quarta-feira, 10 de julho de 2013

A revolução “sem liderança”: falácia global e intervenção militar no Egito

10/7/2013, Cihan Tugal, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Entreouvido no Bar Tecôxa, na Vila Vudu: Seguinte: os rico são cheio de achar que ninguém precisa organizar o carnaval. É normal, prá rico, porque rico não precisa, mesmo, organizar AINDA MAIS os carnaval deles, porque movimento de rico já nasce AUTOMATICAMENTE organizado: o dinheiro é o mais potente fator de organizamento universal que jamais se inventou. Quem tem a grana, já tem a organização.
Assim sendo, se os rico sair totalmente na lôka, prá rua, perigas de fazerem uma revolução dos rico, todinha pra eles, com estrondoso sucesso.
Pobre é diferente: pobre tem de organizar a bronca. Se não organizar, dança. É regra que vale para buscar mais felicidade e vale, igualzinho, prôs que dão duro no tráfico de tóchico. .

Cihan Tugal
Mais de 10 milhões de pessoas mobilizaram-se no Egito contra um autocrata desajeitado. E essa mobilização, afinal de contas, levou à tomada, por militares e juízes, do poder, com o apoio de políticos de centro e de clérigos. Chamem como quiserem: golpe de estado, golpe elegante ou poder popular. Nenhum rótulo muda a natureza da intervenção e o dia seguinte: governo militar apoiado pelo povo, dos praticamente os mesmos elementos que estavam no poder no tempo de Mubarak e que haviam construído uma coalizão (instável e incompleta) com a Fraternidade Muçulmana.

As revoltas em anos recentes na Tunísia e no Egito acenderam a imaginação de muitos ativistas em todo o mundo, que viram ali uma “revolução sem liderança”. Contudo, o estranho amálgama de revolução, restauração, golpe, democratização e autoritarismo que persistiu ao longo do processo egípcio sugere lições diferentes, ainda por extrair daquela situação.

De campanha popular à reafirmação do poder das elites

Tamarod, uma campanha popular sem precedentes, coletou milhões de assinaturas e exigiu a derrubada do presidente Mursi. Multidões imensas reuniram-se em todo o Egito no dia 30 de junho, para fazer acontecer o que a campanha exigia. Segundo as estimativas, cerca de 15 milhões de pessoas tomaram as ruas, o que fez daquela a maior rebelião da história do Egito.

Militante do Movimento Tamarod (Rebelde)
Por ironia, a maior parte das pessoas parecia apoiar os militares. Houve até grupos que clamavam abertamente por uma intervenção militar. Entre os manifestantes havia não só civis que queriam a volta de Mubarak, mas também membros das gangues armadas que constituíam a “segurança” do governo Mubarak, que tornaram a vestir os antigos uniformes para ir à praça. De fato, durante o mês de junho, foi-se tornando cada dia mais claro que os militares planejavam usar a rebelião como uma oportunidade para intervir (e alguns políticos, que antes haviam feito duras declarações contra governos militares, puseram-se então a considerar bem-vindos os mesmos militares).

Movimento Tamarod - anti-Mursi
Havia também outras forças dedicadas a capitalizar os protestos e reforçar a própria dominação. Por exemplo, muitos intelectuais do Golfo festejaram as dificuldades da Fraternidade. Queriam um autêntico Erdoğan na presidência do Egito, não um simulacro “de Taiwan”. Escolheram ignorar que suas críticas contra Mursi (concentração de poderes, centralização, autoritarismo etc.) aplicam-se igualmente ao seu líder muçulmano favorito. E as cabeças influentes na região, assim, sugeriam que a única via para sair da crise egípcia seria outro caminho conhecido, não qualquer via revolucionária.

Mohamed Mursi
Houve convocações para uma greve geral durante os protestos de 30 de Junho, além de gritos e gritos que pediam a intervenção militar. De fato, a situação nacional que preparou o cenário do qual emergiu o Movimento Tamarod tem uma dimensão de classe, que não foi claramente articulada como parte de sua plataforma. Além disso, alguns grupos em Tahrir (“6 de Abril”, “Partido Egito Forte” “Socialistas Revolucionários” [orig. April 6, Strong Egypt Party, Revolutionary Socialists) protestavam abertamente contra os militares, não só contra a Fraternidade.

Nada disso contudo, culminou em algum mapa do caminho que delineasse o modo de escapar da coalizão Fraternidade-militares (o que deixou os militares e seus novos aliados como únicos atores capazes de ditar o afamado mapa).

O resultado imediato do levante foi a renúncia de seis ministros. Se algum desejo político revolucionário se tivesse cristalizado no Egito durante os últimos dois anos e meio, teria podido capitalizar aquela abertura e declarar vitória antecipada; quer dizer, teria podido agir antes que os Kornilovs convertessem o levante em vitória deles mesmos.

Quando os militares intervieram, alguns poucos discursos e slogans antigolpe ainda se fizeram ouvir, mas foram afogados pela atmosfera francamente pró-militares em Tahrir. O otimismo infundado, de que forças antimilitaristas permaneceriam na praça até a saída dos militares nada alterou na dinâmica principal. Ninguém mobilizou Tahrir para lutar contra seus principais torturadores. Os milhões que voltaram só pensavam em impedir que os Irmãos tomassem a praça.

Praça Tahrir na noite de 1/7/2013
Em resumo, julho de 2013 testemunhou não só a remoção de um presidente não popular, mas a constituição de regime plenamente ditatorial: centenas de membros da Fraternidade Muçulmana e de islamistas sem qualquer ligação com a Fraternidade foram duramente atacados. Muitos canais de televisão foram fechados. E, o mais importante, os militares indicaram uma figura do Judiciário do antigo regime para substituir o presidente. Os massacres subsequentes foram ingredientes necessários e conhecidos sem os quais nenhum golpe militar se impõe.

Os vícios de interpretação

Muitas das respostas iniciais à intervenção militar passaram sem ver por um ponto crucial: sob a coalizão Fraternidade-militares, o Egito estava andando rapidamente de um regime autoritário com apoio popular para um regime totalitário com apoio popular. Os ativistas da Praça Tahrir tiveram o desejo suficientemente radical de tornar mais lenta essa transformação, mas não encontraram as ferramentas para detê-la completamente, sem a perniciosa “ajuda” dos militares. Liberais focados nos procedimentos, que criticaram a intervenção militar, ignoraram completamente que, sob certas condições, um presidente eleito pode contribuir para construir regime totalitário, o qual fará, de quantas eleições haja, simples plebiscitos. A rua precisou agir para defender a revolução egípcia e talvez, até, para depor o presidente. Os liberais, com o medo visceral que as multidões lhes inspiram, decidiram impedir, não apenas esses movimentos arriscados, mas todas e quaisquer formas de democracia participativa.

Fraternidade Muçulmana
Igualmente perigosos foram os relatos (talvez bem-intencionados) que listaram os abusos do regime da Fraternidade-militares, mas ninguém chegou a discutir as calamidades que um regime contra-Fraternidade poderia produzir. Os que chamaram o golpe militar de uma “segunda revolução” foram rápidos ao denunciar os movimentos autocráticos do governo da Fraternidade. Mas não explicaram em que sentido o regime que substituísse os Irmãos poderia vir a tornar-se algum tipo de democracia. (Um amplo círculo de intelectuais pro-Tamarod concentrou-se nos movimentos ilegítimos do presidente deposto, sem ir além e sem enfrentar a questão de, se e como aqueles movimentos legitimariam os movimentos de um governo militar-judiciário depois de deposto o presidente eleito).

A afirmação, que se viu frequentemente em inglês e em árabe, de que “todos os fatores que fizeram de 25 de Janeiro uma revolução permitem chamar o 30 de Junho de segunda revolução” ignorou um fato claro (dentre muitos outros): 2013 não é 2011. Em outras palavras, passaram-se dois anos, que levaram a possibilidades sociais e políticas diferentes. Durante esses dois anos, a prioridade poderia ter sido organizar o poder popular, criar instituições alternativas e liderança revolucionária, para impedir (ou, no mínimo, para tornar mais lento) o avanço do autoritarismo das autoridades eleitas; sem só se cogitar de derrubá-las e, assim, abrir caminho para os velhos inimigos da revolução.

Entrada da Praça Tahrir na noite de 3/7/2013

Alguns comentadores ainda insistem que, nem os militares, nem a Frente de Salvação Nacional (a coalizão de políticos de centro, contra a Fraternidade Muçulmana) representa as massas em Tahrir, cujas demandas reais são democracia e eleições antecipadas. Esse argumento, que se faz em nome dos milhões aparentemente pró-militares, nada altera numa das regras pétreas da política: os que não se possam representar eles mesmos, sempre serão representados por terceiros.

Os frutos da “revolução” sem ideias revolucionárias

Essa ideia, construída com vistas aos camponeses franceses, nos alertam contra a beatificação das massas não organizadas, um romanticização atualmente muito em moda. Muitas teses anti-representação, vindas dos extremos mais ideologicamente opostos (anarquistas, liberais, autonomistas, pós-modernos etc.) resumem-se todas a um único pressuposto: quando não há metadiscurso, nem liderança, a pluralidade vencerá. Pode até ser verdade no curso prazo. De fato, no caso do Egito, o anonimato dos porta-vozes do Movimento Tamarod até ajudou, no início: os porta-vozes (que não são líderes, como tanto se disse) não podiam ser demonizados como populistas partidarizados. Além disso, porque uniam o povo só em torno de uma identidade negativa (todos anti-Fraternidade), e traziam táticas inovadoras, o Movimento Tamarod mobilizou pessoas de todos os grupos e tipos. Mesmo assim, as massas mobilizadas caíram como presas fáceis nos braços da única opção clara: o antigo regime!

Movimento Tamarod colhe assinaturas para destituir Mohamed Mursi
Ainda que os revolucionários não produzam ideias, demandas e líderes, nem por isso estará garantida que a revolução se fará sem ideologia, demandas e líderes. De fato, a ideologia espontaneísta do Movimento Tamarod, como adiante se verificou, era um nacionalismo militarista; sua demanda, um golpe pós-moderno; seus líderes, os feloul (o “entulho” que sobrou do velho regime). Esse é o perigo que ameaça qualquer revolta que se pretenda sem liderança: deixar-se apropriar pelas principais alternativas institucionais das próprias instituições contra as quais combatem.

É hora de globalizar as lições da onda global de 2011-2013. Comecemos por EUA e Egito. O que se aprende desse caso é que quando movimentos não têm (ou dizem não ter) pensamento, agenda, demandas e líderes, só podem andar numa das seguintes direções: podem dissipar-se (como aconteceu com Occupy), ou viram instrumentos em agendas alheias.

Vivemos tempos interessantes... Diferente das décadas depressivas que se arrastaram de 1980 a 2010, “o povo quer que o sistema caia” – como diz o slogan árabe. E é bem provável que o sistema caia, não só no Egito, mas em outros pontos do mundo (se se considera o quanto as atuais elites e líderes são reacionários e avessos a reformas, onde estiverem, seja na Casa Branca ou nas colônias: não querem, simplesmente, ou são incapazes de imaginar, sequer, cenários do tipo New Deal, os quais, no mínimo, talvez absorvessem as revoltas).

Mas não basta que o sistema “caia”. O que o substituirá? Todos se empenham em fugir dessa pergunta (as metanarrativas, ao que consta, estariam mortas; quer dizer... todas as metanarrativas, exceto o liberalismo!). É hora de acordar e perceber que se não desenvolveram alternativas que se mantenham em pé (e organizações e instituições que façam-acontecer aquelas alternativas), talvez, até, o sistema caia. Mas isso não implicará que teremos, para viver, um mundo melhor.

Revoluções cheias de líderes

Agora, acontecerá o quê? Os militares egípcios são perfeitamente capazes de perpetrar política neoliberal, pró-norte-americana e seu comprovadamente renitente autoritarismo. 

Militares egípcios dominam o país
Muitos setores da esquerda absolutamente nada esperam dos militares – quanto a isso não será preciso convencê-los. Mas, assim como a Fraternidade Muçulmana tão rapidamente afastou dela, em um ano de governo, tantos milhões de pessoas, assim também os “novos” militares (que se “reposicionarão”, como griffe, depois de se terem apropriado de um levante revolucionário) logo mostrarão sua verdadeira face aos que apoiaram o golpe, movido por ingênuas esperanças democráticas. O “novo” regime autoritário com apoio democrático parece já estar começando a pavimentar a estrada pra um terceiro levante revolucionário.

A esquerda (que deve incluir também não socialistas, não anarquistas, não comunistas e as/os feministas e todos os liberais de esquerda e os islamistas de esquerda) tem de usar o tempo para organizar a inevitável insatisfação com o governo dos militares. Tem de construir alternativas sólidas à democracia dos militares e à democracia conservadora-totalitária. Baseada em suas experiências dos três últimos anos, deve construir lideranças, instituições e organismos de poder popular que possam fazer-ser seu projeto alternativo.

Em resumo: dessa segunda vez, a esquerda terá de estar preparada.

*****

O fim da revolução sem lideranças não implica o fim do processo revolucionário no Egito. Mas põe a nu a falácia segundo a qual “o povo”, sozinho, sem agenda, sem plataforma, sem ideias e sem lideranças poderia algum dia ser poder popular.

No Egito, a revolução sem liderança acabou por ser mera substituta do status quo e de revoluções que levaram ao culto do líder. Hoje, talvez, precisemos de revoluções enriquecidas com muitas, não com apenas umas poucas, lideranças.

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