quinta-feira, 18 de julho de 2013

A guerra sem explosões da literatura


Publicado em 18/07/2013 por [*] Urariano Motta

Recife (PE) - Esta semana, tive a honra de participar do Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana. Ali, na mesa onde se encontravam o escritor João Silvério Trevisan e a ilustre mediadora Guiomar de Grammont, o tema da nossa conversa foi Escritor em ação: viver e escrever.

Divulgo a seguir a fala que improvisei por escrito para esse encontro.

Entendo “Viver e escrever” como a vida que se reflete na literatura. Ou de modo mais preciso: como a minha própria vida se reflete no que escrevo.

Antes, um esclarecimento, que devo fazer misturado a um pedido de desculpa.  Quando digo “falar da vida que se reflete no que escrevo”, isso não é um atestado de narciso, de vaidade ridícula, de supor a minha vida digna da literatura. Não, o meu cotidiano é banal, assim como a banalidade imensa que cerca todas as nossas vidas.

Eu nunca fui à lua, não conheço Estocolmo, não sou filho de generais, de traficantes, nem descendo de ladrões riquíssimos ou de famílias quatrocentonas, nessa ordem.

Aliás, na minha família a genealogia se perde, na medida em que não identifico sequer os meus avós. Por esse caminho de biografia magnífica, a minha vida não daria um romance, naquele sentido que o povo muitas vezes fala, “a minha vida daria uma novela”.

Como poderia falar de uma vida que não tem ação de rilhar os dentes, nem acontecimentos extraordinários nem amores glamorosos? A minha vida não daria um best-seller. Por isso, corrijo: best-seller, não, mas a minha vida, assim como a de toda gente, é digna da literatura. Dependendo do que se fizer do banal, da limonada dos limões recebidos, a vida de qualquer pessoa é digna da literatura. Ou melhor dizendo, a boa literatura é que é digna da vida de toda a gente.   

De passagem, esclareço o método particular de quem escreve literatura.

O escritor de ficção, em vez de narrar ideias gerais, narra pessoas, personagens particulares. É da natureza do nosso gênero, é a nossa forma de trabalhar.

Ainda que estejamos escrevendo sobre as coisas mais abstratas, algo como a Constituição Federal atualizada, ainda assim o escritor, o que tem gênese e característica da literatura, falará da Constituição Federal conforme a biografia sentida da própria vida. É como um louco ou doente sem remédio.

Em muitos significados, ele é um funcionário permanente.

O escritor me lembra um bancário que não conseguia sair do banco. Ia pra casa, o banco o acompanhava. Ia dormir, lá estava o banco. Ia pro bar, e quando no calor da cerveja se discutia sobre a estratégia da França com a Linha Maginot depois da 1ª. Guerra Mundial, o bancário concluía:

“Entendo, eu também faço isso. Eu pego os livros de relatórios e empilho na minha frente, pra ninguém me perturbar. Essa Maginot é como lá no banco”.

Não é que o escritor seja um monstro biográfico, que possua um misterioso talento onde não cresçam e frutifiquem ideias. Pelo contrário, não se conhece um só bom autor que não possua uma concepção do mundo e dos seus desconcertos.

Mas é que nele, no escritor, as ideias sofrem uma interpretação particular, que se mostram no que ele escreve. Nele não há lugar para a sobrevivência da tese, que é do ofício de todo ensaio científico ou acadêmico.

Na literatura, os personagens não são bonecos de ideias gerais. São gente, de cara e dente, onde as ideias se batem, se violentam e mantêm o conflito. Como na vida fora da escrita.

Nos livros, falo do que vi em minha juventude, tão perto de mim, como eu gostaria de crer.

Neles falo da repressão da ditadura, de pessoas heroicas, covardes e loucas, ou em profundo desespero, que eu vi.

Falo da minha infância em um subúrbio periférico do Recife, que tem o nome de Água Fria, que não se pronuncia em boa conversa, porque seria o mesmo que falar um palavrão.

O melhor de mim está quando volto os olhos para esse mundo sem nome, de pessoas que desaparecem sem nome, cujo sepultamento é apenas um alternativa precária da carniça para os abutres. É para esse imortal escárnio que me volto. Essa gente, gentinha gentalha da minha genética é que me sustenta. Antes, durante suas vidas e depois.

A literatura é a terra da democracia. Ela permite a um filho do povo escrever e por isso ser recebido com tapete vermelho em qualquer palácio. E a honra será dos palácios.

Essa democracia da literatura, esta literatura que me permitiu ser menos insignificante, é a minha terra e o meu destino.

Eu não sei atirar, esmurrar, e assim não posso combater e matar a injustiça com as mãos cheias de bombas, balas e mísseis.

Como não posso, escrevo.
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[*] Urariano Motta é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas(Recife, Bagaço, 1997). No início de 2013 lançou o romance O filho renegado de Deus (Recife-Bertrand-Brasil, 2013).


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