16/2/2014, [*] Musa al-Gharbi,
Press TV, Teerã
Traduzido pelo pessoal da
Vila Vudu
Bashar al-Assad |
Na segunda
rodada das conversações de Genebra-2, o governo aceitou um cessar-fogo
temporário em Homs, e a suspensão do bloqueio, para permitir a saída dos
cidadãos que quisessem sair e para a entrada de provisões para os que
permanecessem.
Imediatamente
depois dessa concessão feita pelo governo sírio, os EUA e seus aliados tentaram
fazer aprovar uma resolução, pretensamente baseada no Cap. 7º, no Conselho de
Segurança da ONU. Sob o pretexto de implantar esse acordo com o governo sírio,
aquela Resolução teria declarado que toda a culpa pelo conflito e por todas as
atrocidades cometidas na Síria caberia integralmente ao governo sírio. Assim se
pavimentaria o caminho para “mudar o equilíbrio de poder em campo”.
Rússia e
China declararam o projeto de Resolução morto ainda no ovo. Lavrov acusou os
EUA de estarem obstruindo o processo de paz na Síria, com sua insistência em
que o único fim aceitável para o conflito teria de implicar a renúncia de
al-Assad; e que os EUA repetidamente levantavam a ameaça de intervenção
militar.
Impossível
não ter, aí, uma sensação de déjà vu:
Em março de
2012, a
ONU envolveu-se nas tentativas para negociar um acordo de paz na Síria. Entre
março e junho o enviado de paz da ONU, Kofi Annan, trabalhou como intermediário
entre o governo e as oposições e conseguiu negociar vários acordos de
cessar-fogo e obteve concessões dos lados em guerra. Aqueles esforços foram
minados em parte pelo fato de que o chamado Exército Sírio Livre e o chamado Conselho
Nacional Sírio absolutamente não tinham controle sobre as milícias, o que
tornava difícil fazer valer os acordos de cessar-fogo.
Kofi Annan, Bashar al-Assad, membros da Liga Árabe e das Nações Unidas em 10/3/2012 |
Mas Annan
percebeu claramente que o principal incentivo à continuação dos conflitos na
Síria vinha de potências que operavam de fora, especialmente os EUA, sempre
insistindo em que a única solução aceitável para o conflito seria a renúncia de
al-Assad – que essa sempre seria precondição para qualquer acordo negociado –
sempre deixando aberta a ameaça de intervenção militar (através da Líbia) para
assegurar uma mudança de regime, se as negociações falhassem.
Em junho de
2012, Annan redigiu o Comunicado de Genebra, no qual se consolidavam as
concessões que os dois lados haviam feito nas negociações até ali e traçava-se
um mapa do caminho para um processo de reconciliação nacional na Síria.
Importante:
apesar de o Comunicado obrigar o governo a transferir a autoridade executiva
para um corpo transicional executivo, não impedia que o presidente al-Assad
participasse desse corpo, nem o impedia de participar em governos posteriores
ou nas eleições.
Além disso,
o Comunicado, explícita e claramente, atribuía a responsabilidade pelos
conflitos aos grupos de oposição, embora dissesse que ao governo, como ator
mais forte, cabia a maior responsabilidade por ajudar a restaurar a ordem.
Annan conseguiu que alguns agentes internacionais ativos no conflito sírio
assinassem esse acordo (estranhamente, com exceção do Irã) – os quais, contudo,
não compreenderam que o alvo do acordo eram eles mesmos, não o governo sírio ou
os militantes. O objetivo do Comunicado de Annan era conseguir que a comunidade
internacional parasse de intervir nas negociações ou que perpetuasse a guerra.
Pois... já
no dia seguinte, depois de assinado o Comunicado, os EUA e seus aliados já
tentavam empurrar ao Conselho de Segurança uma Resolução baseada no Capítulo
7º, a qual, em declarado desrespeito e desafio ao Comunicado “declarava” que
toda a culpa pelos conflitos cabia ao governo do presidente al-Assad, o que daria
motivo para intervenção militar, se as condições que a Resolução impunha não
fossem imediata e suficientemente satisfeitas.
Kofi Annan,
enviado de paz da ONU, sentiu-se ultrajado por essa jogada dos
norte-americanos, que ele viu como traição ao acordo que as potências
ocidentais acabavam de assinar – e a jogada dos EUA matou as negociações do
processo de paz.
Susan Rice |
Ante o
fracasso de sua tentativa no Conselho de Segurança da ONU, uma Susan Rice
enlouquecida de fúria declarou que, assim sendo, os EUA e seus aliados
regionais e da União Europeia teriam de “trabalhar por fora da ONU” para
alcançar o objetivo ao qual visavam (vale observar que a maioria dos tais
aliados regionais são monarquias, quase todas repressivas; o desejo daqueles
aliados de levar “democracia” à Síria sempre seria, de saída, altamente
questionável).
Imediatamente,
esses estados passaram a financiar, armar, alimentar e treinar milícias
rebeldes; mas, como no caso da Líbia, a maioria dos recursos encaminhados para
aquelas milícias acabaram em mãos de pessoal de baixa confiabilidade, que
passou a acorrer em ondas à Síria, à caça, precisamente, do influxo de recursos
e da possibilidade de alguma “mudança de regime” ao estilo do que haviam visto
na Líbia.
Incensados
pela renovada oferta de recursos e pela reacendida possibilidade de intervenção
internacional, além do grande número de combatentes que passaram a chegar à
Síria e que, num primeiro momento, fizeram os combates pender a seu favor em
algumas áreas, os chamados Exército Sírio Livre e Conselho Nacional Sírio
absolutamente recusaram-se a continuar quaisquer negociações ou a respeitar
quaisquer cessar-fogos, a menos que al-Assad renunciasse – repetindo, como
papagaios, o que diziam seus apoiadores estrangeiros.
Na
sequência dessa remontada de dinheiro, armas e homens pagos por potências
estrangeiras, a situação na Síria rapidamente se deteriorou. A ONU teve de
retirar de lá seus observadores, e Annan renunciou ao cargo, profundamente
decepcionado.
Desde
então, a ONU repetidas vezes pediu aos EUA e seus aliados que parem de
financiar e armar a oposição, porque essas ações só fazem prolongar o conflito
e tornam cada dia mais difícil implantar qualquer tipo de acordo (sobretudo
porque já ninguém controla as armas que chegam à Síria, nem a ação dos grupos
locais; é o que se vê hoje, quando já há uma dramática guerra civil dentro da
guerra civil, que está tomando o norte da Síria. Os norte-americanos foram
absolutamente surdos a todos os pedidos da ONU.
Milícia terrorista armada pelos EUA e aliados contra a Síria (foto 17/6/2013) |
É falso o
argumento que os apologistas das “milícias” usam hoje, sugerindo que Rússia e
Irã estariam fazendo “a mesma coisa” ao fornecer armas, suprimentos e dinheiro
ao governo de al-Assad. Há importante diferença legal e filosófica entre (a) garantir apoio a um governo que
enfrenta assalto financiado por potências externas e (b) armar, pagar e treinar grupos não estatais privados, que fazem
guerra a um estado e a um governo.
Há outra
assimetria nisso, crítica, porque é absolutamente indispensável que o estado
sírio permaneça viável: se o governo sírio entrar em colapso desordenado, o
desastre será amplíssimo, e só exacerbará radicalmente, em vez de mitigar, o
conflito.
Até EUA e a
oposição tiveram de admitir isso, a contragosto, pelo menos oficialmente. Mas
ainda falta que reconheçam que a ajuda que está mantendo intacto o governo
sírio, tanto militarmente como noutros campos, tem de ser reconhecida como
crítica para a estabilidade da Síria – componente importante para tornar
possível e aplicável em campo qualquer acordo que se venha a alcançar.
Já se vê
bem claramente que a ideia divulgada por “cientistas” políticos, de levar o
governo sírio à beira do colapso, para arrancar dele um “melhor” acordo, é
perfeita loucura – em boa parte porque essa ideia pressupõe que a coalizão
liderada pelos EUA conseguirá arrancar a Síria da beira do abismo e evitar o
caos total.
Ao longo de
todo o conflito, os políticos norte-americanos já mostraram que absolutamente
não têm, sequer, compreensão clara da dinâmica na Síria. A ideia de que eles,
sabe-se lá como, conseguiriam controlar uma situação complexa e fluida que
sequer conhecem, muito menos compreendem, ou que conseguiriam administrar essa
estratégia, é ridícula.
Tampouco é
claro o que significaria um “melhor” acordo nesse contexto. Melhor, em que
sentido? E melhor para quem?
Com
certeza, não estão buscando qualquer “melhor” acordo para o povo sírio, que
estão em massa a favor do governo de al-Assad contra os terroristas, como o
demonstram todas as evidências e todas as pesquisas. A favor dos militantes só
se ouvem bobagens, retórica e propaganda oca.
Assim
sendo, a mais importante diferença entre o apoio que Rússia e Irã dão ao
governo sírio e o apoio que os EUA e as monarquias do Golfo Persa dão aos
terroristas é que, sem dúvida possível, Rússia e Irã estão promovendo o desejo
e os interesses do povo sírio.
Independente
de se o governo sírio alcançará ou não algum acordo com a “oposição”, ou de se
a Conferência Genebra-2 poderá fazer com que as potências ocidentais e seus
aliados afinal aceitem o que determina o Comunicado de Genebra, fazendo cessar
a ação deles que prolonga e perpetua o conflito – esse sempre será o melhor
resultado concebível, para ajudar a pôr fim à crise na Síria. Isso,
precisamente, era o que se desejava que o Comunicado conseguisse fazer.
[*] Musa al-Gharbi é pesquisador adjunto da Southwest Initiative for the Study of Mideast Conflicts (SISMEC). É mestre em Filosofia pela University
of Arizona. Pode ser acompanhado pelo Twitter,
em @Musa_alGharbi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.