sexta-feira, 16 de julho de 2010

EUA: ponto final nas políticas “com hífen”

17/7/2010, M K Bhadrakumar, Asia Times Online – Traduzido por Caia Fittipaldi


Na semana em que floriram as primeiras cerejeiras de Pequim, em abril, a capital chinesa recebeu personagem muitíssimo controverso na política regional – o temível “amir” do Jamiat Ulema-e-Islam (JUI-F) [aprox., “assembleia dos clérigos islâmicos”] do Paquistão, Maulana [1][1] Fazalur Rehman, conhecido de muitos como “o pai dos Talibãs”.


Muito provavelmente, dois aspectos da visita de Rehman a Pequim intrigarão os observadores externos. O grupo JUI-F não tem contraparte chinesa; Pequim resolveu o dilema, pondo o Partido Comunista Chinês (PCC) à vanguarda, para receber Rehman. E o PCC e o JUI-F talvez pareçam óleo e água, aos olhos de muitos; a China espera conseguir misturá-los – e é possível que consiga. Durante a visita de Rehman, o PCC e o JUI-F assinaram um memorandum de cooperação.


Em seguida, saindo de Pequim, Rehman tomou o rumo da Região Autônoma uigur de Xinjiang.


Foi momento extraordinário – o energético maulana exposto à política violenta da Ásia Central, graças à ideologia do Islã militante praticado por seus filhos e alunos; e, do outro lado, a mais pura audácia ou o mais puro pragmatismo das políticas de Pequim, que o recebem em Urumqi, enquanto Xinjiang sangra nas mãos de militantes islâmicos baseados no Paquistão e mal dá conta de enfrentar a máfia da droga na Estrada de Karakoram [2][2], da qual se fala, cada dia mais, como a principal artéria do tráfico de drogas para a China.


Claro. O Paquistão é imensamente importante para as estratégias chinesas. É amigo testado, “faça frio, faça calor”; é mercado potencialmente sério para investimentos e exportações chinesas; é elo vital na nova cadeia de comunicações que liga a China ao Golfo Persa, ao Oriente e à África (contornando o Estreito de Malacca). Mas, mais importante que isso, o Paquistão dá abrigo a militantes islâmicos chineses, que podem já ter sido influenciados por motivadas potências estrangeiras.


Não surpreende, pois que cooperação para assuntos de segurança com Islamabad já seja tema de alta prioridade para Pequim, que navega águas da amizade com o Paquistão. A notícia abaixo, do jornal estatal chinês China Daily, mostra bem a complexidade das relações entre China e Paquistão:


“Número crescente de membros do Movimento Islâmico do Turkestão Leste [ing. East Turkistan Islamic Movement (ETIM)], que têm liderado os tumultos e está incluído na lista de organizações terroristas do Conselho de Segurança da ONU, têm fugido para o Paquistão e lá se reorganizam para futuros golpes. Segundo informes recentes, o ETIM já tem relações muito próximas de colaboração com os Talibã e com Osama bin Laden. Há notícias também de um líder do ETIM que estaria escondido no Paquistão; e fala-se de que haveria um “batalhão chinês”, formado de cerca de 320 membros do ETIM, nas forças Talibã. “Não é difícil para eles esconderem-se no Paquistão: têm crenças religiosas semelhantes, idioma e traços físicos idênticos aos locais”, noticiava, dia 1 de julho, o World News, de Pequim.”


Além disso, a China enfrenta desafios geopolíticos sem precedentes, no movimento de fazer avançar essa sua “amizade sem tempo ruim” com o Paquistão. O xis da questão é que o Paquistão está convertido em campo de caça para aplicação das estratégias regionais dos EUA. Há diferença qualitativa hoje, em comparação ao sobe e desce da maré das ações de colaboração entre EUA-Paquistão da era da Guerra Fria. Hoje, os EUA dependem militarmente do Paquistão para por fim à guerra do Afeganistão, de modo que, sem as muitas mortes que complicam as coisas ante a opinião pública, seja possível manter a presença militar da OTAN na Ásia Central.


As estratégias dos EUA em relação ao Paquistão são fator importante no futuro da OTAN como organização global de segurança; há os laços transatlânticos dos EUA a considerar, o crescimento da China e o desafio que impõe à supremacia dos EUA na ordem mundial do século 21. Em resumo, o Paquistão é aliado praticamente insubstituível dos EUA e assim continuará em todo o futuro previsível, por sua geografia, por sua economia política e pelo tipo de relacionamento único que pode estabelecer com grupos terroristas. A chegada da secretária de Estado Hillary Clinton a Islamabad na próxima semana, para responder pela co-direção dos trabalhos no diálogo estratégico EUA-Paquistão – o segundo em quatro meses – diz muito sobre a importância do Paquistão como fator central em todos os cálculos de política externa de Washington.


O que emerge de tudo isso é que já não se trata de o que a China faça no Paquistão sempre ter de ocultar algum segundo motivo (contra seu grande vizinho do sul da Ásia, a Índia); tampouco se trata de as políticas chinesas em relação ao Paquistão serem sempre essencialmente centradas na Índia. De fato, já se observa há algum tempo a tendência de Pequim buscar um ponto de equilíbrio em suas relações com Índia e Paquistão. O simbolismo político de o premiê chinês e outros líderes terem recebido recentemente, em julho, um enviado especial do primeiro-ministro indiano, pouco antes da chegada do presidente do Paquistão, para visita “de trabalho”, de uma semana, não pode ser ignorado.


Depois de consultas em Pequim, o enviado especial do governo indiano declarou que Nova Delhi espera com otimismo que se forje “um relacionamento [com a China] não motivado de fora para dentro”. O modo como isso será traduzido em políticas é assunto do mais alto interesse. Curiosamente, logo depois das consultas China-Índia e às vésperas do diálogo estratégico EUA-Paquistão em Islamabad, o Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA chegou a Nova Delhi para “reforçar” a parceria estratégica entre os dois países e preparar o terreno para a esperada visita do presidente Barack Obama à Índia, prevista para novembro. O roteiro oficial dos representantes dos EUA incluiu visitas ao ministro da Defesa e a vários militares indianos de alto escalão.


Espera-se que esteja firmemente fechada e selada a caixa de vermes gordos que Tio Sam periodicamente exibe aos indianos – uma “aliança de democracias asiáticas” de EUA, Japão e Austrália. É absolutamente necessário blindar a normalização das relações entre Índia e China, contra qualquer interferência episódica dos EUA.


A parte mais preocupante é que, à margem do recente diálogo estratégico EUA-Índia em junho, em Washington, altos funcionários dos EUA já ressuscitaram em sua diplomacia pública as ideias da era George W Bush, de que EUA e Índia patrulhariam o Oceano Índico, trabalhando com Japão e Austrália – doutrina que aparece como irrelevante e quixotesca depois da erupção da crise financeira mundial e da emergência de novas realidades no sistema internacional.


Do mesmo modo, a Índia deve ver com objetividade e sob nova perspectiva os novos laços China-Paquistão. O relacionamento mais próximo entre China e Paquistão, sem dúvida, estimulará New Delhi a buscar fortalecer os laços China-Índia; mas também isso tem de ser avaliado sob perspectiva geopolítica. De fato, é mais que hora de apagarem-se todos esses hífens nas relações: há as relações entre China e Índia, que nada devem ter a ver com as relações entre Índia e Paquistão (ou entre Índia e EUA).


A comunidade estratégica indiana tem de reorientar o próprio pensamento: o relacionamento da Índia com a China não precisa depender do pé em que estejam as relações da China com o Paquistão, ou vice-versa.


E pode-se dizer que o mesmo vale também para a China. A convergência dos interesses de Índia e China em inúmeras questões globais é evidente hoje e exige “nova etapa do relacionamento”, nas palavras de alto funcionário indiano, recentemente.


O governo indiano fez bem ao recusar-se a adotar tom de acrimônia com Pequim sobre o controverso acordo nuclear China-Paquistão – apesar da genuína apreensão em New Delhi sobre quem quer que se alie ao Paquistão, em tempos em que todos devem ocupar-se com a não-proliferação nuclear. Os formadores de opinião têm sugerido pela mídia que o acordo nuclear China-Paquistão seria basicamente orientado contra a Índia. Nas palavras de matéria publicada em veículo ocidental, “China e Paquistão ameaçam obstruir as aspirações indianas, construindo colaboração à parte.”


A pergunta que se tem de fazer é se os dois reatores que a China propõe-se a instalar no complexo de Chashma, no Paquistão, em estrita observância das regras da Agência Internacional de Energia Atômica, realmente ameaçam a segurança da Índia ou se alteram o “equilíbrio estratégico” entre Índia e Paquistão?


Pode-se argumentar que não. Que se o Paquistão abraçar qualquer das modalidades do regime de não proliferação da IAEA, exatamente como a China parece ter em mente, os novos reatores serão benéficos. Seja como for, e por menos que a moralidade interfira na política, fato é que a Índia dificilmente conseguiria contestar o direito de o Paquistão ter projetos nucleares com a China, depois de a Índia ter defendido com considerável entusiasmo seus próprios projetos nucleares com os EUA em 2008.


O que ninguém parece estar levando em conta é que o Tratado de Não-Proliferação como existe hoje não proíbe comércio de material nuclear com país não signatário como a Índia – e como o Paquistão. De fato, a “Cortina de Ferro” foi incorporada ao grupo mediante o Nuclear Supplier's Group (NSG). Esse Grupo de Fornecedores Nucleares foi coalizão construída pelos EUA para penalizar a Índia sob um regime dito multilateral que reuniria países que poderiam fornecer combustível e tecnologia nuclear à Índia, em certo estágio do processo de nuclearização.


Dito em termos mais claros, à medida que os EUA começaram a sentir, desde a década passada, a urgente necessidade, para suas estratégias globais, de construir parceria com a Índia, como poder emergente, as barreiras impostas pelo NSG foram sendo descartadas como inconvenientes relíquias antiquadas. Do mesmo modo, é inteiramente concebível, em termos dos imperativos para as estratégias regionais de Washington na região do Sul da Ásia e Ásia Central, que os EUA, algum dia, ofereçam parceria nuclear ao Paquistão.


Em resumo, Pequim terá ainda mais motivos para fortalecer seus laços com o Paquistão em momento crucial, quando o Paquistão aparece como parceiro chave dos EUA nas estratégias regionais. O xis da questão é que a estratégia dos EUA para conseguir uma posição “embedded” [aprox. “aninhada”] no sudeste da Ásia preocupa profundamente a China. E o Paquistão, por sua vez, tem sido parceiro exemplar para a China, e contribui muito significativa e robustamente para manter a amizade China-Paquistão bem longe de ser embolsada pelos EUA.


Para garantir que não haverá surpresas, Pequim e New Delhi estarão muito atentas, observando todas as piruetas diplomáticas do próximo diálogo estratégico EUA-Paquistão em Islamabad. Dessa vez, Pequim e Nova Delhi estão no mesmo barco – exceto, claro, no sentido de que a Índia vê-se como beneficiária direta - em vários sentidos, da influência decisiva que os EUA tenham sobre o Paquistão.


Os EUA têm sido suficientemente espertos para perceber as vantagens de “des-hifenizar” os relacionamentos nos complicados ambientes geopolíticos da Região. Uma política “des-hifenizada” permite que Washington afine e aprimore os seus laços com China, Paquistão e Índia, ao mesmo tempo em que se beneficia das contradições que fragilizam os laços entre China, Paquistão e Índia, as três potências regionais. O espetáculo oferece todos os ingredientes de uma fábula “com moral da história”, no campo político e diplomático.


O artigo original, em inglês, pode ser lido em: US puts a stop to hyphenation

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NOTAS


[1][1]Maulana, árabe; literalmente “nosso mestre”. No Dicionário de Árabe Moderno Escrito: “[expressão] usada para dirigir-se a um soberano” (Wikipedia, em: Mawlānā ) .

[2][2]Sobre essa estrada, ver: Karakoram Highway