domingo, 20 de janeiro de 2013

Direitonas: o passado vos condena


18/1/2013, Robert Parry, Consortium News
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Robert Parry
Um dos pilares em que se apoia a direita dos EUA é que respeitariam a história norte-americana e, especialmente, a Constituição, mais e melhor que o resto dos norte-americanos.

O que se vê cada dia mais claramente é que a direita nos EUA não apenas absorveu uma ideia gravemente distorcida do que seja a Constituição, como também muitos conservadores destacados têm compreensão aberrante da história dos EUA, como o demonstrou recentemente o senador Rand Paul.

Na 4ª-feira, o Republicano do Kentucky apareceu no noticiário da rede Fox News, insistindo em comparar as ordens executivas assinadas pelo presidente Barack Obama sobre armas e segurança, ao que fez Franklin Delano Roosevelt (FDR), presidente dos EUA durante grande parte da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial.

Franklin Delano Roosevelt
Na “versão Paul” daquela história, “FDR tinha um pouco desse “complexo de rei”, como Obama. Então “tivemos de conter FDR, porque governou por tanto tempo que achou que seria presidente perpétuo. Hoje me preocupa muito que o presidente [Obama] acumule tantos poderes e tanta arrogância, que ‘'parece que pensa'’ que pode fazer o que quiser”.  

No que tenha a ver com FDR, Paul referia-se à 22ª Emenda, que passou a limitar a presidência a dois mandatos de quatro anos. Roosevelt foi o único presidente eleito mais de duas vezes (elegeu-se quatro vezes). Mas a 22ª Emenda nada teve a ver com “conter” o presidente Roosevelt.

Roosevelt morreu logo no início de seu quarto mandato, em 1945. A 22ª Emenda foi aprovada no Congresso em 1947 e ratificada pelos estados em 1951. Em outras palavras: Roosevelt já estava morto há vários anos, quando foi aprovada a 22ª Emenda.

Rand Paul
A história errada de Paul o põe em companhia de importantes Republicanos que se jactam de conhecer a história dos EUA e a Constituição, mas jamais se interessam por apresentar com correção os fatos históricos. Por exemplo, inúmeros candidatos potenciais à presidência pelo “Velho Grande Partido” [ing. Great Old Party, GOP] em 2012, inclusive o governador de Massachusetts, manifestaram perfeita ignorância de fatos básicos da Revolução Americana.

Mitt Romney, que foi governador durante quatro anos do estado onde começou a guerra revolucionária, escreve, em seu livro No Apology: The Case for American Greatness [Sem pedir desculpas: pela Grandeza Americana], que a Guerra Revolucionária teria começado em abril de 1775, quando os britânicos atacaram Boston, pelo mar. “Em abril de 1775, navios britânicos sitiaram o porto de Boston, e conseguiram tomar o comando da cidade” – escreveu Romney.

Sam Adams
A história real é outra: os militares britânicos já controlavam Boston desde muito antes de abril de 1775; os Redcoats [jalecos vermelhos] britânicos já cercavam a cidade rebelde desde 1768. O cerco fechou-se ainda mais depois do movimento Tea Party em Boston, dia 16/12/1773, depois do qual foram impostas as chamadas “Leis Intoleráveis” [orig. “Intolerable Acts”] em 1774, que reforçaram o cerco da cidade e interromperam o comércio pelo porto de Boston.

As ações agressivas dos britânicos forçaram os líderes dissidentes, Sam Adams e John Hancock, a escapar da cidade e refugiarem-se em Lexington, quando as milícias da colônia criavam arsenais de armas e munição em Concord, cidade próxima.

John Hancock
A Guerra Revolucionária não começou com o cerco de Boston, em abril de 1775, como Romney escreveu, mas quando os Redcoats aventuraram-se para fora de Boston, dia 19/4/1775, tentando capturar Adams e Hancock em Lexington e, em seguida, avançaram mais para o interior, tentando destruir os arsenais de armas dos colonos em Concord.

Os britânicos fracassaram nas duas tentativas, mas levaram à guerra, depois de matar oito homens de Massachusetts em Lexington Green. Depois disso, os Redcoats britânicos enfrentaram resistência feroz dos Minutemen [1] perto da Ponte Concord e foram forçados a recuar muito, até de volta a Boston, sofrendo baixas pesadas. Assim, a Guerra Revolucionária começou com retumbante vitória dos colonos, não com derrota – como se lê em livro que Romney diz ter escrito ele próprio.

Minutemen
A interpretação errada que Romney faz e divulga do início dessa guerra é ainda mais surpreendente, porque o estado de Massachusetts celebra anualmente as batalhas de Lexington e Concord, com feriado dito “Dia dos Patriotas”; a equipe dos Boston Red Sox faz um raro jogo matinal, em horário adequado para que a torcida possa deixar o [estádio] de Fenway Park a tempo para assistir o fim da Maratona de Boston [2].

Século errado, Estado errado

Rick Perry
Outros rivais, que disputavam a indicação Republicana à presidência, em 2012, também leram errado outros fatos históricos da fundação da nação.

O governador Rick Perry meteu a Revolução Americana nos anos 1500s. “A razão pela qual nós fizemos a revolução no século 16 foi para acabar, pode-se dizer, com aquela Coroa que nos roubava muito dinheiro” – disse Perry, errando por dois séculos, até a data da Guerra de Independência. Para ele, teria acontecido antes de a primeira colônia inglesa ser estabelecida no Novo Mundo, em Jamestown, Virginia, em 1607, no início do século 17!

Michele Bachman
No serviço de adular eleitores do movimento Tea Party em New Hampshire, a deputada Michele Bachmann de Minnesota pontificou: “Vocês são o estado de onde partiu o tiro que foi ouvido em todo o mundo, em Lexington e Concord”. (Confundiu-se, provavelmente, porque há uma cidade chamada Concord, New Hampshire, que nada tem a ver com outra, também Concord, mas em Massachusetts).

Ainda mais significativo, a Direita norte-americana meteu na cabeça de seus seguidores uma ideia-delírio sobre o que fez a Constituição dos EUA. A narrativa da fundação, no discurso da Direita, pula, da Declaração de Independência, em 1776, diretamente para a Constituição, que foi redigida em 1787 e ratificada em 1788. Eles apagam da história os “Artigos da Confederação”, que regeram a nação de 1777 a 1787.

Ao apagar os “Artigos”, a Direita pode inventar que a Constituição teria sido escrita com o objetivo de estabelecer um sistema dominado pelos estados, com governo central mantido pequeno e fraco. Em seguida, essa versão da história é citada em apoio de um discurso da Direita norte-americana, segundo o qual funcionários federais – como Roosevelt e Obama – estariam violando a Constituição quando procuram solução nacional para os problemas econômicos e sociais dos EUA.

George Washington
Mas, na história real, os homens que redigiram a Constituição [orig. Framers of the Constitution], especialmente George Washington e James Madison, rejeitavam ali a estrutura de unidades estaduais “independentes” e “soberanas” (e governo central fraco e a “liga de amizades”) que os “Artigos da Confederação” haviam estabelecido. Os Framers já haviam testemunhado o fracasso daquele sistema e sabiam o quando ameaçava o futuro da nova nação que acabava de declarar-se independente.

Por isso, Washington e Madison lideraram o que bem se pode chamar de “um golpe de Estado” na Convenção Constituinte, na Filadélfia. Embora só tivessem representação e instruções para sugerir emendas aos “Artigos” e devolver suas sugestões às Assembleias Estaduais, Washington e Madison descartaram integralmente os “Artigos” e produziram estrutura nova e dramaticamente diferente.

James Madison
Nesse movimento, foi-se pelo ralo o palavrório dos “Artigos” sobre unidades estaduais “soberanas” e “independentes”. E toda a soberania nacional foi direcionada para “Nós, o Povo dos Estados Unidos”. A nova Constituição tornou a lei federal superior a todas as outras, e assegurou a existência de um governo central, dando-lhe novos poderes sobre a moeda e o comércio e ampla autoridade para agir em nome do “Bem-estar geral” [orig. “general Welfare”].

Washington e Madison também cuidaram de cercar as Assembleias estaduais, impondo a primazia da nova Constituição, antes de qualquer convenção especial, e requerendo, para que a Constituição fosse ratificada, o apoio de apenas nove, dentre 13 estados [as 13 colônias de então, que enviaram representantes à Assembleia Constituinte na Filadélfia]. Eram mudanças tão absolutamente radicais, que surgiu uma oposição ali mesmo, os chamados “Anti-Federalists”.

Para salvar seu plano, Madison colaborou na redação de uma série de artigos, chamados “Federalist Papers”, trabalho no qual ele mesmo cuidou de baixar um pouco o tom da nova Constituição, tão radicais eram as mudanças inicialmente propostas. Concordou também com a redação de uma Lei de Direitos [“Bill of Rights”], pela qual se davam algumas garantias específicas aos indivíduos e aos estados.

E as Emendas também são erradamente interpretadas 

Algumas das primeiras dez emendas àquela Constituição foram substantivas; outras, quase só retóricas. Por exemplo, a 10ª Emenda determina que poderes não garantidos pela Constituição ao governo central permanecem como poderes “do povo” e dos estados. Mas o núcleo duro de qualquer Constituição é limitar os poderes dos governos – e os poderes que a Constituição dava ao governo central eram extraordinariamente amplos.

Assim, a 10ª Emenda – apesar dos esforços que a Direita faz hoje, sempre exagerando o significado dela – visava, principalmente, a conter os Anti-Federalistas. Para que se veja como sempre foi pouco significativa, basta compará-la com o texto do 2º artigo dos “Artigos da Confederação”, que a 10ª Emenda substituiu. (Sobre isso, ver Robert Parry, America’s Stolen Narrative).   

Hoje, a Direita também distorce o sentido do objetivo original da 2ª Emenda, que diz: “Uma milícia bem regulamentada sendo necessária à segurança de um estado livre, o direito de o povo ter e portar armas não será infringido”. Sempre foi concessão feita aos estados, que queriam ter polícias estaduais para manter “a segurança”; jamais significou armar os cidadãos.

A sangrenta batalha da Rebelião dos Shays
O contexto dessas preocupações era a experiência então recente da Rebelião dos Shays no oeste de Massachusetts (em 1786-87); o medo de rebeliões chefiadas por escravos, no sul; e o medo de ataques de populações norte-americanas nativas, nas fronteiras. Os estados queriam o direito de ter polícias armadas, para enfrentar essas ameaças.

Nos primeiros dias da República, a 2ª Emenda jamais foi vista como direito universal para todos os cidadãos, individualmente considerados. Por exemplo, alguns estados aprovaram “Leis Negras” [orig. “Black Codes”] que proibiam negros de serem proprietários de armas. Quando o Segundo Congresso aprovou a “Lei das Milícias” [orig. “Militia Act”] de 1792, a lei mandava armar especificamente “homens brancos em idade de prestar serviço militar”.

Mesmo assim, apesar de algumas horrendas concessões que entraram na redação da Constituição dos EUA – como tolerar a escravidão – o principal objetivo dos que a redigiram foi criar o quadro geral de uma República democrática, em cujos limites a nova nação pudesse aprovar outras leis necessárias ao crescimento e ao sucesso do novo país.

Naquele momento, as monarquias europeias previam o fracasso daquela experiência de autogoverno. E Washington, Madison e outros assemelhados quiseram mostrar que os norte-americanos conseguiriam se autogovernar sem recorrer à violência. Como um dos principais objetivos da Constituição, lá está: “garantir a Tranquilidade doméstica” [orig. “domestic Tranquility”].

Os que redigiram a Constituição dos EUA também reconheceram o fracasso dos “Artigos” e a necessidade de um governo central vibrante em país tão vasto como os EUA (e que continuava a se expandir). Jamais lhes passou pela cabeça ter população armada que resistisse pela violência contra o governo constitucionalmente constituído e eleito dos EUA. Na verdade, esse comportamento foi declarado “traição” (Sobre isso ler em: Second Amendment Madness.

Constituição dos EUA (fac-símile)
O que hoje se vê são neo-Confederados e outros movimentos da Direita nos EUA, a gastarem somas fabulosas de dinheiro para distorcer a história dos EUA e enganar cidadãos, fazendo-os crer que teriam de fazer todo o possível para “retomar” o próprio país das garras de “Obamas” [expressão que, em vários contextos, significa ainda “dos negros” (NTs)].

Quaisquer tímidos passos na direção de qualquer racionalidade com vistas à segurança, na questão das armas – inclusive leis aprovadas pela maioria conservadora da Suprema Corte dos EUA – são apresentadas como “atos de tirania”, como se ainda se tratasse de a Coroa Britânica tentar impor sua vontade às Treze Colônias, depois de as ter impedido de ter representantes no Parlamento Britânico.

O que é mais imediatamente perigoso, no movimento de a Direita des-escrever a história dos EUA é que – quando os EUA têm, afinal, seu primeiro presidente negro – milhões de brancos tratam de armar-se enlouquecidamente, convencidos de que teriam algum dever de “defender” a Constituição, mas sem ter na cabeça qualquer ideia aproveitável sobre o que os autores da mesma Constituição tentavam fazer, ao redigir aquela Constituição.

O que se vê, não é apenas a virulenta, viciosa retórica da Direita – que compara um presidente duas vezes eleito nos EUA, que tenta implementar uma tímida, modesta legislação sobre porte de armas nos EUA, imediatamente depois de um bárbaro massacre de crianças, ao monarca inglês; vê-se também que muitos, como Rand Paul e vários de seus companheiros Republicanos insistem em continuar a difundir uma visão distorcida dos fatos e não dão um passo, na direção de conhecer a história real.



Notas dos tradutores

[1]  Minuteman [aprox. “minuteiro”]. Na história da Revolução Norte-Americana, designa membro de milícias de cidadãos armados que tinham de manter-se preparados para engajar-se em combate “em minutos”, ao serem convocados. Os primeiros “minuteiros” foram organizados no condado de Worcester, Massachusetts, em setembro de 1774, quando os líderes revolucionários tentavam substituir os soldados britânicos das antigas guardas municipais, exigindo a demissão dos antigos oficiais e a reorganização de todos os regimentos, para que passassem a ser constituídos exclusivamente por “minuteiros” [colonos nativos, não britânicos]. Em seguida, outros condados passaram a adotar o mesmo procedimento; quando o Congresso Provincial de Massachusetts reuniu-se em Salem, em outubro, ordenou que a reorganização fosse completada em todo o estado. O primeiro grande teste dos “minuteiros” foram as Batalhas de Lexington e Concord, em 19/4/1775. Em 18/7/1775, o Congresso Continental ordenou que outras colônias organizassem unidades de resistência revolucionária de “minuteiros”, o que as colônias de Maryland, New Hampshire e Connecticut logo fizeram (trad. da Encylopaedia Britannica).

ATENÇÃO: Essa longa nota histórica nos pareceu importante, para ajudar a entender a “questão das armas em mãos de civis” nos EUA, que hoje tanto se discute. Ajuda a entender também o significado LOCAL que tem, nos EUA, a legislação “antiarmas” que Obama acaba de assinar. Nos EUA, essa discussão tem raízes históricas (e imaginárias) profundas.
É discussão, portanto, que significa uma coisa dentro dos EUA e significa outra coisa, absolutamente diferente, fora de lá. De fato, é discussão que significa NADA – quando é apenas papagueada, de segunda, terceira, quarta mão (e aumentando), por exemplo, pelos jornais, jornalistas e “analistas” brasileiros, que só fazem ler, copiar e reproduzir incansavelmente material produzido e publicado nos EUA.

[2] Mais uma vez, são informações que ajudam a começar a entender o sentido imaginário (e histórico) profundo de uma resistência de cidadãos armados, contra um exército imperial na Revolução Americana, que sobrevive entre os norte-americanos nossos contemporâneos.

Por um lado, não há “pacifismo” e “democratismo” liberal, de superfície, moralista e metido a “ético”, que consigam facilmente convencer esses norte-americanos “patriotas” de que se deveriam desarmar cidadãos armados que resistiram (armados) contra uma potência colonial e a derrotaram. Tudo isso é mobilizado no imaginário político e histórico, dentro da sociedade norte-americana, quando se fala em “armas”, lá, em 2012.

Mas, por outro lado, os Republicanos não têm qualquer interesse em fazer lembrar a importância de haver cidadãos armados em luta de resistência popular contra o Estado e suas instituições e apoiadores, se se candidatam à presidência do mesmo Estado. Então, num movimento muito frequente dentro do imaginário da mais pura má-consciência, da mais pura ideologia, defendem a indústria de armas. Para fazê-lo, são obrigados a apagar, do próprio argumento, o significado POLÍTICO das armas que tanto defendem.

Tudo vira conversa de doidos, que a imprensa-empresa apresenta como se se discutissem “fatos” e houvesse aí alguma discussão “democrática”.

Difícil imaginar “ideias no lugar”, tão artificialmente tratadas pela imprensa-empresa como se estivessem “fora de lugar”, por um lado; e, por outro, “ideias fora do lugar”, artificialmente tratadas como se estivessem “no lugar”. E tudo é apresentado como se aí houvesse algum “fato jornalístico” noticiável e tudo é “discutido” como se houvesse o que discutir nos termos em que a imprensa-empresa discute e ensina a discutir. A imprensa-empresa, que se constrói sobre o “atual” e o “diário”, em busca neurótica de uma “atualidade” inalcançável, é espaço privilegiado para promover esse papo de malucos e dar-lhe foro de verdade.

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