29/1/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O discurso
do presidente Barack Obama sobre o Estado da União [orig. State of the Union
(SOTU)] foi espetáculo surrealista. Muito diferente da avalanche de “notícias”
distribuídas para efeitos de Relações Públicas, faz tempo que o governo dos EUA
não faz exatamente qualquer prodígio de serviços com vistas ao bem público.
Assim, quando se põe a fazer propaganda dele mesmo diante de um Congresso dos
EUA disfuncional, desprezado por vasta maioria dos norte-americanos – também, e
cada vez mais, diante dos 76% que vivem da mão para a boca – o que sobra é uma
velha, vasta produção hollywoodiana.
Gore Vidal 1925 - 2012 |
E, Obama, é
claro, é ator sofrível, capaz de fazer discurso sofrível – com certeza melhor
que Ronnie Reagan, que Gore Vidal costumava
chamar de “presidente-em-cena” [orig. the acting president].
O tema
chave do Estado da União esse ano [SOTU 2014] foi a horrenda
desigualdade de renda nos EUA. Pode-se dizer que Obama acrescentou um apêndice
ao discurso da semana passada no Fórum Econômico Mundial em Davos – aquela Las
Vegas de neve para os 0,00001% – onde os Patrões do Universo finalmente
“descobriram” a desigualdade. E tanta desigualdade, de fato, que 2014 foi
instantaneamente rotulado pelos Patrões do Universo – e pelo primeiro-ministro
Shinzo Abe do Japão – de “novo 1914”,
tudo isso imediatamente tuitado
furiosamente para todas as salas de diretoria da elite da modernidade líquida.
Quando
Obama entrou no ritmo, foi logo proclamando que o seu Obamacare venceu; que recorreria ao governo por ordens executivas
para que o negócio acontecesse; e que uma salada mista de lugares-comuns,
platitudes e vagas propostas/generalidades comprovaram o sucesso iminente de
sua agenda de melhorar “oportunidades” como única resposta para combater a
desigualdade.Oh yes. E que o Sonho Americano não estava em coma.
Nem uma
palavra, é claro, sobre o “gentil”, progressivo desmantelamento do que resta da
democracia nos EUA, pelo complexo Orwelliano/Panopticon, mediante o qual o
governo dos 0,00001% da elite é dolorosamente possível, num ambiente de Total
Acesso Informacional (TAI) [orig. Total Information Awareness (TIA)].
Com o governo dos EUA já controlando totalmente a Internet, aquele sonho de
era-uma-vez – a revolução será televisionada – não acontecerá nem na rede.
Neoliberalismo
ou morte
Howard Zinn 1922 - 2010 |
Na ausência
do falecido, grande Howard Zinn, os
norte-americanos agora têm de se virar com Robert Reich,
clintonista histórico. Reich pode até acertar em duas de suas razões para o
mal-estar americano.
Com a
classe trabalhadora norte-americana paralisada e com medo de perder os últimos
empregos (os sindicatos foram virtualmente destruídos), e com os estudantes
naufragados em dívidas monumentais (com o salário médio inicial para
recém-formados caindo sem parar), dois fatores chaves de protesto foram
neutralizados.
Mas Reich
erra na terceira razão – que mais de 80% da opinião pública nos EUA confia tão
pouco no governo, que já todos desistiram de qualquer tentativa de reforma.
O ponto
chave seria examinar como o capitalismo turbo-financeiro se movimentou desde
meados dos anos 1970s. O ponto não é que essa gangue de Republicanos medievais,
e altos executivos corporativos (e seus parceiros políticos escolhidos a dedo),
plus Wall Street estejam no
governo. O ponto é examinar como a especulação financeira mais demente, plus
a inflação mais demente de seguros financeiros, passaram a ser o traço que define
os EUA e o sistema global.
Robert Reich |
Para tanto,
seria preciso fazer crítica linha-duríssima, extremista, do capitalismo
avançado – que não é nem “avançado” nem é, de fato, capitalismo – o que é tabu
total em toda a imprensa-empresa nos EUA. E a coisa toda começou já antes do
profeta Ronnie Reagan, continuou com Bubba Clinton e assim chegou, sem
interrupção, ao continuum Dábliu [Bush]/Obama.
A imagem
mais graficamente clara é um sistema no qual 85 pessoas – cabem, todos, num
ônibus londrino de dois andares – são donas de riqueza igual à que se divide
entre a metade mais miserável de toda a humanidade. Como é possível isso? Basta
uma rápida passada de olhos pelo sensacional Neoliberalismo - História e
Implicações, [1] de David Harvey, e já se sabe responder muitas perguntas –
todas relacionadas a truques como “teoria do gotejamento” [orig. trickle-down
economics], cortar impostos para empresas e para os mais ricos, destruição
dos sindicatos de trabalhadores, baixar salários reais, exportar postos de
trabalho, desempoderar praticamente todos que não sejam parte dos 0,00001% e
oferecer entrada franca para todos, no banking-cassino-financeiro dos 0,00001%.
Resultado final: um vórtice-sumidouro de concentração de riqueza – que
absolutamente nada tem a ver com democracia numa república.
David Harvey |
O velho Tio
Marx daria às coisas o nome que têm: guerra de classes. E os 0,00001% venceram,
totalmente, completamente, rápido e solto.
É fácil
esquecer que Dábliu herdou considerável superávit no orçamento. Então, se pôs a
cortar impostos para os ricos; presidiu duas guerras horrorosamente caras, uma
porque “tinha de bombardear alguém”; a outra, uma guerra que ele mesmo
escolheu; e, na sequência, foi o MC [Mestre de Cerimônias] da maior quebradeira
total de Wall Street desde a Grande
Depressão.
E, sim,
aqui se trata, sempre, do continuum Bush-Obama. Na era da “recuperação”
de Obama, o valor do patrimônio subiu 28%, para os 7% mais ricos; para o
restante dos norte-americanos, caiu 4%.
Pelo menos
80% dos eleitores norte-americanos não querem que os programas sociais sejam
cortados, para “equilibrar” o orçamento; querem mais impostos sobre os mais
ricos e sobre as empresas. Obama cortou na seguridade social.
E há também
a destruição das cidades norte-americanas. O relatório “A
Bancarrota de Detroit” mostra
como Detroit foi detonada, ao mesmo tempo em que o estado de Michigan consumia
uma fortuna em “incentivos aos negócios”.
Protestos em Detroit (3/12/2013) |
E, por cima
de tudo isso, há a síndrome de Jamie Dimon, presidente executivo do JP Morgan -
Chase, também conhecido como o “um dos banqueiros mais espertos que temos” de
Obama. Mesmo que o banco No. 1 dos EUA tenha perdido bilhões em hipotecas garantidas
por apólices tóxicas de seguros; que tenha manipulado os preços da energia; e
que tenha, até, fraudado usuários de cartões de crédito, o principal executivo
do tal banco leva um gordíssimo bônus, pago quando as ações do banco subiram
21%, em 2013.
Jamie Dimon (JP Morgan - Chase) |
Que Obama
tenha jogado para enganar a plateia – pouco ou muito – no discurso sobre o
Estado da União, nem interessa. Na sequência dos absurdos flagrantes sobre o
Irã, a Síria e Israel-Palestina, e nem uma palavra sobre Rússia e China, nem
chegou a surpreender a sequência-suspense-de-novelão final sobre o ranger do exército que quase foi morto
por um dispositivo explosivo improvisado no Afeganistão. Foi a metáfora viva de
Obama, do “Yes We Can”, o remix 2014.
Curiosamente,
pouco antes do discurso SOTU, o governo dos EUA e o Pentágono vazaram
para o New York Times que “pequeno número” (dizia Obama) de soldados
norte-americanos permanecem, sim, no Afeganistão, que a CIA continua a explodir
sem parar as áreas tribais do Paquistão, e continuará a usar bases afegãs para
espionar o Paquistão.
Quer dizer:
trata-se sempre e sempre, como sempre, das guerras sujas da CIA. Obviamente
nenhum dos componentes do “Af-Pak” querem esse estado de coisas e, assim,
parece que os heróis de Obama terão de escafeder-se para fora de lá, gostem ou
não gostem, e porque sim. Melhor p’ra eles, porque poderão trocar dispositivos
explosivos improvisados letais, por mais uma dose da terra da “oportunidade”. É
mesmo? É. O presidente dos EUA diz que é.
Nota dos
tradutores
[1] HARVEY,
David. “A Brief History of Neoliberalism”, Oxford University Press, 2005. Pode ser lido (de grátis!) em espanhol
em: “Breve
Historia Del Neoliberalismo de David Harvey”
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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista,
brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em
inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é
também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/
articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison
e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o
português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
- Globalistan: How the
Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
- Red Zone Blues: A Snapshot of
Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
- Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
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