem todos perfeitos doidos, já terão dobrado, em quantidade, em meados do século.

Segundo as estimativas das Tendências Globais 2030 consideradas do ponto de vista da Inteligência Nacional dos EUA, em 2030, haverá 8,3 bilhões de pobres onívoros pelo planeta e mais de um bilhão deles, possivelmente dois bilhões, já terão ascendido a alguma espécie de versão de “classe média” abissalmente degradada. Quer dizer: mais gente dirigirá carros, mais gente comerá carne vermelha, mais gente comprará... qualquer coisa. 

Acrescente à mistura a mudança climática – e o “sucesso” do fracking, que nos manterá em dieta de combustíveis fósseis ainda por muitas décadas – e me diga: não é fácil imaginar um ou dois cenários apocalípticos, além de algumas surpresas realmente surpreendentes, totalmente não previstas? 

Um poço dos desejos, no supermercado global

Pense nessas Tendências Globais 2030, da Inteligência Nacional dos EUA, como retrato de uma Comunidade de Inteligência (e da turma de especialistas acadêmicos que vivem pendurada nela) envelhecida, obesa, incapaz de ver o mundo como o mundo é, e, quanto a imaginar o que o mundo deve ser, então... nem pensar! O Conselho da Inteligência Nacional dos EUA, evidentemente, jamais entrevistou homem ou mulher sonhador ou apocalíptico à vera. São especialistas em futuro, que jamais sequer cogitaram de ouvir uma seleção de autores de ficção científica; e, em suas viagens, jamais passaram pelo Uruguai, para entrevistar Eduardo Galeano. Com certeza absoluta, jamais sequer lhes ocorreu ler seu Patas arriba. La escuela del mundo al revés – 1998. [4]

A certa altura, discutindo o consumismo global – e lembrem: 1998 foi o primeiro ano depois da edição do primeiro relatório das Tendências Globais – Galeano escreveu:

A sociedade de consumo é uma arapuca. Os que comandam fingem que não sabem, mas quem tenha olhos na cara vê que a grande maioria das pessoas teria de consumir não muito, mas pouco, bem pouco, ou mesmo coisa alguma, se se tratasse de salvar o resto de natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro a ser corrigido, nem é defeito a ser superado: é exigência absoluta, essencial, do sistema. Nenhum mundo natural conseguirá manter abastecido um supermercado do tamanho do planeta Terra (...) [Se] todos nós consumirmos como consomem os poucos que estão espremendo o planeta para arrancar dele a última gota d’água, não restará mundo algum, para ninguém.

Com as potências emergentes do “Sul” e do “Leste”, temos agora uma chance de ver, nós mesmos, talvez já em 2030, quanta razão tinha Galeano na previsão do destino que espera esse nosso planeta cada dia mais populoso, com recursos cada dia mais pressionados, mais quente a cada dia e dia mais coberto de guerras. Até lá, já teremos aprendido, cada um, de perto, no plano pessoal, o que significa acrescentar a esse mundo um bilhão ou dois de consumidores “de classe média”. Até lá já conheceremos, cada um de nós, nossa dose de extremismo de algum tipo, sejam os formatos conhecidos, de revoluções ou fascismos, sejam formatos novos, que, hoje, ninguém sequer imagina.

Mas se alguém pensou em ler Tendências Globais 2030 à procura de luzes sobre isso, desista. Afinal, o pesadelo de todos os burocratas é, precisamente, a surpresa, a novidade. Os EUA não estamos gastando $75 bilhões em “inteligência” e vendo desaparecer direitos e liberdades norte-americanas clássicas, para que nos apresentem um saco de surpresas perturbadoras. O pessoal do Conselho Nacional de Inteligência dos EUA não consegue, sequer, imaginar o que nos espera. Vivem lá, confortavelmente instalados na bolha-Washington; o resto é o resto, assustador demais. Vivem como se nada tivessem a temer, mas que ninguém se iluda: eles também já tremem, gaguejam de medo. Não fosse assim, não se teriam dado o trabalho de escrever essas Tendências Globais2030 que acabam de lançar.

Como retrato do poder norte-americano já espantosamente cego, surdo e mudo, num mudo que ruge rumo a 2030, nada melhor que essas Tendências Globais 2030. Ali aparece, perfeitamente pintado e definido, o grupo disfuncional mais completamente desqualificado, mais absolutamente incompetente, para garantir segurança de longo prazo ao povo norte-americano. 

Feitas todas as contas, o que se vê é que a Comunidade de Inteligência dos EUA só tem um desejo de Ano Novo: que 2013, 2014, 2015... e 2030 sejam, sempre e sempre, só, incansáveis repetições de 2012.



Notas dos tradutores

[1] Pode ser lido em: National Intelligence Council – Global Trends [em inglês].

[2] Orig. Frack is the new crack. É expressão quase intraduzível: faz referência a um processo para extração de gás natural, que implica injeção de água sob pressão (fracking) em poços de gás em profundidade; o processo, cada vez mais utilizado nos EUA, tem provocado o surgimento de fissuras em estradas e outras superfícies (cracking), num trocadilho com a palavra “crack”, a droga. Sobre o processo e efeitos observados, ver em: 5/1/2012, Campus Progress, Candice Bernd em: The Link Between Cracking and Fracking(em inglês).

Um terremoto de magnitude 4,0 que atingiu Ohio na noite de Ano Novo. Acredita-se ter sido resultado da extração de gás natural através de fraturamento hidráulico. Os cientistas acreditam que, como ao água de fracking injetada sob alta pressão nesses locais penetra nas formações rochosas profundas, liberando vazios e provocando desmoronamentos subterrâneos e conseqüentes terremotos.  Foto de estrada atingida.
[3] Um de seus contos, muito conhecido O papel de parede amarelo, pode ser lido em inglês e em tradução ao português.

[4] GALEANO, Eduardo, Patas arriba: la escuela del mundo al revés. 1998, Siglo XXI, México, em cuja “Introdução” se lê:

Há 130 anos, depois de visitar o país das maravilhas, Alice meteu-se por um espelho para descobrir o mundo ao contrário. Se Alice renascesse hoje, nem precisaria atravessar espelho algum: bastaria olhar pela janela. Ao final do milênio, o mundo ao contrário está aí, à vista de todos: é o mundo que todos veem, com a esquerda à direita, o umbigo nas costas, e a cabeça nos pés. [aqui traduzido].

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