Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Já
há vários séculos, o trabalho de escrever a história do sul da Ásia mostra a
fatídica tendência de ver o passado pelas lentes da religião – sobretudo o
Hinduísmo e o Islã, as religiões quase sempre vistas e apresentadas como
essencializadas, fora do tempo e presas numa oposição binária, ou em relação de
mútua hostilidade.
Sheldon Pollock |
Para
sugerir abordagem radicalmente diferente na teorização desse espaço cultural,
Sheldon Pollock cunhou recentemente a expressão “cosmópolis sânscrita”, que
designa o vasto cenário geográfico de cultura índica que se estendeu, do século
4 ao século 14, do Afeganistão até o Vietnam.
Para
Pollock, o que caracteriza essa cosmópolis foi não a religião, mas as ideias
elaboradas no próprio corpus de textos sânscritos, os quais, por mais de
um milênio, circularam através e acima do mundo vernacular das línguas [o órgão
da fala: no orig. tongues (NTs)] na região.
Esses
textos abraçavam tudo, de regras de gramáticas a estilos de reinados,
arquitetura, comportamento recomendado, objetivos da vida, regulação da
sociedade e a aquisição de riqueza e poder. Fundamentalmente, a cosmópolis
sânscrita tratava, sobretudo, de definir e preservar a ordem moral e social, mas
sem privilegiar nenhuma comunidade religiosa ou étnica particular.
De
crucialmente importante, que se expandiu por grande parte da Ásia, não pela
força das armas, mas por imitação, e sem quaisquer centro de governo ou
fronteiras fortificadas. Quanto a isso, se compara ao mundo helenizado, que
envolveu a bacia mediterrânea e o Oriente Médio depois de Alexandre o Grande.
Quanto
à Índia, pelo menos, historicamente, Pollock só teorizou uma instância dessa
formação transregional. Porque a cosmópolis sânscrita antecipou em cerca de 500
anos o advento de outro fenômeno similar, uma “cosmópolis persa”, que se
expandiu por grandes porções da Ásia Ocidental, Central e do Sul, mais ou menos
do século 9 ao século 19.
Mapa político da região considerada (clique na imagem para aumentar) |
Esses
dois modelos de cultura cosmopolita exibiram paralelos impressionantes. Ambos se
expandiram e floresceram até bem além das respectivas terras originais, dando às
duas culturas um traço transregional – de fato, um traço de “lugar nenhum”
[orig. placeless]. Os dois modelos têm seus fundamento numa língua e
literatura de prestígio que conferiam status de elite aos falantes e leitores.
Ambos articularam o poder sobre o mundo – especificamente, o domínio universal.
E, embora as duas cosmópolis tenham elaborado, discutido e criticado tradições
religiosas, nenhuma estava plantada sobre alguma específica religião, e, bem
diferente disso, adotavam ponto de vista distanciado, “superior” a tudo que
todas as religiões pregavam.
Mas
o que, exatamente, foi a “cosmópolis persa”? Depois da conquista do planalto
iraniano, no século 7, a recusa dos iranianos a permanecer
sob governo e cultura árabes resultou em tentativas para recuperar uma
civilização rica, mas submergida, persa pré-islâmica – movimento que levou, na
dimensão linguística, à emergência do [idioma] novo persa.
Mapa do Irã destacando o Curasão |
Esse
idioma apareceu primeiro como lingua franca falada em todo o planalto
iraniano. Em meados do século 10, surgiu uma forma escrita, derivada de uma
escrita arábica modificada, quando escritores persas no Curasão – nordeste do
Irã, oeste do Afeganistão e Ásia Central – começaram a apropriar-se de uma
herança híbrida do Islã árabe e do Irã pré-islâmico.
De
início, pelo menos, o patrocínio da corte – a saber, a corte da dinastia
samanida dos reis do Curasão (819-999) – teve importante papel nesses
desenvolvimentos. Com base em Bukhara (no sul do Uzbequistão), a corte samanida
controlava as grandes rotas comerciais que conectavam o planalto iraniano com a
Índia para o sul, a Ásia Central turca para o norte e, pela Rota da Seda, com a
China, para o leste. Bukhara era pois uma vibrante zona de comércio, onde se
falavam muitas línguas.
À
altura do século 14, contudo, em toda uma vasta porção do território entre a
Anatólia e o Leste da Ásia, o novo persa já se tornara prestigiada língua
literária, principal veículo usado pelas burocracias estatais e língua de
contato usada na diplomacia interregional. Na China, serviu não só como
lingua franca, mas também foi o idioma oficial durante os séculos 13 e
14. Marco Polo usou predominantemente o persa na China e, de fato, em todas as
suas viagens pela Rota da Seda.
Rota da seda de Marco Polo (marítima e terrestre) (clique na imagem para aumentar) |
O
que explica esse notável desenvolvimento? Um dos fatores foi o ambiente
cosmopolita no qual o idioma novo persa fora incubado. O Khurasão na era
samanida não era diverso apenas em termos linguísticos, mas também em termos
religiosos, com comunidades de cristãos, zoroastristas, judeus, budistas, pagãos
e xamanistas, todos convivendo com muçulmanos xiitas e sunitas.
O
novo idioma, assim, serviu como denominador comum linguístico, numa sociedade
multiétnica. Além disso, dado que não servira como veículo para nenhum tipo de
liturgia ou escritoras sagradas, o novo persa não implicava nenhum ameaça
ideológica ao árabe – a língua dos islamistas vitoriosos no século 7, no Irã.
A
poesia persa também teve papel importante na difusão da cosmópolis persa,
especialmente o grade poema épico do Irã, Shahnama. Iniciado no final da
dinastia samanida e completado em 1010, o épico de Firdausi, com cerca de 60 mil
dísticos rimados, canonizou conscientemente a história dos reinos iranianos
pré-islâmicos.
Mahmud de Ghazni (Clique na imagem p/aumentar) |
Como
a língua na qual foi composto, o Shahnama tampouco ameaçava o sentimento
árabe ou islâmico; ao contrário, elogiava o monarca reinante Mahmud de Ghazni
(997-1030) como alguém em que se combinaram, somando-se, as virtudes de
soberanos iranianos e islâmicos.
Também
assimilava o ethos guerreiro dos turcos da Ásia Central e a herança da
civilização grega. Nas mãos de Firdausi, o próprio Alexandre foi convertido em
grande rei iraniano; sua mãe, em princesa iraniana; e os heróis pré-Zoroastro
foram preservados como análogos aos deuses védicos indianos. No Shahnama,
em resumo, acomodaram-se umas às outras as culturas grega, turca e indiana.
Como
acontecia com textos escritos em sânscrito, que circulavam livremente por todo
um vasto território, depois do século 11 textos escritos em novo persa viajaram
distâncias surpreendentemente longas, saltando por cima de fronteiras étnicas e
políticas, além de ultrapassar inúmeras fronteiras naturais. A produção de
literatura persa tampouco teve algum epicentro geográfico único, nem depois que
os mongóis invadiram o Khurasão, no século 13.
Povos
em regiões como o Cáucaso ou o Sul da Ásia ainda conservam em seus idiomas
locais, cultivando-os e também produzindo, grandes trabalhos de literatura
persa. “Contadores” tamiles e malaios do popular One Thousand Questions
apresentam o texto como de origem persa, que pode ser rastreada até o sul da
Índia do século 16. Assim também, romances persas como o Haft Paykar de
Nizami Ganjavi (m. 1209) foram traduzidos no século 17 para o bengalês para os
reis de Burma [hoje Myanmar] da costa Arakan.
Por
essa via, formas vernacularizadas da cosmópolis persa viajaram para os mundos
burmeses e malaios do sudeste da Ásia. A portabilidade da literatura persa por
todo esse vasto espaço geocultural foi mais uma dimensão da cosmópolis persa
que, também essa, tem perfeito paralelo com a cosmópolis sânscrita que a
precedera.
No
plano político, o mesmo ambiente que nutrira o uso literário e burocrático do
idioma novo persa – o ambiente culturalmente diversificado dos séculos 9 e 10 no
Khurasão – também modelou uma concepção específica do “governante do universo”,
o “sultão”.
Concebida
para ocupar um espaço político que ficava além e acima de todos os grupos
étnicos e todas as comunidades religiosas, essa figura era entendida não como
apenas universal, mas, sim, como verdadeiramente suprema. Nos séculos 9 e 10 no
Khurasão da dinastia dos samanidas, onde se estavam revivendo memórias do Irã
pré-islâmico, os sultões tinham poderes de soberanos universalistas que, antes,
já apareceram associados aos imperadores persas pré-islâmicos.
Essa
concepção acompanhava a ideia da cosmópolis persa, que resistia contra qualquer
reivindicação de território soberano. O mesmo, vale lembrar, aplicava-se também
à cosmópolis sânscrita. Assim como os sultões de Delhi apresentavam-se como
“senhores da superfície da Terra”, os maharajas indianos apresentavam-se,
quase todos, como “asilo do mundo inteiro”.
Ibn Balkhi |
Ainda
mais significativo, já no século 12, o historiador iraniano, Ibn Balkhi revelou
uma separação, de fato já existente, entre religião e estado. Escreveu que o
reinado no Irã pré-islâmico baseava-se no princípio supremo da justiça, e que
todos os reis daquela era transmitiam como lição ao herdeiro coroado a seguinte
máxima:
Não
há reino sem exército, nem exército sem riqueza, nem riqueza sem prosperidade
material, nem prosperidade material sem justiça.
Vê-se
bem que se trata de esquema globalizante: economia, moralidade e política, todas
integradas num só ideário coerente. Chama a atenção também o lugar central que o
autor dá à ideia de justiça – e que não se faz aí qualquer referência a Deus ou
à religião. Como ideologia de governo, essa fórmula viria a ser tema sempre
recorrente no mundo que falava persa, repetida com apenas pequenas variantes por
legiões de autores de literatura cortesã.
Assim
também, uma ideologia de governo que também acomodava-se à diversidade cultural
e focava o princípio da justiça facilitou a incorporação da Índia na cosmópolis
persa. Por um lado, aquela ideologia persa de inclusão dos diferentes era útil
para governar uma sociedade do norte da Índia, ela também extraordinariamente
diversa em termos de religiões, idiomas e arranjos sociais.
Por
outro lado, em 1206, apenas poucas décadas depois que os mongóis na Ásia Central
e no Irã produziram um holocausto e muitos milhares de refugiados turcos e
iranianos, já havia um estado persianizado estabelecido no coração da planície
indiana. Foi o sultanato de Delhi (1206-1526), que herdou as tradições e
ideologias de governo do persianato, as quais, por sua vez, haviam prosperado no Curasão dos governantes samanidas.
A
existência desse sultanato permitiu que os que fugiam das invasões mongóis
migrassem da Ásia Central e do Irã para o norte da Índia, onde foram recebidos
por funcionários do sultanato. Naturalmente, esses refugiados implantaram na
Índia o conjunto completo da cultura persa que traziam da Ásia Central e do Irã.
O
aspecto talvez mais notável da cosmópolis persa, contudo, é a rapidez com que
suas ideias centrais difundiram-se para territórios ainda mais remotos, além das
fronteiras de estados persianizados como o sultanato de Delhi. Uma
ideia-conceito claramente persa, que privilegia a noção de justiça e a conecta à
economia, à moralidade e à política, já chegar à Índia peninsular, quando aquela
região ainda era governada por soberanos hindus.
Baddena (poeta telugo) |
Em algum momento no século 12
ou 13, o poeta telugo Baddena, que vivia na corte Kakatiya em Warangal, escreveu
os seguintes, surpreendentes versos:
Para
conseguir riqueza: que o povo prospere. Para o povo prosperar: o instrumento é a
justiça. O, Kirti Narayana! A justiça é o tesouro dos reis.
São
linhas que revelam claramente a influência do mundo do persianato, porque o
conceito de justiça como principal patrimônio dos governantes absolutamente não
aparece nos escritos do pensamento político em sânscrito. E sobretudo: como na
cosmópolis sânscrita, essas são ideias tomadas por empréstimo cultural; jamais
foram impostas.
Além
da ideologia política, outros itens componentes da cosmópolis persa também
chegaram até a Índia e ali se disseminaram depois do século 13, entre os quais
arquitetura, vestiário, comportamento na corte, culinária e, especialmente,
palavras.
Assim
como se expandia o alcance geográfico das letras persas, assim também se
expandiu a produção de dicionários, cujos compiladores tinham a tarefa de tornar
legível e compreensível para todos toda a literatura produzida em diferentes
pontos do mundo persa. A partir do século 14, começaram a ser produzidos
dicionários na Índia. Esses dicionários e respectivos construtores geraram
equivalentes às palavras persas não só nas línguas da Índia, mas também em
turco, pashtum, aramaico, grego, latim e siríaco.
Império Mughal (Índia) Clique na imagem p/ aumentar |
Entre
os séculos 16 e 19,
a maior parte de todos os dicionários de língua persa eram
produzidos na Índia. A partir do século 14, a língua persa já se generalizara e
era a mais usada para os contatos diplomáticos e de governo em todo o
subcontinente, com muitos indianos empregados nas burocracias judiciária e
financeira no sultanato de Delhi, mais tarde, no império Mughal (1526-1858) e
nos estados que o sucederam.
Resultado
desse processo, palavras em persa infiltraram-se no vocabulário de praticamente
todas as grandes línguas regional do Sul da Ásia. Línguas vernaculares como o
bengalês ou o telugu são fartas em palavras persas, não só na comunicação
oficial, mas também no comércio, literatura, culinária, música, tecelagem e
tecnologias de todos os tipos.
Para
concluir, ao mesmo tempo em que partilhou tantos traços em comum com a
cosmópolis sânscrita, a cosmópolis persa, diferente nisso da índica,
apropriou-se de culturas anteriores cosmopolitas culturalmente prestigiadas – o
Irã pré-islâmico, o Islã árabe e o helenismo. Assim sendo, quando o Islã como
sistema religioso difundiu-se pelo norte da Índia e Deccan, ele avançou como que
encapsulado no interior de um barco muito maior, da tradição e da história
persa.
De
tudo isso, o mais crucialmente importante é o caráter não religioso dessa
cosmópolis persa mais ampla que permitiu que não muçulmanos tão rapidamente
assimilassem muitos de seus aspectos. Por mais que seja clara, muitos estudiosos
modernos parecem não se dar conta dessa peculiaridade. E continuam a ler a
história do sul da Ásia pelas lentes estreitas da religião e, em particular, do
confronto entre hinduístas e muçulmanos. E assim perpetuam os tropos do
despotismo oriental do século 19; os tropos do “choque de civilização” do século
20; ou as ansiedades ocidentais do século 21, em torno do ativismo
islamista.
[*]
Richard Eaton é professor de História na University of Arizona. É autor, dentre outros livros, de Slavery and South Asian
History (Indiana University
Press) e Islamic History as Global History (American Historical
Association).
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