segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Apoio de Irã e Rússia a Assad beneficia os sírios

16/2/2014, [*] Musa al-Gharbi, Press TV, Teerã
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Bashar al-Assad
Na segunda rodada das conversações de Genebra-2, o governo aceitou um cessar-fogo temporário em Homs, e a suspensão do bloqueio, para permitir a saída dos cidadãos que quisessem sair e para a entrada de provisões para os que permanecessem.

Imediatamente depois dessa concessão feita pelo governo sírio, os EUA e seus aliados tentaram fazer aprovar uma resolução, pretensamente baseada no Cap. 7º, no Conselho de Segurança da ONU. Sob o pretexto de implantar esse acordo com o governo sírio, aquela Resolução teria declarado que toda a culpa pelo conflito e por todas as atrocidades cometidas na Síria caberia integralmente ao governo sírio. Assim se pavimentaria o caminho para “mudar o equilíbrio de poder em campo”.

Rússia e China declararam o projeto de Resolução morto ainda no ovo. Lavrov acusou os EUA de estarem obstruindo o processo de paz na Síria, com sua insistência em que o único fim aceitável para o conflito teria de implicar a renúncia de al-Assad; e que os EUA repetidamente levantavam a ameaça de intervenção militar.

Impossível não ter, aí, uma sensação de déjà vu:

Em março de 2012, a ONU envolveu-se nas tentativas para negociar um acordo de paz na Síria. Entre março e junho o enviado de paz da ONU, Kofi Annan, trabalhou como intermediário entre o governo e as oposições e conseguiu negociar vários acordos de cessar-fogo e obteve concessões dos lados em guerra. Aqueles esforços foram minados em parte pelo fato de que o chamado Exército Sírio Livre e o chamado Conselho Nacional Sírio absolutamente não tinham controle sobre as milícias, o que tornava difícil fazer valer os acordos de cessar-fogo.

Kofi Annan, Bashar al-Assad, membros da Liga Árabe e das Nações Unidas em 10/3/2012
Mas Annan percebeu claramente que o principal incentivo à continuação dos conflitos na Síria vinha de potências que operavam de fora, especialmente os EUA, sempre insistindo em que a única solução aceitável para o conflito seria a renúncia de al-Assad – que essa sempre seria precondição para qualquer acordo negociado – sempre deixando aberta a ameaça de intervenção militar (através da Líbia) para assegurar uma mudança de regime, se as negociações falhassem.

Em junho de 2012, Annan redigiu o Comunicado de Genebra, no qual se consolidavam as concessões que os dois lados haviam feito nas negociações até ali e traçava-se um mapa do caminho para um processo de reconciliação nacional na Síria.

Importante: apesar de o Comunicado obrigar o governo a transferir a autoridade executiva para um corpo transicional executivo, não impedia que o presidente al-Assad participasse desse corpo, nem o impedia de participar em governos posteriores ou nas eleições.

Além disso, o Comunicado, explícita e claramente, atribuía a responsabilidade pelos conflitos aos grupos de oposição, embora dissesse que ao governo, como ator mais forte, cabia a maior responsabilidade por ajudar a restaurar a ordem. Annan conseguiu que alguns agentes internacionais ativos no conflito sírio assinassem esse acordo (estranhamente, com exceção do Irã) – os quais, contudo, não compreenderam que o alvo do acordo eram eles mesmos, não o governo sírio ou os militantes. O objetivo do Comunicado de Annan era conseguir que a comunidade internacional parasse de intervir nas negociações ou que perpetuasse a guerra.

Pois... já no dia seguinte, depois de assinado o Comunicado, os EUA e seus aliados já tentavam empurrar ao Conselho de Segurança uma Resolução baseada no Capítulo 7º, a qual, em declarado desrespeito e desafio ao Comunicado “declarava” que toda a culpa pelos conflitos cabia ao governo do presidente al-Assad, o que daria motivo para intervenção militar, se as condições que a Resolução impunha não fossem imediata e suficientemente satisfeitas.

Kofi Annan, enviado de paz da ONU, sentiu-se ultrajado por essa jogada dos norte-americanos, que ele viu como traição ao acordo que as potências ocidentais acabavam de assinar – e a jogada dos EUA matou as negociações do processo de paz.

Susan Rice
Ante o fracasso de sua tentativa no Conselho de Segurança da ONU, uma Susan Rice enlouquecida de fúria declarou que, assim sendo, os EUA e seus aliados regionais e da União Europeia teriam de “trabalhar por fora da ONU” para alcançar o objetivo ao qual visavam (vale observar que a maioria dos tais aliados regionais são monarquias, quase todas repressivas; o desejo daqueles aliados de levar “democracia” à Síria sempre seria, de saída, altamente questionável).

Imediatamente, esses estados passaram a financiar, armar, alimentar e treinar milícias rebeldes; mas, como no caso da Líbia, a maioria dos recursos encaminhados para aquelas milícias acabaram em mãos de pessoal de baixa confiabilidade, que passou a acorrer em ondas à Síria, à caça, precisamente, do influxo de recursos e da possibilidade de alguma “mudança de regime” ao estilo do que haviam visto na Líbia.

Incensados pela renovada oferta de recursos e pela reacendida possibilidade de intervenção internacional, além do grande número de combatentes que passaram a chegar à Síria e que, num primeiro momento, fizeram os combates pender a seu favor em algumas áreas, os chamados Exército Sírio Livre e Conselho Nacional Sírio absolutamente recusaram-se a continuar quaisquer negociações ou a respeitar quaisquer cessar-fogos, a menos que al-Assad renunciasse – repetindo, como papagaios, o que diziam seus apoiadores estrangeiros.

Na sequência dessa remontada de dinheiro, armas e homens pagos por potências estrangeiras, a situação na Síria rapidamente se deteriorou. A ONU teve de retirar de lá seus observadores, e Annan renunciou ao cargo, profundamente decepcionado.

Desde então, a ONU repetidas vezes pediu aos EUA e seus aliados que parem de financiar e armar a oposição, porque essas ações só fazem prolongar o conflito e tornam cada dia mais difícil implantar qualquer tipo de acordo (sobretudo porque já ninguém controla as armas que chegam à Síria, nem a ação dos grupos locais; é o que se vê hoje, quando já há uma dramática guerra civil dentro da guerra civil, que está tomando o norte da Síria. Os norte-americanos foram absolutamente surdos a todos os pedidos da ONU.

Milícia terrorista armada pelos EUA e aliados contra a Síria (foto 17/6/2013)
É falso o argumento que os apologistas das “milícias” usam hoje, sugerindo que Rússia e Irã estariam fazendo “a mesma coisa” ao fornecer armas, suprimentos e dinheiro ao governo de al-Assad. Há importante diferença legal e filosófica entre (a) garantir apoio a um governo que enfrenta assalto financiado por potências externas e (b) armar, pagar e treinar grupos não estatais privados, que fazem guerra a um estado e a um governo.

Há outra assimetria nisso, crítica, porque é absolutamente indispensável que o estado sírio permaneça viável: se o governo sírio entrar em colapso desordenado, o desastre será amplíssimo, e só exacerbará radicalmente, em vez de mitigar, o conflito.

Até EUA e a oposição tiveram de admitir isso, a contragosto, pelo menos oficialmente. Mas ainda falta que reconheçam que a ajuda que está mantendo intacto o governo sírio, tanto militarmente como noutros campos, tem de ser reconhecida como crítica para a estabilidade da Síria – componente importante para tornar possível e aplicável em campo qualquer acordo que se venha a alcançar.

Já se vê bem claramente que a ideia divulgada por “cientistas” políticos, de levar o governo sírio à beira do colapso, para arrancar dele um “melhor” acordo, é perfeita loucura – em boa parte porque essa ideia pressupõe que a coalizão liderada pelos EUA conseguirá arrancar a Síria da beira do abismo e evitar o caos total.

Ao longo de todo o conflito, os políticos norte-americanos já mostraram que absolutamente não têm, sequer, compreensão clara da dinâmica na Síria. A ideia de que eles, sabe-se lá como, conseguiriam controlar uma situação complexa e fluida que sequer conhecem, muito menos compreendem, ou que conseguiriam administrar essa estratégia, é ridícula.

Tampouco é claro o que significaria um “melhor” acordo nesse contexto. Melhor, em que sentido? E melhor para quem?

Com certeza, não estão buscando qualquer “melhor” acordo para o povo sírio, que estão em massa a favor do governo de al-Assad contra os terroristas, como o demonstram todas as evidências e todas as pesquisas. A favor dos militantes só se ouvem bobagens, retórica e propaganda oca.

Assim sendo, a mais importante diferença entre o apoio que Rússia e Irã dão ao governo sírio e o apoio que os EUA e as monarquias do Golfo Persa dão aos terroristas é que, sem dúvida possível, Rússia e Irã estão promovendo o desejo e os interesses do povo sírio.

Independente de se o governo sírio alcançará ou não algum acordo com a “oposição”, ou de se a Conferência Genebra-2 poderá fazer com que as potências ocidentais e seus aliados afinal aceitem o que determina o Comunicado de Genebra, fazendo cessar a ação deles que prolonga e perpetua o conflito – esse sempre será o melhor resultado concebível, para ajudar a pôr fim à crise na Síria. Isso, precisamente, era o que se desejava que o Comunicado conseguisse fazer.


[*] Musa al-Gharbi é pesquisador adjunto da Southwest Initiative for the Study of Mideast Conflicts (SISMEC). É mestre em Filosofia pela University of Arizona. Pode ser acompanhado pelo Twitter, em @Musa_alGharbi.

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