28/2/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Mapa político da Ucrânia e principais cidades e fronteiras - ao sul a península da Crimeia |
O tempo não
espera por ninguém, mas, parece, esperará pela Crimeia. O presidente do
Parlamento da Crimeia, Vladimir Konstantinov, confirmou que haverá um
referendo, que decidirá sobre maior autonomia em relação à Ucrânia, dia 25 de
maio.
Até lá, a
Crimeia permanecerá tão quente e fumegante quanto o carnaval no Rio – porque na
Crimeia tudo tem a ver, sempre, com Sebastopol, o porto de atracação da Frota
Russa do Mar Negro.
Se a
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é um touro, esse é o pano vermelho
mãe de todos os panos vermelhos. Ainda que você esteja tentando afogar todas as
suas mágoas no nirvana movido a álcool e pulando para suar todos os seus
problemas no carnaval no Rio – ou em Nova Orleans, ou Veneza, ou Trinidad e
Tobago – mesmo assim seu cérebro registrou que o sonho mais molhado dos sonhos
molhados da OTAN é instalar um governo fantoche do ocidente na Ucrânia, para
despachar de lá, de sua base em Sebastopol, a marinha russa. O arrendamento
negociado do porto é vigente até 2042. Já há rumores e ameaças de que o
arrendamento será cancelado.
Mapa da Crimeia com suas cidades principais e a vizinhança da Rússia |
A península
da Crimeia é habitada por maioria absoluta de falantes de russo. Pouquíssimos
ucranianos vivem ali. Em 1954, o ucraniano Nikita Krushchev – aquele, o que
bateu o sapato na mesa, na Assembleia Geral da ONU [1]
– precisou só de 15 minutos para dar a Crimeia de presente à Ucrânia (então,
parte da União Soviética). Na Rússia, a Crimeia é vista como russa. Nada mudará
esse fato.
Ainda não
estamos diante de uma nova Guerra da Crimeia – ainda não. Só um pouco. O sonho
molhado da OTAN é uma coisa; outra coisa, muito diferente, é fazê-lo acontecer:
tipo pôr fim para sempre à rotina de a frota russa deixar Sebastopol pelo Mar
Negro, pelo Bósforo, e assim chegar a Tartus, o porto mediterrâneo da Síria.
Assim sendo, sim, sim, trata-se tanto de Crimeia, quanto de Síria.
Mapa Étnico linguístico-cultural da Ucrânia atual |
A nova
revolução ucraniana cor de laranja, de tangerina, de Campari, de Aperol
Spritz ou de Tequila
Sunrise parece, até aqui, ser resposta às preces da
OTAN. Mas ainda há estrada longa e sinuosa a percorrer, antes de a OTAN
conseguir reencenar os anos 1850s e produzir o remix da Guerra da Crimeia original.
Chuck Hagel |
No futuro à
vista e previsível, seremos afogados num mar branco de platitudes. Como o El
Supremo do Pentágono, Chuck Hagel, “avisando” a Rússia que fique longe do
torvelinho, enquanto ministros da Defesa da OTAN lançam toda a pilha
indispensável de declarações, em nenhuma das quais se lê “garantindo integral
apoio” à nova liderança, e paus mandados da imprensa-empresa universal repetem
sem parar que não se trata de Nova Guerra Fria, para tranquilizar a população. [2]
Dancem
conforme a minha estratégia, otários
Onde está
HL Mencken, quando se precisa dele? Ninguém jamais perdeu dinheiro subestimando
a capacidade de mentir do sistema Pentágono/OTAN/CIA/Departamento de Estado dos
EUA. Especialmente agora, quando a política para a Ucrânia do governo Obama
parece ter sido subalugada à turma da neoconservadora Victoria "Foda-se a
União Europeia” Nuland, casada com Robert Kagan, neoconservador queridinho de
Dábliu Bush.
Como Immanuel
Wallerstein já observou, Nuland,
Kagan e a gangue neoconservadora estão tão aterrorizados ante a possibilidade
de a Rússia “dominar” quanto ante o surgimento de uma aliança geoestratégica
que pode emergir lentamente, e bastante possível, entre a Alemanha (com a
França como parceiro júnior) e a Rússia. Significaria o coração da União Europeia
constituindo um contrapoder, de oposição ao abalado e oscilante poder
norte-americano.
E, como
atual encarnação do abalado poder norte-americano, o governo Obama é, sim, um
fenômeno. Agora, estão perdidos no pântano que eles próprios inventaram, do tal
“pivô”. Que pivô vem primeiro? Aquele na direção da China? Mas, nesse caso,
temos de pivotear-nos, antes, para o Irã – para pôr fim à ação dispersiva, lá,
no Oriente Médio. Ou quem sabe...? Talvez não.
John Kerry |
Ouçam essa,
a melhor, do secretário de Estado John Kerry, sobre o Irã:
Tomamos a iniciativa e lideramos o esforço
para tentar ver se antes de irmos à guerra realmente poderia haver uma solução
pacífica.
Quer dizer
então que já não se trata de acordo nuclear a ser alcançado, talvez, em 2014.
Nada disso. Agora se trata de “antes de irmos à guerra”. Trata-se de bombardear
um possível acordo, para que o Império possa bombardear mais um país – outra
vez. Ou, talvez, não passa de sonho molhado fornecido pelos patrões dos
fantoches Likudniks.
O grande Michael
Hudson especulou que um “xadrez multidimensional” poderia estar “guiando os
movimentos dos EUA na Ucrânia”. Nada disso. Está mais para “se não podemos nos pivotear
para a China – ainda – e se a pivotagem para o Irã vai falhar (porque desejamos
que falhe), podemos nos pivotear para algum outro lugar...” Oh yes, tem
aquele maldito país que nos impediu de bombardear a Síria; chamado “Rússia”. E
tudo isso sobre o comando ilustrado de Victoria “Foda-se a União Europeia”
Nuland. Onde está um neo-Aristófanes, para escrever a história dessas comédias?
Christiane Amanpour |
E ninguém
jamais esqueça a imprensa-empresa. A CNN já começou a “Amanpourear” [ref. a Christiane Amanpour; equivale aos
verbos “Jaborizar (derivado de Jabor)” ou “Waackear (der. de Waack)”, em
português do Brasil (NTs)] sobre o Acordo de Budapeste – e só fazem repetir
que a Rússia tem de ficar fora da Ucrânia. Visivelmente, uma horda de
produtores, todos com “índices” de audiência desabados, sequer se deram o
trabalho de ler o Acordo
de Budapeste, o qual, como o professor Francis Boyle da Universidade de
Illinois lembrou “determina, isso sim, que EUA, Rússia, Ucrânia e Grã-Bretanha
têm de reunir-se imediatamente, para “consulta” conjunta – e que a reunião tem
de ser feita no nível de ministros de Relações Exteriores, pelo menos”.
Assim
sendo, então... Quem paga as contas?
O novo
primeiro-ministro da Ucrânia, Arseniy Yatsenyuk, é – e o que mais seria?! – um
“tecnocrata reformador”, expressão em código para “fantoche do ocidente”. [3]
Ucrânia está convertida em caso perdido (rebentado). A moeda caiu 20% desde o
início de 2014. Milhões de desempregados europeus sabem que a União Europeia
não tem dinheiro para resgatar o país (talvez os ucranianos devam pedir algumas
dicas ao ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi).
Em termos
do Oleogasodutostão, a Ucrânia é apêndice da Rússia; o gás que transita pela
Ucrânia para mercados europeus é gás russo. E a indústria ucraniana depende do
mercado russo.
Examinemos
mais de perto os bolsos dos novos “revolucionários” cor de Aperol Spritz. Todos
os meses, a conta de gás natural importado da Rússia fica em torno de US$ 1
bilhão. Em janeiro, o país teve de despender também US$ 1,1 bilhão para pagar
dívidas. As reservas em moeda estrangeira caíram, de US$ 20,4 bilhões, para US$ 17,8
bilhões. A Ucrânia tem de pagar, como pagamento mínimo da dívida, nada menos de
$17 bilhões em 2014. E tiveram até de
cancelar um lançamento de $2 bilhões de eurobonds,
semana passada.
O gato de Cheshire |
Francamente:
o presidente Vladimir Putin – codinome “Vlad, A Marreta” – deve estar rindo
feito o gato de Cheshire [4]. Pode
simplesmente cancelar o significativo desconto de 33% no preço do gás natural
importado, que deu a Kiev, no final do ano passado. Rumores insistentes já
dizem – desesperançados – que os revolucionários da revolução cor de Aperol
Spritz não terão dinheiro para pagar aposentadorias e salários dos funcionários
públicos. Em junho, vence uma dívida monstro, em mãos de vários credores (no
total, cerca de US$ 1 bilhão). Depois disso, a coisa é mais sinistra, desolada e
escura que o norte da Sibéria no inverno.
A oferta
dos EUA, de $1 bilhão, é piada. E tudo isso, depois que a estratégia de
“Foda-se a União Europeia” de Victoria Nuland torpedeou um governo ucraniano de
transição – transição, por falar dela, negociada pela União Europeia – que
teria mantido os russos a bordo, e o dinheiro deles.
Sem a
Rússia, a Ucrânia dependerá totalmente do ocidente para pagar as próprias
contas, para nem falar de tentar evitar o calote de todas as dívidas. O total
alcança vertiginosos $30 bilhões, até o final de 2014. Diferente do Egito, a
Ucrânia não pode telefonar para a Casa de Saud e pedir cataratas de
petrodólares. Aquele empréstimo de US$ 15 bilhões que a Rússia ofereceu
recentemente chegaria em boa hora – mas Moscou tem de receber algo em troca.
Vladimir Putin por Maurício Porto |
A ideia de
que Putin ordenará ataque militar contra a Ucrânia explica-se pelo quociente
subzoológico de inteligência da imprensa-empresa nos EUA. “Vlad, A Marreta” só
precisa assistir ao circo – o ocidente batendo cabeça para ver se arranja
aqueles bilhões a serem desperdiçados num caso perdido (rebentado). Ou ao Fundo
Monetário Internacional e aquela conversa sinistra de mais um monstruoso
“ajuste estrutural” para mandar a população da Ucrânia de volta ao Paleolítico,
de vez.
A Crimeia
pode até encenar seu próprio carnaval adiado, votando não só para ter mais
autonomia, mas, também, para livrar-se do tal caso perdido (rebentado). Nesse
caso, Putin receberá a Crimeia de presente, grátis – à moda Krushchev. Não é mau
negócio. E tudo graças àquela oh! tão estratééégica pivoteação contra a Rússia,
com “Foda-se a União Europeia”.
________________________
Notas de rodapé
Khrushchev e o sapato |
[1] A foto da
primeira página do New York Times do dia 12/10/1960 mostrava Khrushchev
com um sapato na mão e a manchete “Rússia novamente ameaça o mundo. Dessa vez,
com o sapato do líder”. Mas, pouco depois, pessoas presentes à Assembleia Geral
da ONU que se realizara na véspera corrigiram a notícia e a manchete:
Khrushchev não batera com o sapato no púlpito principal, mas na própria mesa; e
não para ameaçar alguém, apenas para chamar a atenção.
Quando Nikita Sergeevich entrou no
salão, estava cercado de jornalistas; um deles pisou no seu calcanhar e
arrancou-lhe o sapato. Khrushchev, bastante gordo, não quis expor-se ao
ridículo de procurar o próprio sapato e calçá-lo ali, em pé, à vista das
câmeras. Andou então diretamente para sua mesa e sentou-se; o sapato,
embrulhado num guardanapo, foi trazido por alguém e posto sobre a mesa. Naquele
momento, um delegado filipino disse que a União Soviética havia ‘engolido’ a
Europa Oriental, “privando-a de seus direitos civis e políticos”. A frase
causou tumulto e protestos na sala. Um delegado romeno saltou em pé e pôs-se a
gritar contra o diplomata filipino. Nesse ponto, Khrushchev quis intervir na
discussão, mas o delegado irlandês, que presidia a discussão, não o viu.
Khrushchev acenou com uma mão, depois com a outra. Sem resultado, ele pegou o
sapato que ainda estava sobre a mesa e o agitou no ar. Ainda sem resultado, ele
bateu o sapato, com força, na mesa. O irlandês afinal olhou na direção dele e o
viu
[2] 26/2/2014, Daily Telegraph em: “US and Britain say Ucrânia is not a battleground
between East and West”.
[3] 27/2/2014, Voice of America, em: “Biden: U.S. Supports Ucrânia's New Government”
[4] Cheshire
Cat com a banda Blinck 182 com letra mostrada no vídeo (em inglês) a seguir:
_________________
[*] Pepe Escobar (1954)
é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica
exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos,
traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João
Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
− Globalistan:
How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
− Red
Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
− Obama
Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
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