sábado, 1 de fevereiro de 2014

Incrível Heloísa

[*] Barbara Newman, L. R . of  Books, vol. 36, Nº 2, 23/1/2014, pp. 5-7
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Resenha de: The Letter Collection of Peter Abelard and Heloise de David Luscombe - Londres: ed. Oxford, 654 pp., agosto de 2013 - ISBN 978 0 19 822248 4 (£165.00)

Abelardo e Heloísa

Há 900 anos, um filósofo-celebridade caiu de amores por sua aluna-estrela e seduziu-a. As antes brilhantes conferências-aulas de Abelardo amornaram, e canções de amor de sua lavra passaram a pôr o nome de Heloísa em todos os lábios. Voaram cartas apaixonadas, e a máquina parisiense de boatos pôs-se a operar em tempo integral – até que a gravidez, afinal, traiu o segredo. Muito contra a vontade de Heloísa, Abelardo insistiu no casamento, para acalmar a fúria de Fulbert, tio dela, que estava realmente enfurecido; e entregou o filho de ambos aos cuidados de seu irmão, que vivia numa fazenda na Bretagne. Casaram-se secretamente ao amanhecer e, dali, cada um seguiu seu rumo. Uma Heloísa ressentida negava todos os boatos sobre o casamento. E Abelardo, para protegê-la contra a ira de Fulbert, vestiu-a num hábito de monja e escondeu-a longe, em Argenteuil, o mesmo convento onde ela fora criada. Foi como a gota d’água que fez transbordar a paciência de Fulbert: contratou bandidos que surpreenderam Abelardo quando dormia e caparam-lhe a parte da anatomia mediante a qual ele cometera os crimes e pecados em discussão. Sem alternativa, o filósofo eunuco fez-se monge, e Heloísa aceitou votos perpétuos, incluindo neles, como prefácio, um lamento público.

David Luscombe
Quase imediatamente começaram a criar-se mitos sobre o casal. O poeta Jean de Meun, ao descobrir as cartas que o casal trocara durante a vida religiosa, traduziu-as ao francês e popularizou a história em seu Roman de la Rose [1]. Um dos personagens elogia Heloísa, sem par entre as mulheres, mas também usa a história, mesmo assim, para alertar os homens contra os perigos do casamento. Lenda gótica narra que, quando Heloísa foi enterrada ao lado de Abelardo, morto 21 anos antes dela, o esqueleto dele abriu os braços para abraçá-la. Em A morte de Arthur, Sir Thomas Malory fez de “Hellawes” uma bruxa, com interesses necrofílicos na direção de Lancelot. Uma versão do século 18, de versões romanceadas das cartas fizeram do casal o ícone do amor romântico. A tal ponto que Josephine Bonaparte os fez ressepultar no cemitério Père Lachaise.

Entre os medievalistas, poucas figuras foram mais profundamente discutidas. O conto epistolar foi lido como escândalo, romance trágico, edificante história de conversão, ficção espertamente construída e exemplo, às vezes do patriarcado às vezes do feminismo, em ação. Além de incontáveis pinturas, poemas, peças, romances e óperas, as cartas geraram debate acadêmico muito mais amplo do que supuseram merecer. O debate centrou-se não só na interpretação das cartas mas, mais fundamentalmente, na autoria. A autobiografia de Abelardo, intitulada A História das Calamidades Dele (orig. The Story of His Calamities [2]), reconta o infeliz caso de amor dentre outras muitas “calamidades”, supostamente como esforço para consolar um amigo anônimo, provando que as calamidades de Abelardo eram muito piores que as suas (dele). As desgraças do filósofo incluíam uma condenação por heresia, a incineração de seu livro sobre a Trindade, brigas com inimigos invejosos e sua nomeação para o posto de abade de Saint-Gildas, abadia bretã tão corrupta que os monges locais tentaram assassiná-lo, durante a missa, com um cálice envenenado. Ao mesmo tempo em que pinta retrato vívido de seu carismático, embora irascível e tolo autor, o texto também lança luz impressionante sobre a França do século 12. Muitos dos detalhes podem ser confirmados em outras fontes, razão pela qual é difícil contestar a veracidade do relato.

Heloísa, apesar da tantas vezes confessada falta de vocação, rapidamente se tornou abadessa de seu próprio monastério. Abelardo só teve elogios para a ex-esposa (os votos monásticos de ambos automaticamente anularam qualquer casamento): “os bispos a amavam como filha; os abades, como irmã; leigos, como mãe; e todos admiravam sua piedade e sua prudência, além da gentileza e da paciência sem iguais em todas as situações”. 

Aí começa o problema, porque, tão logo esse modelo de virtude pôs as mãos na autobiografia de Abelardo, pôs-se a desmantelar, ela mesma, aquela imagem de perfeita abadessa. Heloísa acusou seu “ex” de tê-la negligenciado durante a primeira década da vida monástica de ambos; reclama de que o que o atraíra foi “fogo de luxúria, não de amor” e exige que ele pague urgentemente a dívida de atenção que tem com ela. Quando ele não paga, ela lança uma torrente de ataques contra Deus, confessa que a religião, nela, é pura hipocrisia, porque até durante a missa sua alma é invadida por “visões lascivas”. Em vez de lamentar o que fez, Heloísa só suspira pelo que perdeu.

Inúmeros historiadores modernos, em reação contra o mito romântico dos dois amantes, consideraram difícil acreditar que uma verdadeira abadessa do século 12 tivesse escrito tais coisas. Pouca diferença fez que a evidência documental de toda a vida dela tendesse a confirmar mais os elogios de Abelardo, que as alegações de Heloísa. 

A abadia dela, Abadia do Paracleto, floresceu, atraindo inúmeras vocações e muitos fundos de doadores bem posicionados e, até, fundando casas afiliadas, para construir sua própria miniordem monástica. Tornou-se também centro para formação religiosa de mulheres. 

Da ravina entre romance trágico e fervor monástico brotou o Primeiro Debate sobre a Autenticidade, que começou no início do século 19, mas ardeu mais furiosamente nos anos 1970s e 1980s, quando a questão da autoria, sendo a autora mulher, caiu sob as lentes de exames feministas. Alguns medievalistas defenderam a autenticidade das cartas de Heloísa; uns poucos atribuíram a autoria a diferentes falsificadores.

Mas outros, entre os quais, principalmente, John Benton e D.W. Robertson, afirmaram que as cartas foram forjadas pelo próprio Abelardo, o qual, para os dois críticos, deu fama a – ou provavelmente, mesmo, inventou – aquela Heloísa apaixonada, jamais arrependida, para dar ainda mais brilho à glória dele, que a seduzira. 

Como as últimas cartas mostram, ela afinal se converteu, ou, no mínimo, aceitou “pôr rédeas” aos próprios lamentos sem limitações. Assim, o que os românticos tomaram como um fim trágico do romance entre os amantes foi, em vez disso, o início de uma frutuosa colaboração intelectual entre eles.

Embora Abelardo jamais tenha cedido à chantagem emocional que Heloísa lhe aplicou, ele, sim, se mostrou absolutamente disposto a cooperar com sua “amada irmã em Cristo”. O dossiê de escritos que Abelardo produziu para a ex-esposa e suas noviças e freiras incluiria um discurso sobre a origem da vida religiosa das mulheres (Carta n. 7, documento extraordinário do feminismo cristão); sobre a administração de monastérios; um hinário completo para o ano litúrgico; um ciclo de sermões; um comentário ao livro do Gênese; e um tratado sobre formação bíblica para mulheres (Carta n. 9), no qual Abelardo elogia Heloísa por seus (notáveis!) conhecimentos de hebraico e grego. 

Fossem quais fossem seus pensamentos privados, a abadessa que encomendou esses escritos tem de ser sido parceira formidável, energética, intelectualmente capaz. Mas essa colaboração não prova que ela não tivesse escrito as primeiras cartas de paixão, sobre as quais repousa praticamente, justa ou não, toda a fama de Heloísa.

Em 1999, a poeira levantada pelo Primeiro Debate sobre a Autenticidade já começara a baixar, e muitos especialistas já concediam que, sim, Heloísa escrevera as cartas que levam seu nome. Mas exatamente naquele ano, Constant Mews, medievalista em Melbourne, pôs fogo à fogueira do Segundo Debate sobre a Autenticidade: publicou um livro que levava o título ousado e provocador de The Lost Love Letters of Heloise  and Abelard [As cartas de amor perdidas de Heloísa e Abelardo]. 

Os dois amantes falam, nas cartas canônicas, sobre cartas anteriores, que haviam trocado “muitas e rápidas” enquanto durou o relacionamento amoroso. Em 1974, Ewald Könsgen publicou uma recém descoberta coleção de cartas medievais em latim, sugerindo, cautelosamente que podiam as cartas perdidas. 

O trabalho de Mews foi mais consistente e mais bem argumentado que o de Könsgen. Mas essas “cartas de amor perdidas”, diferentes das cartas canônicas, eram fragmentadas e sem qualquer assinatura; e chegaram até nós num único manuscrito datado de 1471. 

Procurando reunir uma coletânea de estilo eloquente em língua latina, um copista humanista em Clairvaux pôs-se a copiar partes de um manuscrito muito antigo. Enquanto copiava, o copista foi-se deixando envolver cada vez mais no caso dos amantes sem nome, e, meio sem perceber, passou a copiar não trechos, mas cartas inteiras. 

A linguagem das cartas é claramente do início do século 12; o cenário é Paris. As cartas narram relacionamento real, o idealismo romântico temperado por brigas e desilusões inevitáveis. A mulher elogia o amante como um grande professor, “ante o qual a teimosia nativa francesa se curva, e que a arrogância do mundo todo é obrigada a aplaudir”. A parte da “teimosia nativa francesa” só faz sentido se o professor não for francês; Abelardo era nascido na Bretagne, que não era parte da França medieval. O professor, por sua vez, fala da bem-amada como “a única aluna de filosofia que há entre todas as moças de nossa era”. 

Heloísa? Abelardo? David Luscombe, nessa nova edição magistral das cartas canônicas, mostra-se fortemente inclinado a dizer que não. Todos os professores, naquele tempo, escreve ele, trocavam cartas em que flertavam com alunas; era recurso pedagógico aceito para ensinar retórica em latim. E o tom daquela troca de correspondência variava entre comentários jocosos-adolescentes e cortesias “de salão” – uma paixão de aluna por professor, enfeitada com rostinhos inocentes corados. Aquelas adolescentes e jovens mulheres viviam em conventos; o que não acontece com a mulher das Cartas de Amor Perdidas; e, enquanto flertam e coram, só fazem repetir que são castas e virgens; nada aparece nas cartas típicas do período e do gênero, que se possa ver como declarada paixão erótica. 

O compromisso da mulher anônima das Cartas de Amor Perdidas é muito diferente e muito mais profundo e mais sério: “em toda a latinidade, não encontrei palavra que diga plenamente o quanto minha mente se aplica a você, deus é minha testemunha, amo você com um amor sublime e excepcional. Assim não há nem haverá destino que me possa separar do seu amor, exceto, só, a morte”. A retórica dessas cartas nada tem de convencional, como alguns se apressaram a dizer que teriam. O estilo é exuberante, as cartas são obcecadas com capturar a essência filosófica do amor. Definir o amor foi preocupação de toda aquela era; trovadores e monges lutavam entre eles para dissecar os traços e humores do que chamavam caritas (caridade) e fin’amors (amor refinado).

Para o filósofo das Cartas de Amor Perdidas, o amor é “um certo poder da alma, nem existente por ele mesmo, nem autocontido, mas sempre extravasado sobre outro, com um tipo de apetite e desejo, querendo tornar-se um com o outro, de tal modo que, de dois diferentes desejos, produza-se uma só coisa indiferenciada”. A frase soa como definição que Abelardo poderia ter redigido. O próprio termo “indiferenciada” (lat. indifferenter) é muito frequente na solução que Abelardo propôs ao problema dos universais, que teve forte influência nas melhores cabeças do início do século 12 francês. 

As paixões sempre giram em torvelinho em torno de Heloísa. Antes de Abelardo tê-la conhecido pessoalmente, ele já conhecia a reputação dela: “não era nada menos, na aparência; mas na abundância do seus saberes, ela era suprema”. Ele a descreve, quando ela estava nos seus primeiros 20 anos, como “famosa em todo o reino”. E há outros testemunhos. Educada pelas freiras de Argenteuil – professoras prodigiosas, ao que se sabe – Heloísa tornou-se uma das mais supremas estilistas da Idade de Ouro do Latim medieval. 

Um correspondente, Hugh Métel, é mais específico: seus melhores dotes eram para “a composição, para escrever poesia, para criar neologias e para usar palavras conhecidas dando-lhes novas significações”. Tão grande era seu talento literário, que ela “ultrapassava a suavidade feminina e esgrimia a dureza mais viril” (elogio padrão dirigido a mulheres, em tempos de misoginia brutal). 

À luz dos elogios de Métel, é fascinante descobrir que As Cartas de Amor Perdidas, ou, pelo menos, as cartas da mulher, são ricas em neologias e palavras raras, além de palavras familiares, usadas de modos nada familiares; e as cartas mostram a mais decidida, a mais valente mistura de poesia e prosa. Abelardo confessou que escolhera Heloísa para sua cama, principalmente porque antevira o prazer de trocarem cartas, “nas quais podemos escrever muitas coisas mais clara e firmemente do que poderíamos dizê-las”. Coisas, talvez, como o arrebatado vocativo que abre As Cartas de Amor Perdidas: “Ao bem amado do coração dela, mais cheiroso que todas as especiarias. Dela, que está no coração e no corpo dele: quando o viço da tua juventude fanar, para que revisites o frescor desse êxtase eterno”. 

Apesar de todo o sucesso dela como abadessa, Heloísa foi inegavelmente rebelde. Ela e Abelardo partilharam o que os filósofos chamam de “a pura ética da intenção”: não são as consequências reais, sequer as consequências previsíveis de um ato, que o fazem bom ou mau, mas, exclusivamente, a intenção do agente. Dado porém que só Deus pode conhecer e discernir intenções, essa posição complica muito qualquer tentativa de construir julgamentos morais. 

Outros pensadores adotaram versões mitigadas da premissa, mas Heloísa foi absolutamente rígida ao aplicá-la, sem nenhuma concessão. Por causa disso, via como absolutamente sem valor, aos olhos de Deus, a sua própria vida de religiosa exemplar: porque fizera tudo por amor a Abelardo, não por amor a Deus. Por outro lado, considerava seu caso de amor moralmente inatacável, porque amara Abelardo puramente por ele mesmo, sem qualquer consideração ou expectativa de vantagem material. Estilista brilhantíssima até a medula, ainda faz arrepiar a pele do leitor, pelo modo erótico-hiperbólico como constrói sua frase-gozo: “Se Augusto, imperador do mundo, houvesse por bem me honrar com o casamento e me conferisse toda a Terra, para que eu a possuísse para sempre, melhor me pareceria, e mais honrado, ser conhecida, não como imperatriz dele, mas como puta tua”. Nada de “amante” nem de “namorada”: puta – Heloísa servia-se das palavras mais amaldiçoadas que encontrava no latim (meretrix, scortum), para argumentar. Escreveu com todas as letras que a mais real das prostituições é o casamento, se as mulheres casam-se mais pelas propriedades e pelo dinheiro, que por amor. São sentimentos que teriam sido radicais no século 18. Imaginem no século 12! 

Considerando-se o quanto Heloísa empenhou-se para provar que vivia como pensava, é difícil não pensar sobre que futuro veria para si mesma quando, grávida, tentou dissuadir Abelardo da ideia de casamento. Profissões femininas nos idos do ano de 1115 não abundavam: esposa, freira e prostituta; as opções eram essas. Teriam de transcorrer 300 anos, até que Christine de Pizan converteu-se na primeira mulher que se sustentou e viveu de escrever. Mas há, sim, uma pequena pista, um pequeno sinal intrigante, de que, sim, Heloísa considerava já essa possibilidade como futuro para ela mesma.

Em A História das Calamidades Dele, Abelardo reproduz, com detalhes, a diatribe de Heloísa contra o casamento, presumivelmente discurso copiado diretamente de uma das cartas perdidas. Autores clássicos aprimoraram o gênero do discurso antimatrimonial, uma dissuasio carregada de argumentos machistas para provar que o filósofo em nenhum caso deveria casar-se. 

Heloísa escolheu a mesma lógica, para argumentar com o amante, contra o casamento; cita a imagem de São Jerônimo, nada agradável, da vida familiar, com apenas uma pequena modificação: “Que homem, curvado sobre pensamentos sacros ou filosóficos, poderá suportar o choro de crianças, as canções de ninar das criadas tentando acalmá-los, a barulheira de criados, homens e mulheres, naquele ir-e-vir pela casa? E que mulher suportará a eterna sujeira e o constante fedor dos bebês?”.

São Jerônimo escreveu duas vezes “que homem” (“quisquis?”). Heloísa discretamente mudou o segundo “quis” [lat. “quem”, interrogativo, masculino] por “que” [lat. Interrogativo, feminino]: “Que mulher?” Para resumir: vemos aí uma mulher ilustradíssima, de alta formação religiosa, no início do século 12, que absoluta e sinceramente não entende que alguém espere que ela deva ser obrigada a suportar a sujeira e o fedor dos bebês. É ideia que incomoda até nossas mentes dos séculos 20 e 21. 

Betty Radice, em sua tradução clássica de 1974 (reproduzida nessa edição de Luscombe, com pequenas revisões), simplesmente não viu esse “Que mulher?”, nesse ponto da carta, e traduziu os pronomes, nas duas frases, como “Quem...?”/”Quem...?”. Mais difícil de explicar e justificar, Luscombe suprimiu, de vez, todo o pronome interrogativo latino feminino “que”, já no texto em latim. 

Confrontado com uma diversidade de leituras de manuscritos, os editores guiam-se por vários princípios. Os manuscritos mais antigos são em geral preferidos aos mais recentes, e uma leitura consensual encontrada várias vezes ganha prioridade sobre uma ou duas variantes conhecidas – a menos que haja razão de peso para deixar de lado essas regras. Uma dessas razões pode ser uma difficilior lectio [3]. Quando se deparavam com anomalias nos textos que copiavam, os escribas antigos e medievais não raras vezes “corrigiam” algo que lhes parecesse inesperado ou inusual, para produzir texto convencional; essa “correção” é muito mais frequente que a que se faça na direção contrária (dar a texto “comum”, leitura “incomum”). Por isso, uma antiga regra editorial decreta que, quando duas leituras competem, a mais difícil é a que tem mais probabilidade de ser autêntica.

No caso do “que” [latim, pronome interrogativo feminino, “que mulher?”) de Heloísa, contudo, Luscombe viola todas as três regras. A “leitura mais dura” é “que mulher?” – que se encontra nos oito manuscritos mais antigos do texto de Abelardo. Por sua vez, o mais previsível “quis” (“que homem?”) só ocorre em dois dos manuscritos mais antigos e numa antiga edição impressa. Ainda assim, Luscombe imprime “que homem?” [lat. “quis”] depois da passagem de São Jerônimo e relega “que mulher?” às notas de pé de página. E, com essa operação, a Heloísa contrafatual – a que teria sido intelectual independente, rebelde, anticasamento, exultante na paixão livre – desaparece de vista, antes mesmo de que a tenhamos conseguido ver.

Mas Jean de Meun, que escreveu nos anos 1260s, sim, percebeu bem que ali havia o que ver: para o seu Romance da Rosa, ele interpretou corretamente a diatribe de Heloísa. Heloísa rejeitou o casamento, escreveu Meun, “para que [Abelardo] pudesse dedicar-se integralmente ao estudo, / Todo dela, todo livre, sem se amarrar a nada, / E para que ela também pudesse retomar seus estudos, / Porque ela muito queria saber”. 

Heloísa, em resumo, pensou o impensável e tentou viver conforme sua convicção.

Todas as discussões à parte, a edição bilíngue de Luscombe e importante realização que, pela primeira vez, permite que o leitor [de inglês] compare todos os manuscritos existentes e leia as cartas canônicas do começo ao fim, incluindo o texto integral das regras que Abelardo escreveu sobre como dirigir uma abadia – e que a Abadessa Heloísa, apesar do muito que se dizia obediente e apaixonada, jamais obedeceu com rigor. Depois de 900 anos, essa mulher espantosa ainda nos aparece cheia de surpresas. 

O Segundo Debate da Autenticidade está longe de acabar, e depois que a poeira baixar também sobre ele (porque fatalmente baixará), talvez precisemos de edição ainda mais longa, que retrace o relacionamento do casal, desde os primeiros momentos do nascimento da paixão, através da separação e da tragédia, até o re-encontro e o re-compromisso, numa parceira intelectual e espiritual tão excepcional quanto o amor deles.



Notas dos tradutores

[1] Romance da Rosa. Porto: Porto Editora, 2003-2014.

[2] Ver: Historia Calamitatum (em inglês)


[3] Lat. lectio difficilior (trad. “leitura mais dura”). Na reconstrução de textos (da Bíblia, por exemplo), a ideia segundo a qual, de duas leituras alternativas de texto manuscrito, a que imponha significado menos óbvio é a que tem menos probabilidade de ser alteração introduzida por copista; por isso, deve ter precedência.
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[*] Barbara Newman é professora de Inglês, Religião e Clássicos da Universidade Northwestern. Seu mais recente livro é Medieval Crossover: Reading the Secular against the Sacred (2013). Conhecida por seu trabalho sobre a cultura religiosa medieval, poesia alegórica, e da espiritualidade das mulheres. Ela também é o editora / tradutora de Tomás de Cantimpré: Thomas of Cantimpré: The Collected Saints' Lives '(2008), e autora de Frauenlob's Song of Songs: A Medieval German Poet and His Masterpiece (2006), God and the Goddesses: Vision, Poetry, e  Belief in the Middle Ages (2003), e From Virile Woman to WomanChrist: Studies in Medieval Religion and Literature (1995), bem como três obras sobre Hildegard de Bingen: um volume editado, Voice of the Living Light: Hildegard of Bingen and Her World (1998); uma edição e tradução de músicas coletadas de Hildegard, Symphonia Armonie Celestium Revelationum (1988, rev 1998.) e Sister of Wisdom: St. Hildegard's Theology of the Feminine (1987). 

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