26/7/2013, [*] M K
Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Vladimir Putin |
Se,
como se espera, o presidente Vladimir Putin da Rússia viajar mesmo a Teerã em
agosto, será viagem rica em simbolismo – mesmo que venha a trocar o avião por um
barco que atravesse o Mar Cáspio, até a costa iraniana. Jamais houve qualquer
dúvida de que há congruências de interesses entre as duas potências regionais,
que são vizinhas.
Mas
esse ano, por curiosa coincidência, marca também o 70º aniversário da
Conferência de Teerã de 1943, evento importante nas relações russo-iranianas,
uma rica tapeçaria de história, salpicada aqui e ali com sangue e traição.
A
história das relações russo-iranianas é surpreendente. Putin foi o único líder
russo a visitar Teerã, desde a Revolução Bolchevique em 1917. Mesmo assim, os
dois países são jogadores antigos na arena geopolítica.
O
retorno de Putin a Teerã, quase sete anos depois do sucesso estrondoso da
primeira visita, em 2007, é como o desfecho de um conto e respectiva “moral da
história”. A política exterior russa completou um ciclo. Putin espera limpar os
estábulos áugicos, removendo,
literalmente, os detritos que se acumularam durante os anos quando não estava no
Kremlin.
Conseguirá?
Dará certo? Putin, sim, é visto como governante carismático pelos iranianos.
Mesmo assim, como seus anfitriões avaliarão as intenções de Moscou? Essa última
pergunta torna desafiadora a missão de Putin – além de arriscada.
O
corte mais violento
Dmitry Medvedev |
A
“distância” que se infiltrou no relacionamento russo-iraniano deve ser vista
como um dos legados da presidência de Dmitry Medvedev (2008-2012), período
quando Moscou só se preocupou com explorar o conteúdo do “reset” com os
EUA, que o presidente Barack Obama ofereceu de bandeja. Os “ocidentalistas” que
ocuparam o Kremlin durante aqueles anos encaravam o Irã com má vontade e desdém.
O
Irã tornou-se preocupação secundária ou terciária para os russos, e a
compreensão estratégica que Putin forjara naquela visita histórica começou a
atrofiar-se. A Rússia continuou a arrastar-se na questão da usina nuclear de
Bushehr, para atender ao que os EUA desejavam.
O
Kremlin não resistiu quando os EUA introduziram a questão do Irã nuclear como
vetor da cooperação russo-norte-americana no âmbito do “reset”. A
cooperação da Rússia, país membro permanente do Conselho de Segurança da ONU,
era vital para que o governo Obama conseguisse apertar os parafusos contra o
Irã, no que adiante se constatou que seria um regime de sanções incapacitantes
com vida própria, que muitos países (como Índia e Japão) aceitaram contra a
vontade.
Mesmo
assim, Moscou entendeu imediatamente que a questão nuclear iraniana levantava
algumas questões fundamentais de legislação internacional e da Carta da ONU, e
que teria implicações profundas na operação de todo o sistema internacional.
Moscou
também não deixou de perceber que o verdadeiro problema do ocidente com o Irã
estava, sim, na ideologia de justiça e resistência; e que nada tinha a ver com
Oriente Médio desnuclearizado.
O
mais violento dos cortes aconteceu quando Medvedev interpretou as sanções da ONU
como causa para que os russos desistissem de um negócio de armas assinado em
2007 para o fornecimento de mísseis S-300, com os quais Teerã contava como item
crucialmente importante de sua defesa contra ataques de EUA e Israel.
Medvedev
tomou a “decisão final” de desfazer o negócio sob pressão dos EUA, e o Kremlin
desmentiu a percepção ainda dominante entre setores influentes do
establishment em Moscou, de que a Rússia ainda poderia cumprir suas
obrigações contratuais com o Irã.
Konstantin Kosachyov |
O
então presidente da Comissão de Assuntos Internacionais do Parlamento russo,
Konstantin Kosachyov, havia dito que “foram acrescentados [na lista da ONU, de
armas sob sanção] oito itens. Mas nenhum item de defesa, como os mísseis
S-300. A
resolução não terá efeito direto sobre a Rússia”.
Considerado
em retrospectiva, o People’s Daily não errou, quando observou, em
comentário seco, naquele momento, que “abundam as contradições nas intenções de
Moscou relacionadas ao Irã”. De fato, sem a grande mão russa, os EUA jamais
teriam conseguido transferir a ‘questão iraniana’ para a ONU.
Colher
o momento
Hoje,
o balanço do “reset” já é, ele mesmo, um romance. A Organização do
Tratado de Segurança Coletiva ainda é pária, na guerra da OTAN no Afeganistão. A
independência do Kosovo ganhou pompa e circunstância.
A
OTAN lançou suas redes sobre o espaço pós-soviético, continua a avançar rumo às
fronteiras da Rússia e pode já ter chegado ao Cáucaso. Os EUA juraram derrotar o
projeto de uma União Eurasiana, de Moscou. Claro, a Rússia não pôde impedir a
“mudança de regime” na Líbia e, até agora, têm sido ignoradas as objeções russas
contra o programa de mísseis de defesa dos EUA.
Tudo
isso considerado, vê-se que há um pano de fundo muito complexo a enquadrar a
recente iniciativa russa para consertar seus laços com o Irã. A Rússia, ao
render-se ao “reset” imposto pelos EUA, feriu muito terrivelmente o Irã, num
momento em que o Irã precisava contar com todos os aliados, para sobreviver à
incansável pressão que lhes vinha dos EUA. Mas fato é que, mesmo sem Rússia, o
Irã, afinal, sobreviveu.
Ataque
militar contra o Irã já não é sequer pensável, exceto sob custos gigantescos e
riscos ainda mais gigantescos no plano regional; a melhor probabilidade, hoje, é
que o impasse EUA-Irã tenha de ser negociado.
Hassan Rouhani |
Já
se preveem conversações diretas entre EUA e Irã. A Rússia, pois, está “colhendo
o momento”: Putin será o primeiro chefe de Estado a visitar o Irã na presidência
de Rouhani.
Por
outro lado, a compreensão e o apoio dos russos podem ajudar a abrir espaço para
que o Irã encontre melhor posição para negociar com os EUA. Do ponto de vista do
Irã, a firmeza da Rússia – ao impor seu veto como membro do Conselho de
Segurança da ONU – é tendência encorajadora. A firme decisão dos russos de
rejeitar os resultados de um relatório da ONU sobre testes de mísseis no Irã foi
fator decisivo para virtualmente impedir qualquer ampliação do regime de
sanções.
Mas
a Rússia ter voltado atrás no negócio dos mísseis S-300 ainda “está pegando”. O
Irã formalizou ação contra a Rússia, reclamando indenização de US$4 bilhões por
danos, no tribunal internacional de arbitragem em Genebra. O caso do Irã é
forte, mas a verdadeira questão é política – a crise de confiança que se criou
no relacionamento entre os dois países, quando Medvedev assinou o decreto de
20/9/2010 que cancelou unilateralmente aquele negócio e uma série de outros
contratos para fornecimento de armas ao Irã, além de impedir a entrada e o
trânsito, por território russo, de vários cidadãos iranianos conectados com o
programa nuclear iraniano, impedindo, simultaneamente, que cidadãos russos,
indivíduos e entidades legais prestem serviços financeiros relacionados às
atividades nucleares iranianas.
O Ministro de Defesa do Irã,
general Ahmad
Vahid, comentou em termos muito
ácidos, quase instantaneamente, o decreto de Medvedev; disse que o decreto
mostrava que “não se pode confiar neles [nos russos], o que já se sabia”; e que
o embargo era prova de que a Rússia “não consegue agir com independência, nem
quando se trata de assunto menor e questão pequena”.
O jornal Kommersant da
Rússia noticiava essa semana, na 4ª-feira, citando fontes do ministério de
Relações Exteriores em Moscou, que Putin oferecerá a Teerã um sistema
alternativo de defesa aérea, Antey-2500, que Teerã pode considerar com
evolução interessante para o sistema S-300.
O Antey-2500 é um impressionante
sistema de armas, capaz de destruir simultaneamente até 24 aviões inimigos, num
raio de 200
km ; ou interceptar até 16 mísseis balísticos. Pode-se
dizer que o sistema é especificamente adequado para as necessidades
de forças terrestres; e é possível que atenda
perfeitamente às necessidades do Irã.
Kommersant
também noticia que Putin discutirá o programa de expansão para a usina nuclear
de Bushehr. Outros relatos indicam que os físicos nucleares iranianos já estão
retomando seus estudos em instituições russas. E, há uma semana, Rússia e Irã
fizeram um raro exercício de manobras navais conjuntas no Mar Cáspio.
Vista geral mdas instalações nuclears em Bushehr no Irã |
Durante
a recente visita do presidente do Irã Mahmud Ahmedinejad a Moscou, no contexto
da reunião de cúpula dos países produtores de gás, houve discussões sobre a
cooperação no campo da energia.
Pragmatismo
perfeito, sem emendas
Rússia
e Irã contam com exímios diplomatas, mas, mesmo com todo o pragmatismo perfeito,
sem emendas e costuras improvisadas, com que contam hoje, nem assim será fácil a
missão de Putin, que aspira a fazer reviver a confiança nas relações
russo-iranianas.
A
questão é que é indispensável um entendimento estratégico de base, entre as duas
potências regionais, para que as discussões consigam avançar. Por exemplo, o
ímpeto das políticas iranianas na Síria é derivado da política regional do
Oriente Médio – e não se sabe até que ponto Moscou tem interesse em
identificar-se com aquela política.
De
fato, o presidente Hassan Rouhani recém-eleito tem repetido que as relações do
Irã com os estados regionais serão a prioridade de sua política externa.
Podem-se espera algumas grandes mudanças nos contatos entre o Irã e os estados
do Conselho de Cooperação do Golfo, especialmente Arábia Saudita e os Emirados
Árabes Unidos. A abordagem cautelosa que Teerã adotou em relação aos eventos no
Egito reforça o pensamento nessa direção.
Edward Snowden |
E
os modelos estão em transformação, também nas relações EUA-Rússia. Apesar de
manter posição consistente no caso de Edward Snowden, Moscou tem cuidado, também
de não queimar pontes nos contatos com o governo Barack Obama.
A
última coisa que o Irã desejaria é ver-se convertido em moeda de troca na
détente EUA-Rússia. Atribui-se a Rouhani a ideia de que, sob a política
de “olhar para o oriente” [orig. “Look East”] de Ahmadinejad, “o Irã teve
de confiar nas políticas dualistas de países como Rússia, China e Índia no plano
internacional”. Rouhani teria dito que:
Apesar
das políticas de “olhar para o oriente”, a Rússia considerou que lhe seria
interessante fortalecer suas relações com o ocidente. O apoio da Rússia às
resoluções de sanções contra o Irã no Conselho de Segurança e o cancelamento de
compromissos militares foram algumas das medidas anti-Irã, adotadas pelos
russos. Usar da carta “Irã” em seu jogo com o ocidente e, especialmente, com os
EUA, sempre trouxe vantagens à Rússia.
Vitaly Naumkin |
Isso posto, os especialistas
russos são realistas sobre Rouhani e o veem como membro “moderado” da elite
religiosa no Irã – “preparado para fazer concessões ao mundo, homem que sabe que
não há sentido algum em guerrear contra moinhos de vento”, nas palavras de Vitaly Naumkin, Diretor do Instituto de
Estudos Orientais da Academia de Ciências da Rússia.
Há
otimismo cauteloso entre os especialistas em Moscou, para os quais um
“aquecimento” nas relações entre Irã e o ocidente não implica necessariamente
prejuízo para os interesses russos. Estima-se que esse aquecimento será limitado
e incremental, porque “o regime iraniano não poderá renunciar imediatamente a
todos os seus valores básicos que tanto incômodo causam no ocidente” – como
Naumkin observou.
O
processo é facilitado por que Moscou não vê o Irã como fonte de extremismo
religioso e a Rússia não enfrenta qualquer ameaça que lhe venha do extremismo
xiita. Em princípio, portanto, não há obstáculos a uma cooperação
russo-iraniana. O desafio está em construir a complementaridade dos interesses.
A
classe média e os tecnocratas iranianos preferem a tecnologia ocidental – e as
elites russas (diferentes dos “orientalistas” soviéticos) não nutrem qualquer
verdadeira paixão pelo Irã. Simultaneamente, a China é o parceiro comercial e a
fonte de investimento com que os iranianos mais sonham.
Quando
o Irã abre-se como uma última fronteira para exportar gás, pode até ferir
algumas suscetibilidades em Moscou, se as exportações algum dia chegarem ao
mercado europeu, fazendo concorrência ao gás russo. Mas os russos levam vantagem
em dois domínios chaves: cooperação militar e energia nuclear.
Enquanto
isso, a Rússia também está diversificando suas relações com os países da região,
o que implica que uma parceria privilegiada com o Irã não pode acontecer em
detrimento de laços que começam a se tecer com a Turquia ou com Israel. Em
resumo, as duas potências regionais vão-se agrupando e construindo os
fundamentos de um relacionamento pós-moderno, diferente de tudo que elas jamais
conheceram, até agora.
_____________________
[*]
MK Bhadrakumar
foi
diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União
Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão,
Uzbequistão e Turquia. É especialista em
questões do Afeganistão e
Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações,
dentre as quais The
Hindu, Asia
Times Online e Indian Punchline. É o filho mais velho
de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de
Kerala.
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