19/7/2013, Pepe Escobar,
Asia Times Online –The Roving
Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Sobre assunto semelhante leia
também:
19/7/2013, redecastorphoto em: “A cosmopólis
persa revisitada”
Pepe Escobar |
Tenho
de confessar que Anna Badkhen, nessa, chegou antes de mim. Às vezes tenho a
sensação de que o mundo é um tapete (ing, The world is a carpet [*]). Ela sentou num e voou e escreveu
livro maravilhosamente evocativo, centrado numa vila no norte do Afeganistão,
tão remota que nem Google Maps sabe
onde fica.
É
livro para os que amam a Rota da Seda; os que amam o Afeganistão; os que amam
tapetes; e todos os anteriores. Esse Olhar Errante [orig. Roving Eye]
encaixa-se em todas essas categorias; não surpreende que o delicado conto de
Badkhen tenha-me lançado numa viagem de tapete voador pelos caminhos da memória,
enquanto ia refazendo meus próprios passos ao longo dos anos, trecho a trecho
pela Rota da Seda, de Balkh a Bukhara, de Herat a Hamadan; e todas aquelas
estradas, é claro, são pavimentadas com tapetes.
O
Curasão histórico – que inclui o norte do Afeganistão – é muito especial.
Em torno de
Balkh , os turcomenos fiam lã há 7 mil anos. As crianças nascem
sobre tapetes. Todos rezam sobre tapetes. Dormem sobre tapetes. Até cobrem, com
tapetes, seus túmulos.
Quando
Alexandre o Grande conquistou o Curasão [**] em 327 aC , enviou um tapete à sua mãe,
Olympia, como presente e recordação da vitória em Balkh.
Balkh
é a legendária capital feudal, hoje em ruínas (culpa dos mongóis), localizada
36
quilômetros a sudoeste de Oqa – vila que nem a Agência
Nacional de Segurança dos EUA consegue espionar, em pleno deserto salgado
afegão, onde Badkhen decidiu acompanhar, durante um ano, a vida na sala do tear
de Thawra, enquanto ela tece um magnífico tapete yusufi.
Mapa da região de Balkh com as referências do autor (clique na imagem para visualizar melhor) |
Sempre
fui doido por Balkh; afinal, durante 1.500 anos Balkh reinou sobre toda a Ásia
Central. Era a “joia de Ariana”, segundo Strabo, historiador grego do século 5.
Seu contemporâneo romano Quintus Curtius Rufus escreveu sobre aquele “solo
rico”, mas também sobre “vasta área do país tomado pelas areias do deserto”. Oqa
é um ponto nessa “região desolada e árida”.
Badkhen,
russa de nascimento, residente nos EUA, conhece o Iraque, a Somália e a
Chechênia, não viveu exatamente na vila durante um ano; morou numa sala alugada
em Mazar-e-Sharif.
Os locais a adotaram – embora sempre meio intrigados. Afinal,
era mulher estrangeira; só tomava notas e desenhava; não fazia trabalho pesado;
tinha de ser protegida; e tinha peitos “pequenos demais”. “Ela não serve para
nós” – trovejou um ancião. O que ela fez foi imortalizar aquele modo evanescente
de vida.
Badkhen
pôde andar mais porque fala farsi – do qual os moradores da vila conseguiam
fazer a conexão para o turcomeno; sorte dela. Houve diálogos encarniçados – como
a discussão a respeito de onde ficam os EUA. O Turcomenistão está a “quatro dias
em lombo de burro”. Mas é impossível chegar, em lombo de burro, aos EUA – e os
locais não sabem o que seja “oceano”. “Nesse caso... como os soldados deles [dos
EUA] chegam ao Afeganistão?” A ideia de um voo de avião de longa duração provoca
surpresa. Então, um velho encontra a solução: “O mundo não é redondo. É
retangular. Numa ponta, está o Paquistão. Na outra, estão o Turcomenistão e o
Uzbequistão. E o Irã, logo ali. O mundo tem quatro cantos”. Com certeza, mais
bem informado que muitos no Pentágono e no Departamento de Estado.
Balkh hoje |
Há
o ópio, é claro – entregue em discos marrom-escuros que pesam “cerca de um
quinto de onça, com um cachimbo pequeno que ali custa um quarto de dólar”. A
apenas 40
quilômetros para nordeste, contrabandistas passam o ópio
pelo rio Amu Darya para o Uzbequistão, e ganham centenas de vezes mais dinheiro.
Comércio que movimenta 4 bilhões de dólares ao ano, o ópio continua a ser a
segunda maior fonte de renda para o Afeganistão da OTAN-em-retirada depois da
ajuda internacional – e constitui mais ou menos a metade do orçamento dos
Talibã. O ópio, por falar dele, chegou ao Afeganistão trazido pelos soldados de
Alexandre.
E
há os Talibã – afinal depois de toda a guerra perpétua, os Talibã ainda tecem o
Curasão. Para não mencionar os B-52s que tecem os céus sem parar – como seres de
outro planeta. Há o lugar onde os Talibã enforcaram um jovem. O local de luta
sangrenta entre os Talibã e outros mujahideen. A cratera na qual explodiu
um Talibã de bicicleta. As lembranças dos Talibã mutilando, matando a tiros e
degolando 6 mil hazaras em Balkh em
1998. Mas em Oqa, nada. É distante, remota demais – e, portanto, não tem valor
algum para os Talibã.
O
mistério da sala do tear
A
melhor frase vem de um mercador de tapetes em Mazar: “Veja isso. As mulheres que
tecem são analfabetas e muito pobres. Mas fazem essa inacreditável beleza”. A
frase sempre me vem à cabeça cada vez que ponho os olhos nos espetaculares
tapetes que se veem na Rota da Seda. Uma vez, no escaldante verão de 2000, no
Afeganistão controlado pelos Talibã, eu passara toda a tarde no superlotado
bazar de tapetes de Herat, à procura de um milagre. E, de repente, aconteceu,
quando eu já estava saindo: um camponês velho queria vender; o tapete, enrolado
sobre o ombro. Bastou pôr os olhos nele. A tecelã, provavelmente, era a mulher
dele, turcomena, como Thawra. Não surpreende que seja um dos tapetes preferidos
do meu gato. Tem cheiro daqueles 7 mil anos de história.
Anna Badkhen |
Badkhen
diz belamente:
Estude
seu tapete. Foi criado pelas mãos de três gerações de mulheres analfabetas. É
curtido com cocô de galinha e manchas amareladas, onde respingaram os restos de
chá que a tecelã jogou no lixo. Os nós amarram cantos nupciais e conversas de
mulheres. O metrônomo de uma lâmina de seda e o zumbido das moscas do meio-dia.
O sopro de uma ventania no telhado. Um suspiro de velha quando ela, afinal,
senta-se no chão para descansar.
Sempre
que acontece de nos apaixonarmos por um tapete, tenta-se imaginar a rota da
viagem que fez. Badkhen detalha também isso. Da sala do tear em Oqa, o tapete de
Thawra teria sido vendido a um mercador em Dawlatabad, cidade maior. O mercador
telefonou para um dos comerciantes da Ala dos Tapetes em Mazar-e-Sharif , ao lado da
Mesquita Azul. Em Mazar, o tapete foi lavado e atentamente examinado – “o diário
de seus meses no tear” – e toma-se a decisão sobre para onde será mandado.
Pode
ter ido de caminhão para o sul, para Cabul, e enviado dali, por avião, para
Dubai, e adiante, para Londres e New York; também de caminhão para leste, pela
Grande Estrada dos Caminhões, cruzar a fronteira do Paquistão até o
bazaar de Peshawar; ou para oeste, para o Turcomenistão, pelo deserto de
Karakum e adiante, até o Grande Bazaar de Istambul. Muito provavelmente
será metido como carga em cima de um ônibus em frangalhos “com algum nome
estranho, em inglês, como Bazarak
Panjshir International”. E por menos de US$25. o pacote – cerca de US$5. por
tapete – esse tapete, com outros, deixará Bactria e ganhará o mundo. E chegará
um dia a eBay, pela ninharia de US$
1000.
Quando
estava acabando de ler o livro, tive uma conversa com um vendedor de tapetes em
Hong Kong sobre como a arte está sumindo rapidamente no Afeganistão. Demora
muito – até um ano – para tecer uma obra prima. O ópio é muito mais lucrativo.
Há a invasão de Tapetes Chineses Baratos. Contou-me que há vendedores afegãos de
tapetes que até já reimportam tapetes de volta ao Afeganistão. Apesar disso,
como Badkhen nos lembra, “à beira de um mar de dunas de areia, à beira de uma
zona de guerra, em sua sala crepuscular do tear, à beira do mundo” sempre haverá
uma última mulher solitária mantendo a chama de 7 mil anos de
beleza.
Notas
de rodapé
[*] BADKHEN, Anna. The World is a Carpet, Riverhead Books, 2013,
271 p., $26.95.
[**] O dicionário
Onomástico Etimológico de J.P. Machado
registra apenas as formas Coraçone e Coração para a esta província iraniana em língua
portuguesa. Alguns jornais brasileiros transliteram o original como Corasão
ou Curasão (forma adotada pela
redecastorphoto). O Curasão antigo envolve também parte do norte/noroeste do
Afeganistão e sul do Turcomenistão, mas a parte catalogada na Wikipédia é
apenas a parte iraniana. Neste artigo Pepe Escobar se refere ao Curasão antigo.
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