Canadá 2010, pós-Vietnã: segunda geração de resistência contra a guerra
28/5/2010, Judy Keen, USA Today – traduzido por Caia Fittipaldi
TORONTO. Patrick Hart mudou-se para cá em 2005, porque decidiu que não aceitaria ser mandado pela segunda vez para o Iraque. Sargento do Exército dos EUA, com quase dez anos de serviço ativo, decidiu que preferia viver o resto da vida no Canadá, a voltar para uma guerra que, para ele, é guerra errada.
Hart, 36, sabe que muitos o consideram traidor, mas não se arrepende. “Já lutei pelo meu país, suei, fui ferido. Passei noites chorando pelo meu país – o que é mais do que muitos dos que me julgam jamais fizeram”, diz ele. “Prefiro ser preso a voltar ao Iraque”.
Deportação, corte marcial e prisão são riscos reais para Hart e outros cerca de 200 soldados dos EUA que buscaram santuário no Canadá. Apesar de serem soldados que prestaram serviço militar voluntário, alguns se opõem tão decididamente à guerra no Iraque que decidiram deixar os EUA – como fez uma geração anterior de soldados que também cruzaram a fronteira do Canadá nos anos 60s e 70s para não lutar no Vietnã, muitos dos quais construíram a vida aqui.
Alguns daqueles primeiros resistentes contra a guerra do Vietnã, muitos dos quais são hoje grisalhos cidadãos canadenses, têm ajudado os soldados que chegam, nas batalhas jurídicas que têm de enfrentar, a conseguir emprego e a encontrar moradia.
“Eles sabem o que estamos vivendo”, diz Hart.
No Canadá hoje, o clima político e as políticas de imigração são menos acolhedoras para os novos desertores do que foram durante os anos do Vietnã. O governo conservador do primeiro-ministro Stephen Harper recusa-se a dar asilo político ou status de refugiados aos soldados dos EUA que procuram santuário no Canadá, embora, esteja sendo votada no Parlamento uma lei que os autorizará a permanecer no país.
Charlie Diamond tinha 23 anos quando saiu de Connecticut, em 1968, e viajou para o Canadá para não ser mandado para o Vietnã. Naqueles anos, a guerra era impopular nos dois países. Os norte-americanos ocupavam as ruas em protestos; milhares de jovens queimavam os cartões de alistamento.
Hoje, já cidadão canadense e aos 64 anos, Diamond tenta oferecer aos recém-chegados o mesmo tipo de acolhimento que recebeu.
“Quero que meu novo país seja outra vez abrigo para todos que resistem ao militarismo”, diz Diamond – como outros que se recusaram a lutar no Vietnã, ele prefere o termo “resistentes” e trabalha na Campanha de Apoio aos Resistentes contra a Guerra (ing. War Resisters Support Campaign, em http://www.resisters.ca/).
O Canadá não apoiou a invasão do Iraque pelos EUA, e pesquisas mostram que, também para muitos norte-americanos, aquela é guerra errada. Os que hoje são resistentes alistaram-se “em boa consciência, certos de que defenderiam os EUA. Hoje sabemos que, de fato, toda essa guerra é e sempre foi uma grande mentira.”
Os jovens que deixaram os EUA para não ter de lutar no Vietnã foram amplamente acolhidos pelos canadenses e por uma rede de outros resistentes que os ajudaram a encontrar moradia e trabalho. Agora, sob o governo de Harper, o Canadá implantou políticas mais duras de imigração, e todos os desertores da guerra do Iraque que solicitam status de refugiado têm tido seus pedidos negados. O ministro da Imigração Jason Kenney diz que “ser desertor de serviço militar voluntário numa democracia não corresponde, de modo algum (...), à definição de refugiado.”
Em março, Kenney propôs limites ainda mais estreitos: pedidos de imigração de pessoas vindas de países com bom histórico de respeito aos Direitos Humanos só serão ouvidos em Corte Federal – o que acaba com as chances dos desertores, de terem seus pedidos aceitos nas cortes inferiores; e os que não forem atendidos serão deportados no prazo máximo de um ano, não mais de quatro anos como atualmente.
A maioria dos desertores da guerra do Iraque vivem clandestinamente no Canadá, diz Michelle Robidoux, porta-voz da Campanha de Apoio aos Resistentes contra a Guerra. O grupo está em contato direto com mais de 40. Dois foram deportados, julgados e condenados e estão presos nos EUA. Alguns retornaram voluntariamente.
Mais de 50 mil norte-americanos, em idade de prestar serviço militar ativo vieram para o Canadá para não serem mandados lutar no Vietnã, diz John Hagan, professor de sociologia e direito na Northwestern University, também ele desertor, e que, em 2001, publicou Northern Passages, sobre aquele êxodo. Metade deles permanecem até hoje no Canadá, apesar da anistia oferecida pelo presidente Carter em 1977, que se aplicava aos que fugiam do alistamento, mas não a soldados desertores. (...)
Desde o início da guerra do Iraque, em 2003, o Exército condenou 693 soldados por deserção e 2.657 por “ausência sem autorização”. De 2003 a 2008, houve 6.448 desertores na Marinha; de 2003 a 29/3/2010, 260 desertaram da Força Aérea; e de 2003 até o final de março, 9.869 pessoas desertaram do Exército.
A Campanha de Apoio aos Resistentes contra a Guerra – que começou a organizar-se quando Jeremy Hinzman desertou do Exército em 2004 e chegou ao Canadá – arrecada fundos para pagar advogados e custos processuais para os norte-americanos, organiza manifestações públicas e colhe assinaturas de apoio por todo o país. É causa profundamente pessoal para muitos dos que se recusaram a lutar no Vietnã. “Trabalhar com os que desertaram da guerra do Iraque é sempre um sofrimento intenso” diz Bill King, 63, músico e produtor musical que chegou ao Canadá em 1968, para não ser mandado ao Vietnã. “É como reviver a própria vida, na idade deles.”
Jeffry House, advogado que defende os desertores do Iraque na Corte Suprema, chegou ao Canadá em 1970, depois de recrutado para lutar no Vietnã. Crê profundamente no argumento que usa no tribunal: “Nenhum soldado é obrigado a participar de guerra ilegal, inclusive soldado que se tenha alistado voluntariamente.”
Na primeira reunião, conta House, Hinzman disse que se alistara porque queria defender seu país. “Mas a guerra do Iraque é falsa guerra, é enganação”. “Disse exatamente essa palavra”, House recorda. “Comecei a pensar... e, quer saber? Ele tinha razão.”
Gerard Kennedy, deputado, é autor do projeto de lei segundo o qual a cidadania canadense poderá ser concedida a soldados dos EUA “que declarem ter passado por crise de consciência no Iraque”. “Há aí uma questão moral básica, de natureza humana”, diz Kennedy. “Queremos que, em todas as circunstâncias, nossos militares apenas cumpram ordens? Ou reconhecemos que eles também têm alguns direitos?”
Para Kennedy, a maioria dos canadenses pensa como ele. Em 2008 e 2009, o parlamento aprovou várias resoluções, ainda sem peso de lei, que autorizavam a permanência no Canadá de desertores norte-americanos. Pesquisa de 2008 mostrava que 64% eram favoráveis a dar aos desertores o direito de residir permanentemente no Canadá.
Alyssa Manning é advogada em Toronto e defende cerca de 20 soldados norte-americanos. Para ela, os juízes são sensíveis à evidência de que os soldados que vêm para o Canadá expõem-se a punições muito severas pelo Exército dos EUA quando voltam. Mas o governo de Harper, diz ela, é “empedernida e ativamente contrário à ideia de que pessoas que resistem contra a guerra sejam autorizadas a permanecer no Canadá.”
É péssima notícia para Phil McDowell. Phil alistou-se em 2001, depois dos ataques terroristas de 11/9 e serviu no Iraque durante um ano. Poucas semanas depois de receber baixa, em 2006, foi notificado de que seria reenviado ao Iraque, por efeito de uma política do Exército de “reduzir baixas”, que tornava obrigatória uma prorrogação no seu tempo de serviço ativo. Chegou a reincorporar-se à sua unidade, mas não conseguiu embarcar outra vez para o Iraque. Em vez disso, embarcou para o Canadá.
Foi decisão dificílima, escolha que McDowell, 29, sempre considerara “um escândalo, uma vergonha, coisa que não se faz”. Mas já estivera no Iraque. Já sabia que lá não havia armas de destruição em massa, como dissera o governo Bush; e McDowell vira também o modo como os iraquianos médios são tratados pelos soldados da coalizão; já sabia também a verdade sobre os prisioneiros iraquianos na prisão de Abu Ghraib. “Para mim, acontecesse o que acontecesse, em nenhum caso eu voltaria ao Iraque”.
McDowell descobriu na Internet a Campanha de Apoio aos Resistentes contra a Guerra e procurou-os logo que chegou. Lamenta estar ausente nos casamentos e funerais da família, mas ganha a vida num bom emprego de instalação de painéis solares e diz que gostaria de ficar aqui para sempre, mesmo que isso signifique nunca mais voltar a Rhode Island.
Diz também que está “absolutamente” preparado para a deportação e a prisão. Para McDowell, os que vieram para o Canadá para não ir para o Vietnã são garantia de que “alguma coisa acabará dando certo. A vida sempre segue adiante e eles são bom exemplo.”
Kimberly Rivera sente o mesmo. Ela viajou para o Iraque com sua unidade em 2006. Três meses depois, em casa, durante uma licença, decidiu que não conseguiria voltar para lá. Em 2007, viajou para o Canadá. Rivera, 27, natural de Mesquite, Texas, vive com o marido, Mario, e três filhos. Já recebeu duas ordens de deportação, que estão sendo contestadas judicialmente.
Rivera diz que é difícil conviver com a ideia de que muitos a veem como covarde. Vir para o Canadá “foi muito, muito difícil. Não só porque tive de deixar tudo que amo e conheço – tudo –, mas também porque é possível que nunca mais consiga voltar.”
Se for deportada, diz ela, “estou preparada mentalmente para qualquer punição que tenha de enfrentar.”
Diferentes momentos, as mesmas escolhas
Dennis James jamais voltou aos EUA. Foi recrutado em 1969 e mudou-se para o Canadá quando recebeu ordens para deixar o serviço médico onde servia e iniciar treinamento de tiro, última etapa antes de ser mandado para o Vietnã. Se tiver de voltar, mesmo agora, diz ele, tanto tempo depois, terá de apresentar-se ao exército e cumprir pena por deserção.
Como muitos norte-americanos que ficaram no Canadá depois do Vietnã, James, 64, diz que “a atmosfera no Canadá é de acolhimento e respeito pelas pessoas” e que se sente em casa.
James é diretor clínico do programa para dependentes no Toronto's Centre for Addiction and Mental Health e não tem vida política ativa. Mesmo assim, diz que sente simpatia e solidariedade com os ex-soldados norte-americanos que estão chegando ao Canadá para fugir da guerra do Iraque.
Outros, dos anos Vietnã, auxiliam os desertores do Iraque. Tom Riley, 63, de Baltimore, vive em Toronto desde que recebeu ordem de convocação em 1970. Recusou-se a apresentar-se para ser incorporado à tropa.
Hoje, trabalhador social há muitos anos, sente-se na obrigação de ajudar soldados que se recusem a combater no Iraque, e eles gostam de ouvi-lo falar. “É interessante para eles saber que uma geração antes deles já fizemos as mesmas escolhas”, diz Riley.
Carolyn Egan, 60, presidente do Toronto Steelworkers Area Council, chegou à cidade em 1970, com um companheiro que havia sido convocado e não se apresentou. Para ela, homens e mulheres que se recusam a lutar no Iraque “têm a coragem de dizer não” a uma guerra injustificável.
Diamond, Quaker que trabalha com os sem-teto de Toronto, espera que seu país adotivo “tenha coragem de fazer o que, historicamente, nós já fizemos (...). Vejo todos os dias o que guerra e violência fazem às pessoas. A guerra e a violência converteram os
EUA em país muito feio. Não quero que o Canadá siga o mesmo caminho.”
Se o Canadá aceitar mais essa geração de desertores, será resultado do trabalho de Diamond e outros que se recusaram a guerrear no Vietnã, diz Jesse McLaren, 31, médico que trabalha também na Campanha de Apoio aos Resistentes contra a Guerra.
“Os ativistas da primeira geração”, diz ele, “dão força história e moral à nossa campanha.”
O artigo original, em inglês, pode ser lido em: In Canada once more, U.S. troops fleeing a war