17/1/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Pier Paolo Pasolini |
BOLONHA – Nas primeiras horas da manhã de
2/11/1975, em Idroscalo, numa favela imunda e miserável em Ostia, nos arredores
de Roma, foi encontrado o corpo de Pier Paolo Pasolini, 53 anos, uma usina
intelectual e um dos maiores cineastas dos anos 1960s e 1970s; fora severamente
espancado e duas vezes esmagado pelas rodas do seu próprio Alfa Romeo.
Difícil conceber mais dolorosa,
aterradora, mistura moderna de tragédia grega e iconografia renascentista; em
cenário que parecia copiado de filme de Pasolini, o autor foi imolado como seu
principal personagem em Mamma Roma (1962) jazendo na prisão à maneira do
Cristo Morto, também conhecido como “A
lamentação do corpo de Cristo”, de Andrea Mantegna.
A lamentação do corpo de Cristo |
Provavelmente, um encontro gay que
deu terrivelmente errado; um jovem marginal de 17 anos foi acusado pelo
assassinato, mas ele também tinha ligações com neofascistas italianos. A
verdadeira história jamais foi divulgada. O que emergiu é que “a nova Itália” –
os pós-efeitos de uma nova revolução capitalista – matou Pasolini.
Pasolini só poderia ter saído à caça de
estrelas, ao sair graduado em literatura da Universidade de Bolonha – a mais
antiga do mundo –, em 1943. Hoje, um Pasolini é absolutamente impensável. Seria
alguma espécie de OIVNI (Objeto Intelectual Voador Não Identificado). O
intelectual total – poeta, dramaturgo, pintor, músico, autor de ficção, teórico
da literatura, cineasta e analista político.
Para italianos cultos, foi essencialmente
poeta (o que, há algumas décadas, era imenso elogio...) Em sua obra-prima Ceneri
di Gramsci (1952) [Cinzas de Gramsci], [1] Pasolini traça notável paralelo, em
termos de ânsia por um ideal heroico, entre Gramsci e Shelley – que estão
enterrados no mesmo cemitério em Roma. Justiça poética. [2]
Então saltou sem dificuldade, da palavra
à imagem. O jovem Martin Scorsese ficou embasbacado quando assistiu pela
primeira vez a Accattone (1961); para nem falar do jovem Bernardo
Bertolucci, que aprendia ao vivo, como cameraman de Pasolini. No mínimo,
não haveria Scorsese, Bertolucci, ou, para não parar por aí, Fassbinder, Abel
Ferrara e incontáveis outros, sem Pasolini.
E especialmente hoje, quando flanamos 24
horas/dia, sete dias por semana, em nossa medíocre Feira da Vaidade, é
impossível não simpatizar com o método de Pasolini – que muda de direção, de
crítica ácida (sulfúrica) da burguesia (como em Teorema e Porcile [Pocilga]),
para buscar refúgio nos clássicos (sua fase das tragédias gregas) e nos
medievais, fascinantes, da “Trilogia da Vida” – adaptações do Decameron (1971),
Contos de Canterbury (1972) e As Mil e Uma Noites (1974).
Teorema |
Também não é surpresa que Pasolini decida
sair da Itália decadente, corrupta, para filmar no Terceiro Mundo – na
Cappadocia, Turquia, para Medea; e no Iêmem para As Mil e Uma Noites.
Bertolucci adiante faria o mesmo, filmando no Marrocos (O céu que nos
protege), no Nepal (seu épico Buda) e na China (O último
imperador), seu formidável triunfo holliwoodiano.
E então veio o inclassificável Salo,
ou Os 120 Dias de Sodoma, último filme de Pasolini, torturado,
devastador, distribuído apenas uns poucos meses depois do assassinato, proibido
durante anos em vários países e impiedoso, ao extrapolar para muito além o
flerte da Itália (e da cultura ocidental) com o fascismo.
Entre 1973 e 1975, Pasolini escreveu
várias colunas para o Corriere della Sera, jornal de Milão,
publicados como Scritti Corsari em 1975 e depois como Lettere
luterane, postumamente, em 1976. [3]
O tema que engloba tudo é a “mutação antropológica” da Itália moderna, que
também pode ser lido como um microcosmo para todo o ocidente.
Sou de uma geração em que muitos eram
enlouquecidamente apaixonados por Pasolini na tela e no papel. À época, era claro
que aquelas colunas eram os RPGs [Role Playing Games] de um
intelectual extremamente arguto – mas supremamente solitário. Relidas hoje,
soam nada menos que proféticas.
Porcile (Pocilga) |
Examinando a dicotomia entre rapazes
burgueses e rapazes proletários – como Itália do Norte vs Itália do Sul
– Pasolini descobre nada menos que uma nova categoria, “difícil de descrever
(porque ninguém descreveu antes)” e para a qual ele não tinha “precedentes
linguísticos e terminológicos”. E há os “destinados à morte”. Um desses, pode
ter vindo a ser seu assassino em Idroscalo.
Como Pasolini argumentou, os novos
espécimes eram aqueles que, até meados dos 1950s teriam sido vítimas da
mortalidade infantil. A ciência interveio e salvou-os da morte física. São
portanto sobreviventes “e na vida deles há algo de contra natura”.
Portanto, Pasolini argumentava, filhos nascidos hoje não não, a priori,
“abençoados”; os que nascem “em excesso” são definitivamente “não abençoados”.
Em resumo, era Pasolini presa de um
sentimento de não ser realmente bem-vindo, e, mesmo, até, de ser culpado; a
nova geração era “infinitamente mais frágil, embrutecida, triste, pálida e
doentia que todas as gerações precedentes”. São depressivos ou agressivos. E
“nada pode cancelar a sombra que uma anormalidade desconhecida projeta sobre a
vida deles”. Hoje, essa interpretação pode facilmente explicar o jovem
islamista, alienado, nascido em fronteiras que ninguém vê, e que cruza aquelas
fronteiras para unir-se a qualquer jihad, em desespero.
Salo ou 120 dias de Sodoma |
Ao mesmo tempo, segundo Pasolini, esse
sentimento inconsciente de ser fundamentalmente descartável alimenta “os
destinados à morte” em sua ânsia por normalidade, pela “total adesão, sem
reservas, à horda, o desejo de não parecer distinto ou diverso.” E eles
“mostram como viver agressivamente o conformismo”. Ensinam “a renunciar”, uma
“tendência para a infelicidade”, a “retórica da feiúra” e a brutalidade. E os feios
e brutos tornam-se expoentes, campeões da moda e do comportamento (como se
Pasolini já antevisse os punks ingleses, em 1976).
O autodescrito “velho burguês
racionalista, idealista” foi muito além dessas reflexões sobre a geração “não
há futuro para vocês”. Pasolini anteviu, dentre outros desastres, a destruição
urbana da Itália, a responsabilidade pela “degradação antropológica” dos
italianos, a condição terrível dos hospitais, escolas e da infraestrutura
pública, a selvagem explosão da cultura de massa e da imprensa de massa, a
“estupidez delinquente” da televisão, a “carga imoral” dos que governaram a
Itália de 1945 a
1975 – isto é, a Democracia Cristã apoiada pelos EUA.
Guy Debord |
Ele flagrou com destreza o “cinismo da
nova revolução capitalista – a primeira real revolução de direita”. Essa
revolução, disse ele, “de um ponto de vista antropológico – em termos da
fundação de uma nova “cultura” – implica homens sem vínculo com o passado,
vivendo em “imponderabilidade”. Assim, a única expectativa existencial possível
é consumir e satisfazer seus impulsos hedonistas”. Aqui, é a crítica feroz de
Guy Debord à “sociedade do espetáculo” expandida para o horizonte cultural de
“o sonho acabou” dos anos 1970s.
No momento em que foi escrito, tudo isso
era pensamento radiativo. Pasolini não carregava prisioneiros; se o consumo
arrancara a Itália da miséria, “para gratificá-la com algum bem-estar” e alguma
cultura não popular, o resultado humilhante foi alcançado “com mimar a pequena
burguesia, com escola obrigatória e com televisão delinquente”. Pasolini
costumava zombar da burguesia italiana, “a mais ignorante de toda a Europa”
(nisso, se enganou: a burguesia espanhola é imbatível).
Assim brotou um novo modo de produção de
cultura – construída sobre “o genocídio das culturas precedentes” – e uma nova
espécie de burguês. Ah, se Pasolini tivesse sobrevivido para vê-lo em cena em
uniforme completo, como Homo Berlusconis!
A Grande Beleza já era!
Agora, o coração consumista das trevas –
“o horror, o horror” – profetizado e detalhado por Pasolini já em meados dos
anos 1970s acaba de aparecer exposto em toda sua miserável purpurina por um
cineasta italiano de Nápoles, Paolo Sorrentino, nascido quando Pasolini, para
nem falar de Fellini, já estavam no auge da potência. La Grande Bellezza
(A Grande Beleza) – que acaba de vencer o Golden Globes como Melhor Filme Estrangeiro e provavelmente também
ficará com um Óscar – seria inconcebível sem La Dolce Vita de Fellini (do
qual é coda não assumida) e a crítica de Pasolini à “nova Itália”.
Pasolini e Fellini, aliás, ambos são
ramos brotados numa fabulosa tradição intelectual na Emilia-Romagna (Pasolini,
de Bolonha; Fellini, de Rimini; Bertolucci, de Parma). No início dos anos
1960s, Fellini dizia ao amigo e ainda aprendiz Pasolini, que ele, Fellini, não
era equipado para o criticismo. Fellini era sempre emoção pura; Pasolini – e
Bertolucci – eram emoção modulada pelo intelecto.
Cena de "A Grande Beleza" de Paolo Sorrentino |
O surpreendente filme de Sorrentino –
corrida vertiginosa sobre os galhos da Itália de Berlusconi – é La Dolce Vita
que acabou horrivelmente azeda. Impossível não sentir empatia com ‘'Marcello'’
(Mastroianni), chegando aos 65 anos (representado pelo agradável Toni
Servillo), padecendo de bloqueio de escritor, ao mesmo tempo em que surfa a
própria reputação de rei da vida noturna em Roma. Como o grande Ezra Pound –
que amava profundamente a Itália – também profetizou – uma torpeza barata de
liquidação acabou por durar até nossos dias, convertida em insipidismo berlusconiano
no qual – segundo um personagem – todos “esqueceram tudo sobre cultura e arte”
e o ex-ápice da civilização terminou conhecido só por “moda e pizza".
Pasolini nos falava exatamente sobre isso
há quase 40 anos – antes que uma fantasmagórica, macabra manifestação dessa
mesma mediocridade o tivesse silenciado. Sua morte demonstrou afinal – avant
la lettre – o seu teorema; sempre esteve, desgraçadamente, mortalmente certo.
Notas dos tradutores
[1] PASOLINI , Pier Paolo. Le
ceneri di Gramsci. Milano: Garzanti, 1957. 249 p.. Há traduções de alguns
poemas em Le
ceneri di Gramsci, Poemas I e Le
ceneri di Gramsci IV - Porto: Assírio & Alvin, 2005. Trad.
Maria Jorge Vilar de Figueiredo no blog Canal da Poesia.
[2] De fato,
estiveram bem separados nos cemitérios, por muito tempo. Gramsci foi enterrado,
primeiro, no Cemitério Campo Verano, antes de suas cinzas serem trazidas para o
Cemitério de Não Católicos de Roma, onde estão hoje, como Shelley e Keats. Foi
a cunhada de Gramsci (Tatiana Schucht, cidadã russa e não católica, e quem
cuidou de Gramcsi durante os anos de cárcere em Roma) quem fez a transferência
das cinzas para onde estão hoje. Caso talvez mais de amor, que de justiça,
poética ou qualquer outra. A história está contada em detalhes em: “Gramsci’s
grave and Pasolini”, onde também aprendemos que no túmulo de Gramsci há
a inscrição “Cinera Antonii Gramscii”, “cinzas de Antonio Gramsci”, que
Pasolini usaria para título de seu poema. A internet é totalmente O MÁXIMO.
[3] PASOLINI, Pier Paolo, “Escritos Corsários e Cartas Luteranas”,
Porto: Assírio & Alvim,2006, 174 pp.
___________________
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista,
brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em
inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das
redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português
pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
- Globalistan:
How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
- Red
Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
- Obama
Does Globalistan, Nimble Books,
2009.
cada día aprendo algo más de pasolini.
ResponderExcluirgracias pepe x existir y desasnarnos.