22/1/2014, [*] MK Bhadrakumar, Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Genebra-2 está sendo realizada em Montreux a partir de hoje, 22/1/2014 |
Raras vezes
alguma conferência internacional de paz foi realizada em circunstâncias mais
bizarras. Mas a notícia boa é que a ONU e os EUA podem já ter “perdido” tudo
que “ganharam” nas 48 horas que antecederam a conferência
Genebra-2 marcada para começar hoje, 4ª-feira
(22/1/2014).
Tudo
começou com o convite-surpresa que, no fim de semana, o Secretário-Geral da ONU,
Ban Ki-Moon, resolveu estender ao Irã, para que participasse do encontro,
desconsiderando a objeção levantada pelos EUA, que argumentavam que Teerã não
manifestara apoio declarado ao Comunicado de junho-2012 sobre a Síria, documento
base para discussão na Conferência “2”.
Início da Conferência de Paz para a Síria Genebra-2 (22/1/2014). O Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, ocupa o centro da mesa |
De fato,
Ban exerceu prerrogativa que é dele, como “convocador” da conferência Genebra-2
e disse que em várias reuniões e conversas por telefone nos últimos dias e
semanas com altos funcionários iranianos recebera deles garantias de que Teerã
“compreendeu e apoia a base e o objetivo” do evento a iniciar-se na 4ª-feira
(22/1/2014), “incluindo o Comunicado de Genebra”.
Aparentemente,
Ban encenou um golpe diplomático, porque a simples possibilidade de o Irã
participar já transformou o objetivo da conferência de 4ª-feira. À primeira
vista, o convite apareceu como pluma nova no chapéu de Ban, para afirmar alguma
sua robusta independência na tomada de decisões, apesar da declarada e aberta
pressão que os EUA faziam sobre ele para que se mantivesse longe do Irã. Mas a
verdade é que é inconcebível, impensável, que diplomatas norte-americanos na
ONU não tivessem tido qualquer notícia de que Ban estava mantendo consultas com
funcionários do Irã.
Hossein Amir-Abdollahian |
Seja como
for, no domingo Ban estava no centro do cenário planetário; na 2ª-feira (20/1/2014)
“caiu”, aparentemente sob descomunal pressão dos norte-americanos; e foi,
parece, forçado a “desconvidar” o Irã; perdeu as plumas, beijou a lona,
mastigou e engoliu o pão que o diabo amassou. Tentou pôr a culpa nos iranianos;
disse que a resposta do Irã ao convite absolutamente não foi “consistente com o
compromisso [que teriam] assumido antes”. Presumivelmente, Ban chegou a esperar
que Teerã aceitaria a pré-condição que os EUA inventaram. Mas, não. O Irã não
cedeu. Apesar de ter aceito o convite de Ban, e de ter dado sinais de que
participaria da Conferência, já logo no dia seguinte o Irã anunciou que não,
que não participaria, absolutamente não, “dada a insistência dos EUA em impor
uma pré-condição”. Como o Vice-Ministro de Relações Exteriores do Irã, Hossein
Amir-Abdollahian, explicou na 3ª-feira (21//1/2014), Teerã estaria sempre
disposta a participar, mas sem pré-condições. Resposta perfeita, vintage,
do Irã.
Enquanto
isso, Washington, que “perdeu” quando Ban convidou o Irã, logo no dia seguinte
já “ganhou”, quando o Secretário-Geral se desdisse e voltou atrás, encurralado
ante as ordens de Washington de que assim fizesse, a menos que Teerã declarasse
“integralmente e publicamente” pleno apoio ao mapa do caminho para a Síria
traçado em 2012.
A mística
da diplomacia é que, vez ou outra, o que foi ganho não passa de vitória de
Pirro. A vitória dos EUA foi pírrica? O Ministro de Relações Exteriores da
Rússia, Sergey Lavrov, tinha todos os
holofotes a seu favor quando manifestou forte indignação contra o que
acontecera. Lavrov disse, na 2ª-feira (2º/1/2014), que “quarenta países foram
convidados para as conversações de Genebra-2. Dentre outros, foram convidados
Austrália, México, República da Coreia, África do Sul, Japão, Brasil, Índia e
Indonésia e muitos outros”. [2] E se o
Irã é excluído da lista, a conferência passa a parecer cerimônia profana. (Vídeo
a seguir dublado em inglês):
O Irã, é claro, como a Arábia
Saudita e os estados do Golfo, a Turquia, o Egito e
o Iraque, é um dos países interessados em resolver a situação sem mais danos à
estabilidade dessa importante região do mundo.
Claramente,
a participação do Irã teria transformado fenomenalmente o ABC da conferência
Genebra-2. Mas naquele momento Washington mantinha um olho na Coalizão Nacional
Síria, ao exigir que Ban retirasse o convite, porque as gangues reunidas na
oposição síria ameaçavam abandonar a conferência de Genebra-2, usando como
álibi a participação do Irã. Washington fizera esforços hercúleos, em semanas
recentes, para puxar a CNS para bordo. Mas o governo Obama sem dúvida foi
também sensível às dores da Arábia Saudita quanto à participação do Irã em
Genebra-2.
Ali Akbar Salehi |
O governo
Obama tem cuidado para manter a questão do engajamento EUA-Irã na questão
nuclear, separada das discussões sobre a lista de convidados para Genebra-2.
Obama até saudou, na 2ª-feira (20/1/2014), a suspensão, pelos iranianos, no
final de semana, do enriquecimento de urânio de alto nível; disse que oferecia
“oportunidades sem precedentes”. Poucas horas depois de os cientistas iranianos
cortarem as linhas de abastecimento das centrífugas na usina de Natanz e no
sítio subterrâneo em Fordow próximo de Teerã, na presença de inspetores da
AIEA, e a União Europeia já anunciava movimentos para levantar sanções contra o
Irã. Em resumo, como disse o presidente da organização de energia atômica do
Irã, Ali Akbar Salehi, “o iceberg das
sanções contra o Irã está degelando”.
Com o
avanço do verão e o aumento do degelo do iceberg
das sanções, Teerã só terá a ganhar. Não surpreende que Teerã não tenha
convertido a estranha atitude de Ban e o “desconvite”, em grande questão. Mais
uma vez, Teerã certamente avalia que, gostem os EUA ou não, o Irã tem papel
crucial a desempenhar em qualquer paz para a Síria; e que os
EUA terão de engolir o Irã, gostem ou não gostem.
E
Washington? Dá-se conta de que o Irã é ator chave na cancha síria? É claro que
sim. Mesmo assim, procurará tratar o processo de Genebra-2 diretamente com a
Rússia, como seu interlocutor principal nesse momento, em vez de ter de encarar
“Rússia + Irã”. Dito de outro modo, os EUA tentam evitar qualquer correlação
que se crie entre o processo de Genebra-2 e o engajamento do governo Obama com
o Irã como tal (onde tampouco querem ver envolvido qualquer terceiro ator.) Os
dois processos devem andar por trilhos diferentes. Equivale a dizer que o
engajamento com Rússia e Irã deve ser seletivo, deve ser como o governo Obama
preferir, para que a diplomacia de Washington funcione como se espera que
funcione. Verdade é que o sempre crescente entendimento estratégico entre
russos e iranianos impacta todo o cálculo estratégico dos EUA. Mas mesmo assim,
há aí mais um problema que nasce das dificuldades de os EUA terem de lidar com
várias questões ao mesmo tempo, com o Irã.
E se Teerã
esperava que sua atitude “mais cooperativa” e “mais promissora” na questão
nuclear até agora geraria benefícios para o Irã em outras questões (como na
questão síria, no Afeganistão,
no Iraque,
etc.) – ou vice versa – nada disso está acontecendo, pelo menos ainda não.
Um “alto
funcionário dos EUA”, não identificado, foi vastamente citado e repetido na
imprensa-empresa norte-americana na 2ª-feira (20/1/2014), sempre insistindo que
as negociações sobre a Síria e sobre o programa nuclear do Irã são questões
separadas, e que Washington ainda tem preocupações quanto ao apoio do Irã ao
terrorismo e seus “esforços para desestabilizar o Líbano, o Bahrain e outros
países na região”.
Assim
sendo, como está o “placar”, no momento em que, afinal, começa Genebra-2? Paradoxalmente,
agora que os EUA “venceram” no primeiro movimento para manter afastado o Irã,
crescem as pressões para que os EUA “mostrem resultados” no processo de paz que
começa a tentar decolar. Genebra-2 absolutamente não pode fracassar, assim, sem
mais nem menos.
O fracasso
tampouco fará aumentar o prestígio da ONU. É verdade que o CNS conseguiu manter
o Irã ao largo, mas não pode acalentar esperanças de que ditará as regras
sempre – especialmente se estiver sentado frente a frente, com a delegação
síria do outro lado da mesa.
Considerado
o público norte-americano e a opinião pública doméstica nos EUA, Obama tampouco
pode fracassar completamente na conferência de hoje (22/1/2014), sobretudo
porque sua política para a Síria enfrenta fogo cerrado. É indispensável salvar
alguma coisa.
Tudo parece
sugerir que a Rússia “venceu” a batalha em que está empenhada: manter vivo um –
algum – processo de paz para a Síria.
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira
do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do
Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É
especialista em questões do Irã, Afeganistão e Paquistão e
escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais The Hindu,Asia Times Online
e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK
Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de
Kerala.
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