sexta-feira, 16 de julho de 2010

Jerusalém: o “apartheid de rua”

10/7/2010, Mya Guarnieri, Al-Jazeera, Qatar

Traduzido por Caia Fittipaldi

Mahmoud Alami, motorista de táxis em Jerusalém, conhece a cidade como a palma da mão. Conhece cada bairro, todas as ruas. E conhece os semáforos. Um dos semáforos, sobretudo, intriga-o muito, não profissionalmente, mas pessoalmente.

Esse semáforo fica entre Beit Hanina, bairro palestino, e Pisgaat Zeev, colônia exclusiva para judeus.

“O sinal fica verde [para os colonos judeus], por cinco minutos. Mas e para sair e entrar em Beit Hanina? Só dois ou três carros conseguem atravessar”, diz Alami. Na direção de Beit Hanina, o sinal fica aberto só por alguns segundos. “Não dá tempo de passar. Por isso, na direção de Beit Hanina, sempre há engarrafamentos-monstro. E ninguém passa.”

Al Jazeera foi conferir: o farol que abre na direção das colônias e bairros exclusivos para judeus permanece aberto por um minuto e meio. Nas áreas palestinas, por 20 segundos. Em todos os casos, o sinal verde, em todas as áreas predominantemente árabes de Jerusalém Leste, fecha em menos de 10 segundos.

“[Os palestinos] vivem engarrafados, sem poder avançar”, diz Amir Daud, também motorista de táxi. “É reflexo da situação terrível em que as pessoas vivem.”

Discriminação no orçamento

Engarrafamentos de trânsito são um dos problemas das áreas de infraestrutura e serviços nas áreas palestinas de Jerusalém. As estradas não recebem qualquer tipo de manutenção. São estreitas e esburacadas. E praticamente não há sinalização de trânsito nas ruas e calçadas.

As latas de lixo são quase sempre comunitárias, e sempre em número menor que o necessário. Os pedestres são obrigados a andar pelos acostamentos, tentando evitar as pilhas de lixo. (...)

O orçamento municipal de Jerusalém é dividido de modo absolutamente desigual. O exemplo mais dramático é o departamento de esportes da cidade: apenas 0,5% dos fundos são alocados nos bairros árabes; 99,5% dos fundos municipais para esportes são alocados nas áreas exclusivas para judeus.

Qualidade de vida

Nisreen Alyan, advogado da Association for Civil Rights em Israel (ACRI), protocolou recentemente junto à Prefeitura de Jerusalém, moção de protesto contra a falta de coleta de lixo no bairro palestino de Tsur Baher, em Jerusalém Leste. Apesar de ali viverem 20 mil palestinos, só 12 ruas têm coleta regular de lixo.

A falta de coleta regular de lixo afeta a saúde e a qualidade de vida, diz Alyan. O lixo atrai cães. Tem havido casos de moradores atacados por cães portadores de raiva. As crianças têm medo de sair à rua.

“Não há áreas de lazer. Não há absolutamente nada para as crianças”, Alyan continua. “As ruas são o único lugar que há, onde se encontram as crianças, o lixo, os carros, os cães contaminados.”

A petição protocolada pela ACRI exige que a prefeitura cumpra seus deveres legais, “nada mais, nada menos”, diz Alyan. “É dever da prefeitura garantir melhores condições de saúde pública aos moradores da cidade – inclusive aos palestinos.”

Alyan já várias vezes levou ao conhecimento das autoridades as condições de vida dos moradores de Tsur Baher em Jerusalém Leste. Mas a prefeitura alega que não pode atender toda a cidade, porque os caminhões coletores de lixo não conseguem manobrar nas vielas estreitas. Alyan lembra que esse não é problema exclusivo dos bairros árabes, mas que, em outras partes de Jerusalém onde as ruas também são estreitas (mas vivem judeus israelenses), a prefeitura encontrou soluções criativas.

Um morador de Tsur Baher explica que as ruas são problemáticas, no bairro árabe, porque ali há poucas ruas.

Enquanto quase todos os demais bairros palestinos de Jerusalém são submetidos a restrições para construir, não há qualquer restrição em Tsur Baher, mas grande parte do território do bairro foi confiscada pela grande colônia exclusiva para judeus que está em construção ao lado do bairro, Har Homa; parte do bairro árabe de Jerusalém está localizada do lado israelense do Muro da Vergonha; e não há qualquer infraestrutura de atendimento à parte deixada do lado palestino.

A falta de vias, ruas e estradas, implica que nenhum serviço de emergência pode chegar àquelas ruas. Tem havido casos de crianças mortas em incêndios. E a polícia proíbe a entrada de ambulâncias, nos bairros palestinos, se não for acompanhada por escolta policial; por isso, em muitos casos, os residentes morrem por falta de socorro rápido.

“O problema é que nunca se encontram policiais disponíveis para a escolta”, diz um morador. “A ambulância tem de ficar à espera da escolta, às vezes por meia hora. E os doentes morrem.” “Estamos [a ACRI] preparando outra petição exatamente contra a exigência dessa escolta” – diz Alyan.

Impostos pagos

Alyan diz também que não há semáforos nas ruas de Tsur Baher, em Jerusalém. Preocupados com a segurança das crianças, os moradores coletaram dinheiro entre eles para construir lombadas e obrigar os veículos a reduzir a velocidade.

Em outros bairros palestinos de Jerusalém, os palestinos cotizam-se para pagar serviços de coleta de lixo e varredura das ruas. Tudo isso, apesar de pagarem impostos municipais.

90% dos árabes-israelenses vivem em bairros cercados, separados da população de judeus israelenses. Por causa disso, os judeus israelenses justificam a diferença de tratamento com o argumento de que “as prefeituras e subprefeituras árabes” são pobres e sem recursos. Porque são pobres, dizem os judeus, os árabes não pagariam impostos ou não pagariam taxas suficientes. Assim sendo, seus bairros e vilas não podem esperar gozar dos mesmos serviços de outros bairros nos quais os judeus pagam regularmente seus impostos. É argumento que poderia fazer algum sentido em outras cidades israelenses, mas não em Jerusalém.

Jerusalém é praticamente rachada ao meio, entre áreas exclusivas para judeus e outras nas quais os palestinos são ‘admitidos’. Se se visita Nof Tzion (“Panorama de Sion”), colônia exclusiva para judeus localizada no centro de Jabel Mukhaber, bairro tradicional palestino, as diferenças são óbvias e gritantes.

“Durante muitos anos, não houve rua principal [em Jabel Mukhaber]”, conta Alyan. “Depois que construíram a colônia exclusiva para judeus de Nof Tzion, [a prefeitura de Jerusalém] construiu ótima rua lá, com pavimentação e iluminação pública.” Mas a rua só existe dentro da colônia exclusiva para judeus. Daquele ponto em diante, a estrada volta a ser esburacada, sem iluminação, coberta de detritos e sujeira, na área do bairro dos palestinos.

É evidente que se trata da mesma prefeitura. E é ato da prefeitura beneficiar só os israelenses judeus que vivem em Jerusalém. O que não implica que os palestinos de Jerusalém não tenham importância alguma para a prefeitura de Jerusalém. De fato, são importantíssimos, porque pagam impostos, exatamente como os judeus israelenses que também vivem em Jerusalém.

“Os palestinos são obrigados a pagar seus impostos municipais, mesmo que não recebam quaisquer serviços públicos da Prefeitura de Jerusalém”, Alyan explica, “porque o recibo dos impostos pagos é o único documento que eles têm para provar a propriedade de suas casas. E quem não tiver casa em seu nome, perde o direito de residir em Jerusalém. Sem direito de residir onde sua família reside há séculos, os palestinos tornam-se cidadãos sem Estado, sem cidadania, refugiados.”

“Os palestinos residentes em Jerusalém desesperam-se mais para conseguir dinheiro para pagar os impostos municipais, do que para alimentar os filhos”, diz Alyan.

As subprefeituras de Tsur Baher e a vizinha Umm Tuba pagam aproximadamente 7 milhões de dólares anuais em taxas e impostos, a uma prefeitura para cuja eleição não podem votar.

“Guerra psicológica”

Yousef Jabareen, diretor do Dirasat, Centro Árabe de Direito e Política, explica que os serviços públicos recebem também subsídios nacionais. E aí está outro ponto de desigualdade.

Jabareen lembra que o programa “Prioridade Nacional” distribui incentivos governamentais para áreas selecionadas. Quando o programa foi implantado, em 1998, 500 colônias exclusivas para judeus e cidades israelenses receberam status de prioridade nacional. Os palestinos são cerca de 20% da população de Israel e constituem metade da população mais pobre; apesar disso, só quatro cidades israelenses de maioria árabe foram incluídas no programa nacional.

“É mais um exemplo clássico de o quanto é discriminatória a alocação de recursos governamentais”, diz Jabareen. E, diz ele, também há graves desigualdades no sistema educacional público.

Tudo – das condições da infraestrutura que está em ruínas, até a total ausência de serviços públicos – contribui para que os palestinos de Jerusalém sintam-se rejeitados e desconectados, diz Jabareen.

“É um sentimento de frustração, de desenraizamento, de não pertencer a lugar algum (...). Os palestinos sentimos como se, em Jerusalém, o governo e o Estado existissem para nos excluir, como se não fôssemos seres humanos.”

Pode-se dizer que as desigualdades que se observam em Jerusalém e as diferenças de tratamento pelo governo e pelo Estado israelenses caracterizam situação de apartheid?

“Em várias áreas, não há dúvida que há características de apartheid, o que gera graves preocupações sobre o futuro das pessoas”, diz Jabareen.

Para um jovem israelense, judeu, que acaba de prestar o serviço militar obrigatório, a coisa é simples: “É guerra psicológica. A ideia é conseguir que os palestinos saiam daqui.”

O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Israel's “street apartheid”

Comentário do Arnaldo Carrilho (Embaixador do Brasil na RPDC)

E a água? No alto de cada casa e cada edifício, há caixas d'água brancas e negras, as primeiras servindo domicílios israelenses, as outras, palestinos. As brancas recolhem o líquido o tempo inteiro 24h/dia; as negras, uma hora/semana, e, às vezes, falham.

O curioso é que 97% dessas águas somadas provêm de mananciais palestinos, mas, na agora do pega-pra-capar, naturalizam-se israelenses. Num território sob ocupação, e já se completam 43 anos a da Palestina, tudo, no quotidiano de velhos, adultos, mulheres e crianças, é traumatizante e sem-saída. Escritores brasileiros amigos de Israel (Rubem Fonseca, Affonso Romano de Santanna, Marina Colassanti, o tal do Paulo Coelho e outros) visitam Israel periodicamente. Mas não têm olhos nem ouvidos para ver e auscultar a tragédia dos palestinos. São meros robôs da propaganda neo-sionista, apoiada sem titubear no Ocidente.

Abraços do

Arnaldo C.