17/1/2014, [*] Conflicts
Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Milhões se enfrentam nas ruas das cidades egípcias. Imensa fratura social-religiosa |
Egito: Mesmo
antes do golpe militar que derrubou o presidente Mursi, já era claro que a
sociedade egípcia estava em processo de fratura – e fratura profunda, de modo
talvez irrecuperável. Uma reunião (da qual este Conflicts Fórum participou)
dos principais grupos políticos do Egito (islamistas e liberais/seculares)
naquele momento foi simplesmente incapaz sequer de comunicarem-se uns com os
outros: muralhas de pesada artilharia verbal lançada de um lado para outro na
mesma sala, de um setor da sociedade egípcia para outro, cada um desejando
acertar golpe mais arrasador contra o outro. Ânimos exaltadíssimos, emoções à
solda; estado psicológico cristalizado, pétreo, pouco do que uns diziam aos
outros faziam qualquer sentido, e nem um grão de sabedoria.
O ânimo
para qualquer tipo de concessão, completamente ausente, nenhuma possibilidade
de negociação democrática naquele torvelinho de paixões. Naquele momento, eram
os liberais/seculares e os cristãos que manifestavam o terrível medo
existencial, temendo pela própria sobrevivência: estavam a ponto de serem
politicamente e culturalmente detonados pelos islamistas, seu modo de vida
posto na ilegalidade, a relevância política deles varrida para o nada, como
sentiam, acreditavam e temiam.
É preocupante o número de assassinatos de cristãos no Egito |
Os cristãos
mostravam-se particularmente amargos. Reclamavam que o ocidente cristão
cometera um erro histórico: obcecadamente focado na segurança de Israel, o
ocidente aliara-se a grupos sunitas radicais, para enfraquecer o que via como
ameaças a Israel (o Hezbollah e o Irã); mas os cristãos do Oriente Médio é que
teriam de pagar a parte pior do preço desse estímulo tresloucado ao Islã
sunita. Exibiram números da migração de cristãos para fora do Egito. E o que
ardia como sal esfregado nas feridas era que cristãos e liberais/seculares não
viam qualquer possibilidade de que surgisse qualquer tipo de forças que os
resgatassem e os salvassem do sítio a eles imposto pelos islamistas.
Pela
primeira vez em séculos, nem França, nem Grã-Bretanha, nem EUA apareceriam para
salvá-los. Seriam deixados morrer lá – ou que emigrassem! – ante a avançada dos
islâmicos.
Imagine-se,
pois, como se sentiram, quando, no último segundo, depois de tudo parecer
completamente perdido, surgiu um deus ex machina: os estados do Golfo
armaram um golpe de estado para “limpar e destruir” (no jargão militar) a
Fraternidade Muçulmana e varrê-la do Egito. Viraram a mesa! Militantes
seculares/liberais flanavam metro e meio acima do chão, em êxtase. O general
Sisi foi saudado (acriticamente) como novo Saladino/ Nasser/ Sadat.
Abdul Fattah al-Sisi |
Imediatamente
depois do golpe, o general Sisi fez todos os ruídos politicamente corretos:
falou de “transição”, “democracia civil” e “inclusão social”. Falar é uma
coisa, fazer é que são elas! E Sisi fez diferente do que falava.
Em vez de “transição para a
democracia”, parece que agora “o
povo” vai exigir que Sisi se torne presidente por aclamação popular, não por
alguma “democracia civil”. Está a poucos passos de conseguir aprovar duas novas
leis, a saber: uma lei que torna ilegais os protestos de rua; e outra que amplia
o alcance da lei antiterrorismo.
Sisi
conseguirá matar dois coelhos com uma cajadada: seu objetivo principal é
eliminar a Fraternidade Muçulmana e criminalizar seus muitos apoiadores; mas,
além disso, ele efetivamente dá novo
corpo e nova carne às regras do (odiado) “estado de emergência”,
para permitir que o establishment de segurança elimine qualquer
resistência ao governo da Junta militar.
Outra vez,
tudo isso está sendo feito “por mandato popular”: como o jornal nacionalista Al-Watan escreveu semana passada: “Do povo
a El-Sisi [chefe das forças armadas]: Garantimos seu mandato. Agora, é degolar
os terroristas!”. Outro jornal, Al-Youm Al-Sabaa, exibiu manchete
semelhante: “Povo exige que a Fraternidade seja executada”.
Mas, embora
essas leis visem primariamente à Fraternidade Muçulmana, o efeito combinado das
duas é suficientemente amplo para enquadrar também os primeiros movimentos de
mal-estar entre os seculares/liberais. Alguns seculares/liberais (poucos, se
comparados aos Irmãos) foram detidos por criticar (por falta de objetivo
revolucionário) o governo da junta militar. Deve-se prever que, aumentando a
desilusão e o fim das esperanças que depositaram em Sisi, aumente também o
número de seculares/liberais nas prisões egípcias.
Khalil Al-Anani |
Em resumo,
a contrarrevolução que o Golfo orquestrou no Egito contra os levantes árabes de
2011, agora sob o comando do General Sisi, está sendo empurrada na direção da
mais ampla, total e irrestrita
repressão.
Como Khalil Al-Anani comenta, a proscrição da Fraternidade Muçulmana
fortalece “a ideia de um inimigo comum, de uma ameaça existencial ao estado e à
sociedade”. “Outra razão para a proscrição”, continua ele, “é mobilizar o
público para que vote “sim” no referendo da Constituição, que o governo
provisório vê como meio para resolver a própria falta de legitimidade. Fechar o
espaço público para qualquer tipo de ação de protesto, sob a alegação que o
fechamento é ação de contraterrorismo (...) e declarar a Fraternidade “grupo
terrorista”, fecha a porta para qualquer reaproximação futura entre a
Fraternidade e os grupos revolucionários”.
Não se
trata apenas de criminalizar parte muito substancial da população egípcia (pelo
crime de enunciar apoio direto ou indireto à Fraternidade Muçulmana – crime que
passa a receber pena de cinco anos de cadeia), mas os “vigilantes” já estão
sendo encorajados por jornalistas e outras figuras “midiáticas”, pelos jornais
e pelas televisões, a incendiar residências de Irmãos e depredar suas empresas
e escritórios. Criaram-se linhas de disque-denúncia, para que todos possam
facilmente denunciar nomes e endereços de pessoas suspeitas de simpatia com a
Fraternidade Muçulmana. Empresas-imprensa, em toda a “mídia”, ecoam e repercutem
o incitamento contra os “terroristas”. Pessoas suspeitas de contatos com os
Irmãos estão sendo sequestradas, torturadas e mortas. A fratura na sociedade
egípcia de que falamos no início, já se expande: agora se vê um cisma.
Líderes da Fraternidade Muçulmana discurso quando do golpe militar que derrubou o presidente democraticamente eleito, Mohamed Mursi |
Qual será a
resposta? No Egito tudo anda devagar, mas já se veem alguns indicadores claros.
A Fraternidade Muçulmana já mergulhou
na clandestinidade. As
lideranças (membros da Shura e o Gabinete de Orientação) já foram presas
ou sumiram na clandestinidade. O movimento sobrevive reativando seu antigo
sistema de “células”, de sete, oito pessoas, que se reúnem na cada do líder da
célula. Mas também esse sistema, que manteve vivo o movimento em outros
momentos de perseguição cerrada, está sob forte estresse, e os líderes de
célula encontram grandes dificuldades para manter ativas as comunicações entre
as células e para cima, na hierarquia, para quem quer que ainda esteja ativo na
liderança.
A geração
mais velha da Fraternidade Muçulmana não quer guerra aberta contra Sisi: sabem
que não têm qualquer chance de vitória. Em vez disso, a estratégia é manter a
liderança com manifestações “relâmpago” (“Não temos escolha: Sisi nos
encurralou”) e esperar que a própria Junta se autodesmoralize, enquanto a
economia despenca. A FM sabe que há tempos muitos difíceis adiante, para a
economia egípcia; e acredita que nada tenham a fazer, além de esperar e
capitalizar o inevitável (segundo os Irmãos) tombo da Junta, aos olhos da
opinião pública. Simultaneamente, a FM está trabalhando com seus apoiadores
dentro do Exército, para inflar o descontentamento, entre os militares, contra
o alto comando. (Um quadro político russo de alto escalão diz que a Rússia
estima que cerca de 70% dos quadros inferiores da hierarquia militar egípcia
opõem-se ao rumo que o comando está dando ao exército).
Mas essa “opção
segura” nem está funcionando, nem satisfaz os membros mais jovens da FM. A
política de não violência da FM não está se implantando em todo o movimento
como os líderes esperavam que se implantasse. O recente ataque à bomba em
Mansour, no qual morreram 16 policiais, quase com certeza não foi obra da FM
(um grupo salafista do Sinai já se apresentou como responsável, e é
perfeitamente possível que sejam os autores), mas a FM já foi imediatamente
acusada – e jornalistas e “especialistas” da imprensa-empresa governista já conseguiram
persuadir significativa maioria dos egípcios de que a FM, sim, é o “grupo
terrorista” responsável pelo atentado.
Os jovens da Fraternidade Muçulmana lutam diuturnamente contra o golpe militar |
Os Irmãos
mais jovens, que perderam amigos e parentes nos confrontos à bala contra a
polícia, não admitirão essa posição
“contemplativa” da ala mais velha. Para esses jovens, a lição a
aprender do Golpe é que os Irmãos foram ingênuos. Entendem que a FM deveria ter
“destruído o sistema” no instante em que chegou ao poder. Teriam de ter
promovido um expurgo no exército; e que todo o “estado profundo” teria de ter
sido destruído. Essa, dizem eles, é a lição da Argélia, do Hamas em 2006, e,
agora, também do presidente Mursi. Muitos desses – impossível avaliar quantos –
tomarão o rumo dos movimentos islamistas revolucionários violentos que
partilham e defendem a “ideia” da al-Qaeda. Essa não é tendência que exploda
repentinamente, mas crescerá com o tempo – e contará com armas e combatentes vindos da Líbia, que já se
disseminam por todo o norte da África.
O caso dos
salafistas é mais complicado. Financiados por Arábia Saudita, Emirados Árabes
Unidos e Kuwait, a liderança quase toda apoiou a Junta, exibindo notável “flexibilidade”
nas questões constitucionais em respeito ao Islã. Mas eles também já perderam
os membros jovens. Muitos desses salafistas veem o ataque das forças de
segurança contra os Irmãos, e a deposição do presidente Mursi, não como ataque
à Fraternidade Muçulmana per se; mas como ataque contra o próprio Islã.
Esse grupo dos salafistas portanto virou-se contra a Arábia Saudita – tanto
quanto também contra Sisi.
Por fim,
partes do Egito (Sinai, partes de Alexandria e Suez) estão-se convertendo numa Idlib egípcia – sob o “controle” (não há
palavra adequada para descrever a ambígua ‘'rede'’ de intimidação posta em ação)
de grupos jihadistas de várias
tendências – todos eles ferozmente hostis à Fraternidade Muçulmana, vendo os
Irmãos como apóstatas.
Mapa ferroviário do norte do Egito e as distâncias entre as cidades envolvidas |
A que tudo
isso leva o Egito? O problema é que, por mais que Sisi tenha conseguido criar
um culto que toma grandes fatias da população, para esmagar os chamados “terroristas”
(a FM), ainda não se vê solução suficiente para os profundos problemas
econômicos que o país enfrenta. Os estados do Golfo deram (embora nem tudo
sejam doações) cerca de US$ 12 bilhões, mas a maioria dos especialistas estimam
que o Egito precisa de mais de US$ 50 bilhões para manter-se à tona. Cerca de
43% da população vive em condições desesperadoras de miséria (com renda
familiar de menos de US$ 2/dia, e muitos desses pobres são ex-beneficiários dos
serviços caritativos da Fraternidade, apoio que agora foi cortado).
E que visão
Sisi oferecerá: reformas econômicas “liberais” à moda do FMI – com metade da
população sobrevivendo com menos de US$ 2/dia? O nacionalismo árabe (estilo
neonasserista) é hoje viável? Difícil supor que sim. Não há dinheiro para isso.
E o nacionalismo árabe entrou em fase de longo declínio depois da Guerra de 1973,
da qual não se recuperou.
E que visão
a Fraternidade Muçulmana pode oferecer? Um retorno à Da’wa e aos
serviços sociais caritativos? Nisso, tampouco, já quase ninguém acredita. Nem a
FM poderá esperar passivamente que o colapso econômico do Egito mate a fome dos
que esperam qualquer “solução” para suas muitas misérias e alguma visão de
futuro promissor.
A única
visão que parece ressoar na rua é a récita salafista de simples “certezas” às
quais as pessoas possam pendurar-se, em desespero, num momento de tumulto e
ordem em liquefação. Paradoxalmente, nesse nível, vê-se convergirem os
salafistas e Irmãos mais jovens, que se vão aproximando entre eles em torno de
uma visão de mundo salafista, e emergindo, talvez, como únicos reais beneficiários
do atual estado de coisas.
O ocidente
adotou visão
de curto prazo:
Todos temos
pequena influência; tratamos a questão como assunto interno do país (como os
eventos na Síria) e apoiamos Sisi, porque tem o único instrumento (o exército e
as forças de segurança) capazes de prover (a palavra é péssima) “segurança”.
Mas a brutal
repressão garantirá a tal “segurança” de que fala o ocidente, no longo prazo. A
lição do colapso de Sykes-Picot a que assistimos em toda a região não é prova,
precisamente, de que não?
O sinal de
aviso e alarme é “cuidado
para não criarem novas al-Qaedas”.
O Egito
parece a caminho de mais e mais fraturas, e de tornar-se mais violento no confronto
com a ressurreição do “sistema árabe”, sob a forma do general (e provável
presidente) Sisi.
[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em
direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada
do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás
narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e
interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas
anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as
pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se
escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de
“extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos,
movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais
políticos no mundo.
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