8/7/2010, Jack A. Smith, Asia Times Online – Traduzido por Caia Fittipaldi
Jack A. Smith é editor de Activist Newsletter e ex-editor de Guardian Radical Newsweekly.
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Há momentos no mundo político, em que incidente relativamente pequeno desencadeia eventos importantíssimos, dependendo das circunstâncias. Como ensina o provérbio chinês: “Uma pequena fagulha incendeia as pradarias” – sobretudo quando há vento forte e as pradarias estão secas.
Essa analogia ocorre-me agora, depois do violento ataque pelo exército de Israel a seis barcos que conduziam cerca de 700 pessoas da Flotilha da Paz, que tentavam levar ajuda humanitária a Gaza, no Mediterrâneo, há pouco mais de um mês. Foram mortos nove cidadãos turcos, defensores dos direitos humanos dos palestinos, e feridos mais de 50.
É possível que esse incidente represente o início de mudança substancial para os palestinos, israelenses e todo o Oriente Médio? Acreditamos que sim. E já começou. No mínimo, as condições estão maduras para mudar.
Depois de três anos de sanções e bloqueio cada dia mais duros contra 1,5 milhão de palestinos confinados na Faixa de Gaza, Israel está sendo forçada a diminuir o bloqueio, até aqui praticamente total. Não por decisão da ONU ou por resultado de reunião entre as grandes potências para que se alcance algum acordo. O bloqueio israelense está sendo derrotado pela ação de um movimento popular.
O uso de extrema violência por Israel, em águas internacionais, contra barcos civis que viajavam em missão humanitária para ajudar um povo que vive em sofrimento, levantou uma maré de críticas, de todos os lados, contra Israel. Como faz sempre, o Estado judeu tentou apresentar-se como vítima. Foi onde se começou a ver que os tempos mudaram; que as vítimas de ontem, pelas quais a humanidade ainda chora, passaram ao papel de carrascos de hoje. A Israel de hoje exige 10, 50, cem olhos, por cada olho.
Muito da revolta que se viu mês passado em todo o mundo, dirigida contra o governo de Israel, começou a acumular-se quando Israel atacou o Líbano e Gaza no verão de 2006. Cresceu depois do ataque violento, que se arrastou por três semanas, contra a população indefesa de Gaza, no final de dezembro de 2008. Com o ataque sinistro contra a Flotilha da Paz, a crítica que se acumulava, explodiu.
E agora? Ante o fiasco que foi a agressão aos barcos de pacifistas e a desaprovação pública, Israel viu-se obrigada a fazer algumas concessões ao chamado ‘Quarteto’ (ONU, União Europeia, EUA e Rússia, grupo formado há oito anos para tentar equacionar e superar as diferenças entre Israel e palestinos, com vistas a estabelecer dois Estados).
O governo de Barack Obama dá apoio político e militar a Israel. A ajuda anual que os EUA dão a Israel foi aumentada recentemente para 3 bilhões de dólares, que começarão a chover sobre Israel a partir de outubro. Pois até o governo Obama já começa a ver que a violência desmedida dos israelenses; a ocupação ilegal da Cisjordânia (onde vivem 2,8 milhões de palestinos); e a evidência de que Israel não admitirá que se crie um Estado palestino estão minando a hegemonia dos EUA no Oriente Médio e comprometem os próprios interesses dos EUA em todo o mundo.
Obama recusou-se a condenar Israel por atirar contra civis desarmados em águas internacionais; limitou-se à lamentação: “os EUA lamentam profundamente as vidas perdidas e os feridos”. A Casa Branca tampouco usou o poder que tem, para impedir definitivamente que Israel continue a construir unidades de moradias exclusivas para judeus em territórios ocupados ilegalmente e roubados dos palestinos há 43 anos; e a Casa Branca tampouco cogita obrigar Israel a retirar-se das áreas ilegalmente ocupadas na Cisjordânia.
O governo de Netanyahu, coalizão com a extrema direita e religiosos ultra-ortodoxos, não cogita por fim à colonização da Palestina; não pensa em por fim às construções em territórios ocupados; não pensa em sair da Cisjordânia ocupada; nem jamais trabalhou ou trabalhará para a criação de qualquer Estado palestino. Setores religiosos insistem na crença de que Israel teria sido dada “por Deus” aos judeus. (Palestinos que ‘contra-argumentem’ que a mesma terra foi dada por Deus, não aos judeus, mas aos muçulmanos, são considerados “fanáticos religiosos islâmicos”... pelos fanáticos religiosos judeus).
Nesse ensaio, discutiremos em detalhe alguns desses pontos, analisaremos as ações de Obama e do Congresso dos EUA, exploraremos o papel da Turquia e do Irã, a divisão entre os partidos Fatah e Hamas, a desunião no mundo árabe, e anteciparemos alguns desenvolvimentos em todo o Oriente Médio.
*
O povo da Faixa de Gaza continua a sofrer sanções e outras indignidades, mas a dor de viver sob bloqueio total e virtual prisão coletiva começa a diminuir nessa estreita faixa de território, de apenas 40km de comprimento na costa mediterrânea, definida, em 1949 para acomodar alguns dos refugiados palestinos expulsos para que ali fosse criado o Estado de Israel.
As principais organizações de direitos humanos em todo o mundo consideram bem-vindo qualquer levantamento parcial do bloqueio, mas exige que seja completamente cancelado. Para a Anistia Internacional: “O anúncio de que o bloqueio será parcialmente levantado evidencia que Israel não tem qualquer intenção de por fim à punição coletiva da população civil que vive em Gaza, e apenas a ‘suaviza’, e só parcialmente. É dever de Israel cumprir integralmente seus deveres como poder ocupante nos termos da legislação internacional, e cancelar completamente o bloqueio.”
A Agência da ONU para Ajuda Humanitária e Socorro, que supervisiona e atende a comunidade de refugiados palestinos, declarou dia 20/6, por seu porta-voz Christopher Guinness: “É necessário que esse bloqueio seja completamente cancelado. (...) A estratégia israelense é induzir a comunidade internacional a discutir sacos de cimento, mais sacos aqui, menos sacos acolá, para um projeto aqui ou outro acolá. O que importa é nos dar pleno acesso, sem qualquer restrição, em todos os postos de passagem e, atualmente, de controle.”
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha, que raramente se manifesta sobre assuntos específicos, exigiu, em manifestação datada de 14/6, o fim completo do bloqueio, observando que o embargo já destruiu a economia nos territórios ocupados e já arruinou o sistema público de saúde.
A pequena diminuição nas sanções impostas aos palestinos não muda os objetivos políticos do governo de Israel. De modo geral, os objetivos de Israel são: destruir o Hamás (Partido do Movimento da Resistência Islâmica) que governa Gaza; dominar e manipular a Autoridade Nacional Palestina (ANP, que governa a Cisjordânia) e o Fatah (Partido do Movimento de Libertação da Palestina que controla a ANP); manter em terras palestinas suas forças de ocupação e as colônias ilegais exclusivas para judeus; e expulsar de Jerusalém toda a população árabe, processo conhecido como de “judaicização” de Jerusalém.
O objetivo de Netanyahu é manter os palestinos sob condições de jugo neocolonial pelo maior tempo possível. O real desejo do governo da coalizão de direita é manter pelo maior tempo possível o processo de apropriar-se da maior quantidade possível de terras palestinas. Há alguns anos, o Quarteto estimulou Israel a trabalhar na direção de uma “Solução de Dois Estados” até 2012, mas o governo atual tem criado inúmeros obstáculos a qualquer acordo equitativo e dedica-se a adiar qualquer acordo pelo tempo mais longo possível.
Dia 29/6/, o ministro do Exterior Avigdor Lieberman anunciou que “não há qualquer chance” de cumprir-se o prazo de 2012. Há algum tempo, dissera que consideraria a ideia de dois Estados se os 1,3 milhões de árabes que vivem em Israel – como cidadãos de segunda classe em sua própria terra fossem tirados de lá e depositados em território palestino, condição que ninguém sequer considerará. O partido de Lieberman, Yisrael Beiteinu [Israel, nosso lar], já sugeriu que os israelenses árabes seriam “desleais” e dever-se-ia revogar sua cidadania israelense. “Sem lealdade, sem cidadania” foi um de seus slogans de campanha eleitoral no que, para os apoiadores de Lieberman, seria “a única democracia no Oriente Médio”.
Mahmoud Abbas, presidente da ANP, falou por três horas com jornalistas da imprensa israelense, em Ramallah, semana passada. Em editorial, o Jerusalem Post de 1/7, avaliou que o evento “pode ser visto como tentativa – provavelmente fortemente estimulada pelos EUA – de falar diretamente ao público israelense. Abbas nada disse de especialmente novo. Mas a impressão que ficou é que Abbas parece ter convencido os EUA de que, sim, está pronto a iniciar negociações sobre questões-chave de segurança e sobre fronteiras. E que todos os obstáculos a qualquer negociação – de fato, uma muralha de silêncio – são obra do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. “Estamos à espera de que Netanyahu nos dê qualquer sinal de que quer negociar” – disse Abbas.
Dois partidos políticos mais moderados – o Kadima, autodefinido “de centro”, mas que trabalha com a direita, é hoje o maior partido no Parlamento (Knesset); e o Partido Labor (‘trabalhista’), que ainda carrega rótulo de partido de ‘centro-esquerda’ mas opera como de direira, e de ultradireita no que tenha a ver com palestinos – parecem mais sensíveis à Solução dos Dois Estados. Mas nem um nem outro jamais manifestou qualquer forte empenho em criar algum Estado palestino independente. E nenhum dos partidos israelenses dá crédito à ideia defendida por alguns de criar-se um único Estado israelense-palestino, com unidade progressista, multiétnica, multirreligiosa, de real igualdade entre todos e mútuo benefício para todos.
Diz-se que Obama estaria considerando a ideia de propor “um Estado palestino democrático, independente e contínuo” o qual – “para garantir a segurança de Israel” – seria impedido de manter exército ou de estabelecer qualquer pacto de mútua segurança com qualquer outro país. Considerada a história recente de Israel, carregada de ataques militares violentos contra Estados vizinhos, é claro que se tem de fazer a pergunta que ninguém fez: e quanto à segurança dos palestinos?
Netanyahu, por sua vez, evidentemente nada aprendeu das críticas de todo o mundo contra o terrível bloqueio contra Gaza e contra o ataque à Flotilha da Paz. Em recente fala ao Parlamento, disse que “querem nos roubar o direito natural de nos defender. Se nos defendemos contra os foguetes do Hamás, nos acusam de crimes de guerra. Não podemos nos defender nem atirar nos inimigos que atiram em nós, num barco, sem que nos acusem de crime de guerra.”
Uri Avnery, líder do movimento Gush Shalom, “Bloco da Paz Israelense”, vê as coisas de outro modo, como escreveu dia 19/6: “Já há anos, o mundo vê o Estado de Israel todos os dias na tela da TV e nas manchetes dos jornais, sempre mostrado como soldados pesadamente armados que atiram contra crianças que se defendem com pedras; como aviões que lançam bombas de fósforo sobre quarteirões residenciais; como helicópteros que assassinam “alvos preferenciais”. Agora, verão Israel também como nação de piratas que atacam barcos civis em águas internacionais. E as imagens de mulheres aterrorizadas, carregando filhos feridos; homens com pernas arrancadas; casas em ruínas. Se o que Israel tem para mostrar é isso, sempre isso e só isso, é claro que, aos olhos do mundo, Israel converteu-se em monstro.”
Comentando as ações do governo israelense, a revista conservadora The Economist escreveu, dia 5/6: “Israel está presa num círculo vicioso. Quanto mais os linha-duras pensam e repetem que o mundo os odeia, mais rapidamente os linha-dura puxam o gatilho, matam primeiro para perguntar depois, e mais verão o mundo como território sempre inimigo (...). [Netanyahu] não dá a impressão de reservar qualquer espaço para que se pensem as vantagens da paz.”
A revista Time, dia 21/6, dizia: “Além de ter fraturado as relações entre o Estado judeu e a Turquia, seu mais importante aliado muçulmano, e de não contribuir para o esforço de aproximação do governo Obama em Washington, seu sempre principal aliado, o ataque à Flotilha da Paz obriga a considerar o tipo de democracia em que Israel converteu-se: conspicuamente beligerante, sempre rápida na direção de solução militar para todos os problemas que surjam – e fazendo papel cada vez mais lastimável também na solução militar.”
Romper o bloqueio
O bloqueio que Israel mantém contra Gaza é ato de punição coletiva de um povo inteiro – proibido e considerado ilegal na jurisprudência –, lançado inicialmente para castigar os eleitores de Gaza que democraticamente elegeram o partido islâmico Hamás, nas eleições parlamentares de janeiro de 2006. Israel e os EUA apoiavam os candidatos da Autoridade Nacional Palestina, herdeiros da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) e coalizão de partidos políticos sob a liderança do partido Fatah.
As sanções foram convertidas em sítio criminoso um ano depois de o Hamás ter derrotado o Fatah, numa, de fato, guerra civil em Gaza, apesar de os EUA terem dado 60 milhões de dólares ao Fatah para comprar armas e treinar militantes com o objetivo declarado de esmagar o Hamás. Desde essa época, o Hamás governa Gaza e a ANP governa a Cisjordânia, com apoio ocasional de Washington e Telavive.
O bloqueio foi tão severo que toda a população de Gaza passou a viver, de fato, como numa prisão a céu aberto, em pequeno território, durante os últimos dois anos. Apesar de vários tipos de alimentos terem entrada proibida em Gaza, e da queda na quantidade de calorias ingeridas, ninguém morreu de fome. O bloqueio foi planejado, provavelmente, para chegar só até onde chegou. O povo de Gaza sobreviveu sem papel, sabão, cimento, colchões, máquinas em geral, brinquedos e mais uma centena de itens. Cimento é item de especial importância, porque praticamente todas as casas e prédios em Gaza foram destruídos ou semidestruídos pelo exército israelense – residências, prédios comerciais, fábricas e prédios oficiais.
A Associated Press noticiou que Israel anunciara dia 5/7 que levantaria a proibição de quase todos os itens de consumo, mas que “manteria proibidos itens de consumo diário (praticamente todos) e materiais de construção em geral, inclusive cimento. As novas regras dificilmente contribuirão para reconstruir a economia devastada do território, nem permitirão que se reconstruam ou reparem os prédios destruídos e danificados na guerra do ano passado”. O Hamás denunciou as novas regras.
Israel, superpotência militar no Oriente Médio, atacou, no verão de 2006, em rápida guerra punitiva, o Líbano e Gaza – ataque que gerou críticas em todo o mundo. A opinião pública foi outra vez ultrajada em dezembro de 2008, quando o exército israelense outra vez atacou Gaza, ostensivamente como retaliação a ataque com foguetes do Hamás. Massacrou 1.417 palestinos, a maioria dos quais civis, e feriu 5.500. Do lado de Israel, morreram 14, praticamente todos militares. (O Hamás estava mantendo um cessar-fogo acordado há meses; Israel quebrou esse acordo de cessar-fogo; o argumento dos israelenses, de que estariam respondendo aos ‘foguetes’ do Hamás, absolutamente não faz sentido algum, como logo observaram vários grupos, militantes e intelectuais da luta anticolonialismos.)
O suplício da população que vive em Gaza gerou apoio para os palestinos em todo o mundo.
O Movimento Gaza Livre [ing. Free Gaza Movement[1]], coalizão de grupos de ação pró-palestinos, organizou nove tentativas de furar o bloqueio israelense, enviando barcos com ajuda humanitária para Gaza, entre agosto de 2008 e 31/5/2010. Nenhum barco jamais carregou armas de qualquer tipo. Todos foram atacados por Israel, empenhada em manter seu projeto de privação em massa, usado como instrumento de coerção pelo Estado.
Em maio desse ano, o Movimento Gaza Livre reuniu-se à Fundação Turca pelos Direitos e Liberdades Humanos e Ajuda Humanitária [ing. The Foundation for Human Rights and Freedoms and Humanitarian Relief, IHH[2]] e organizou o envio, para Gaza, de seis barcos e 663 militantes pró-Palestina de diferentes países, com o objetivo de furar o bloqueio. Os barcos, carregados com toneladas de produtos, reunir am-se em comboio ao largo da ilha de Chipre, no Mediterrâneo e partiram para Gaza, dia 30/5. Vários passageiros eram militantes treinados para ações de resistência não-violenta. Nenhum viajava armado ou com bombas.
Navios e helicópteros militares israelenses abordaram a flotilha em águas internacionais, a cerca de 100km do litoral da Faixa de Gaza. Deve-se considerar que, ainda que os barcos já tivessem entrado em águas territoriais, seriam águas territoriais de Gaza, não território israelense. Comandos fortemente armados das Forças Especiais do exército israelense abordaram ilegalmente os barcos da Flotilha da Paz e assumiram o comando. Cinco dos barcos foram rapidamente dominados, sem mortes de passageiros.
O sexto barco e, de longe, o maior deles, o Mavi Marmara, comprado no início do ano pela organização IHH, foi abordado por comandos que desceram de helicópteros, ao mesmo tempo em que o barco era cercado por botes de alta velocidade. Alguns passageiros resistiram à invasão, no pleno direito, de qualquer cidadão, de resistir a ataque noturno em águas internacionais e pagaram com a vida. São heróis da paz.
Os assaltantes israelenses atiraram e mataram nove pessoas – vários à queima roupa, o que caracteriza assassinato ou execução. Um dos mortos, cidadão turco-norte-americano, Furkan Dogan, tinha 19 anos. É provável que vários dos mortos e feridos tenham sido agredidos sem manifestar qualquer gesto de resistência. Um sargento israelense, que se vangloriou de haver matado seis civis, disse que todos seriam “terroristas”.
O governo de Israel não planejara matar militantes da Flotilha da Paz. Mas acabou por criar uma situação na qual, se apenas um detalhe daquele ato de agressão não saísse exatamente como deveria sair, tudo escaparia ao controle e daria gravemente errado, como deu. Por que o secretário de Defesa Ehud Barak, autor da famosa frase-propaganda segundo a qual o exército de Israel seria “o mais moral dos exércitos do mundo”, insiste que os comandos foram instruídos a responder racionalmente, ante a possibilidade de resistência não-armada de alguns passageiros?
Imediatamente Israel foi soterrada por mensagens de crítica vindas de todo o planeta; depois das violações repetidas aos direitos humanos dos palestinos, o ataque a tiros contra movimento de pacifistas e agentes humanitários. Em resposta, o aparato de propaganda do governo de Netanyahu disparou uma pletora de autojustificativas – praticamente só mentiras ou, no mínimo, visíveis exageros, mas evidentemente suficientes e satisfatórias para a Casa Branca e o Congresso dos EUA.
O mundo ouviu contar que os assaltantes israelenses super armados teriam sido “linchados”. Que foram espancados com “porretes”. Que havia 50 “soldados turcos” a bordo do Mavi Marmara, informação logo substituída por “75 mercenários da al-Qaeda”. O barco, disse Netanyahu, seria uma “nave do ódio”. Defensores de Israel nos EUA ainda preferem acreditar nesses e noutros contos fantásticos. Sendo assim, seria de esperar que aqueles 75 membros da al-Qaeda seriam presos, levados para Israel e metidos na prisão. Mas, não. Ninguém foi preso – nenhum dos “linchadores” de inocentes soldados israelenses, nem os “espancadores”, nem os “soldados turcos”, nem os “mercenários terroristas”.
Ao saber do ataque aos ativistas por comandos israelenses armados, a poeta norte-americana Alice Walker escreveu em apoio aos “ativistas pacifistas que levavam ajuda a Gaza e que tentaram espantar os agressores usando cadeiras e bastões. Estou grata por me ensinarem o verdadeiro sentido da bondade. Sei que os militantes da Flotilha da Paz estão entre as mais bondosas pessoas que há no mundo: não se calaram ante o sofrimento alheio, não se omitiram ao saber do sofrimento brutal dos palestinos e ofereceram-se sem armas exceto o próprio corpo, à luta que viesse.”
O Conselho de Segurança da ONU conseguiu aprovar uma Resolução exigindo investigação completa por comissão internacional, do incidente da Flotilha, mas Telavive recusou-se a cooperar, insistindo em fazer investigação interna. Diz-se que o governo Obama teria conseguido um acordo: em troca do levantamento parcial do bloqueio de Gaza, Israel seria autorizada a investigar, ela mesma, sem interferência externa, os atos do próprio exército israelense.
Para o governo Obama, a autoinvestigação israelense seria “importante passo a frente” – mas não se sabe em que direção, exceto, claro, em direção à autoabsolvição. O ministro das Relações Exteriores da Turquia Ahmet Davutoglu declarou que “Não confiamos de modo algum que Israel, país que ataca comboio de barcos civis em águas internacionais, algum dia fará investigação imparcial de seus próprios atos.”
Considerado o simulacro de investigação que Israel fez depois do ataque contra Gaza no inverno de 2008-2009, seguido logo depois pela rejeição do Relatório Goldstone, promovido pela ONU – e vergonhosamente também rejeitado pelo Congresso dos EUA e pela Casa Branca – não cabe qualquer dúvida de que a nova investigação, iniciada dia 28/6 em Israel, tampouco levará a qualquer condenação de Israel, a menos que se mudassem as regras. Netanyahu disse recentemente que “a investigação demonstrará que os objetivos e os atos do Estado de Israel e do exército israelenses foram atos de legítima defesa, conforme os mais altos padrões internacionais”. Seria exatamente o que aconteceria, se tudo tivesse corrido como Israel previa.
Muitos intelectuais israelenses influentes duvidam dos resultados dessa autoinvestigação, e a mídia israelense ecoou muitas críticas sobre o modo como a investigação será feita – e mais críticas também se ouviram na mídia norte-americana, geralmente bem pouco crítica quando se trata de comentar atos do governo israelense. Para o jornal israelense Ha'aretz, a investigação “mais parece farsa, que investigação”. O Bloco da Paz, Gush Shalom, em requerimento à Corte Suprema, exigiu que a corte ampliasse o objeto da investigação e nomeasse comissão independente.
Então, segundo o Ha'aretz de 30/6, o juiz aposentado Yaakov Tirkel, nomeado para chefiar as investigações sobre os eventos da Flotilha da Paz “levou ao conhecimento do governo que a comissão não teria como fazer seu trabalho se não recebesse maiores poderes para investigar.” Recomendava que a comissão fosse convertida em “comissão de inquérito governamental com plenos poderes. Só assim a comissão terá autoridade para convocar testemunhas e requisitar documentos, alertar as testemunhas de que seus depoimentos implicam reais riscos para os que mentirem e contratar auditores especialistas em campos sensíveis.” Dia 4/7, o gabinete de Netanyahu aceitou introduzir algumas mudanças na comissão inicial de investigação. Dentre essas mudanças, destacam-se a autorização para convocar audit ores especialistas e a exigência de que as testemunhas deponham sob juramento. A investigação de fato ainda não começou e mantém-se como caso interno, submetida a vários impedimentos, dentre os quais, por exemplo, o impedimento de interrogar os soldados do exército que atacaram o Mavi Marmara.
O caso da Flotilha nada fez para melhorar as difíceis relações entre Netanyahu e Washington, motivo pelo qual ele mostrava-se tão ansioso por dar boa impressão ao encontrar-se com Obama na Casa Branca dia 6/7, o que o levou à disposição de ‘dar’ um pouco mais do que ‘tomar’, como sempre. Netanyahu disse que as negociações diretas com os palestinos podem começar ainda nesse verão, e pediu “passos concretos” para facilitar o processo de forma mais “robusta”.
Israel tem-se apresentado repetidamente como vítima de várias ameaças “existenciais” ao longo dos anos, a última das quais seria o Irã, mas, como já observamos, nenhuma ameaça existencial ameaça mais existencialmente o Estado sionista quanto a ameaça de perder o apoio irrestrito de Washington. Sabendo disso, Israel e seus dedicados apoiadores norte-americanos investem quantidades imensas de tempo e dinheiro para seduzir a opinião pública, trabalhando diligentemente para eleger deputados e senadores pró-Israel, e ativamente cultivando a própria imagem junto à Casa Branca e o Congresso dos EUA.
Apesar do incessante apoio que Israel continua a receber da Casa Branca, a maioria da população israelense desconfia do governo Obama, embora muitos judeus norte-americanos o apóiem. Por exemplo, segundo pesquisa feita em junho pelo Centro Mundial da Associação B'nai B'rith em Jerusalém, “65% dos judeus israelenses dizem que os judeus norte-americanos deveriam criticar mais a política de Obama para o Oriente Médio”. É conclusão obtida, em larga medida, de uma análise errada da política de Obama para o mundo muçulmano, de sua disposição para “conversar” com o Irã e resultado, também, da impaciência que Obama manifesta em relação a Netanyahu. Aqui, um resumo do que pensamos sobre esses três tópicos:
1. É óbvio que a abertura de Obama para o mundo muçulmano (no discurso do Cairo, há um ano) não passou de ato de relações públicas, que não implicou qualquer mudança na política dos EUA, além de uma mudança na retórica. O objetivo foi controlar a crescente oposição, pela comunidade religiosa islâmica, aos EUA – uma comunidade de mais de um bilhão de almas, num momento em que os EUA enfrentam guerras em vários países muçulmanos. O único objetivo da mudança de retórica foi, falando claramente, fortalecer o imperialismo norte-americano, muito mais do que enfraquecer Israel.
2. O tom de Obama em relação ao Irã é menos beligerante que o de Bush, porque as políticas de Obama (como as novas sanções) são tão agressivas quanto as de Bush. São, de fato, ainda mais agressivas, se se consideram o perigoso aumento de atividade da Marinha dos EUA no Golfo Persa e águas próximas, e o perigoso aumento no fluxo de provisões de guerra para a base dos EUA no Oceano Índico (que se discute na segunda parte, sobre os riscos que o Irã corre).
3. Obama espera pelo menos alguma pequena concessão de Netanyahu, quanto às construções em território ocupado, por exemplo, em troca da proteção de Washington –, mas o único objetivo de Obama é apertar o cerco contra os árabes.
O governo israelense está furioso com Washington também por causa do documento final que emergiu da reunião da ONU em maio, que durou um mês, para revisão do Tratado de Não-proliferação Nuclear, e que (1) exige que Israel assine o Tratado e (2) fixa a data para conferência regional, a acontecer em 2012, que discutirá a criação, no Oriente Médio, de território desnuclearizado. Quando a questão de Israel surgiu, na revisão do Tratado em 2005, uma das razões pelas quais não houve relatório final foi que o governo de George W Bush recusou-se a assinar qualquer documento em que houvesse qualquer referência a Israel.
Aqui está o problema de Israel: se assinar o Tratado de Não-Proliferação, Israel estará reconhecendo que possui enorme arsenal de armas nucleares, ou será acusado de boicotar o Tratado, o que também revelará ao mundo a quantidade astronômica de mentiras que Israel tem contado ao mundo, sobre suas armas nucleares. Além do mais, a conferência marcada para 2012, das nações do Oriente Médio, com certeza decidirá pelo banimento de todas as armas nucleares da Região – o que obrigará Israel a desmontar suas bombas atômicas, o que é pouco provável que Israel algum dia faça, ou exporá o Estado judeu como ‘bandido nuclear’. Há coisas demais em jogo, no plano político, nessa conferência nuclear, para que os EUA mais uma vez abortem todas as conclusões, perdendo espaço numa questão que é das que mais os EUA se empenham: o combat e à proliferação; tanto quanto é das questões que mais preocupam os EUA: não conseguir combater a proliferação nuclear. Os israelenses ficaram gravemente perturbados ao se verem postos entre a cruz e a caldeirinha nucleares. Para acalmá-los, os EUA divulgaram crítica à declaração da ONU por não ter explicitamente condenado o Irã, o qual, como todo o mundo sabe, não tem bombas atômicas.
Não só a Casa Branca, mas deputados e senadores, Democratas e Republicanos continuam a apoiar abertamente Israel, sem qualquer consideração à situação em que vivem os palestinos.
Em artigo publicado em meados de junho na sessão “Focus” da revista Foreign Policy, Stephen Zunes escreveu: “Líderes Democratas, além de seus colegas Republicanos, alinham-se no Congresso para defender o assalto israelense. Ao contrário do que dizem inúmeros especialistas internacionais, que o ataque foi flagrante violação de leis internacionais, importantes Democratas abraçaram a versão de que o ataque israelense (...) teria sido ato de legítima defesa. O movimento foi liderado, entre os Democratas, por Gary Ackerman, porta-voz não oficial dos deputados Democratas, sobre temas de política para o Oriente Médio. (...) Segundo Ackerman, as mortes foram “culpa e responsabilidade, completamente, dos que organizaram o comboio para romper o legítimo bloqueio que Israel e o Egito impuseram a o território de Gaza controlado por terroristas.”
No final de junho, 87% dos senadores norte-americanos e 307 dos 435 deputados assinaram carta enviada a Obama a propósito do ataque à Flotilha da Liberdade, em que declaravam “Apoiamos plenamente o direito de Israel à autodefesa”. Argumentavam que “os comandos israelenses que chegaram ao 6º navio [o Mavi Marmara] (...) foram brutalmente atacados com barras de ferro, facas e cacos de vidro. Foram obrigados a responder ao ataque, e lamentamos a perda de vidas que daí resultaram.”
A carta também elogiava a atitude de Obama “por evitar que o Conselho de Segurança da ONU aprovasse resolução injusta, que determinaria uma onda de recriminações pela comunidade internacional.”
Três nomes, no Congresso, empenharam-se muito na crítica ao ataque à Flotilha da Paz – Brian Baird, Keith Ellison e Dennis Kucinich. Kucinich escreveu carta a Obama em que diz: “Os EUA devem fazer ver a Israel [que] não se podem aceitar suas repetidas violações da legislação internacional (...) [nem] que o exército israelense atire contra e mate civis inocentes (...) [nem] que Israel mantenha um bloqueio que não permite a chegada a Gaza [nem] de um comboio de ajuda humanitária.”
Em abril, segundo artigo de Ben Smith em Politico, 76 senadores e 333 deputados “assinaram carta dirigida à secretária de Estado Hillary Clinton com reprimenda implícita ao governo Obama por adotar posição de confrontação em relação a Israel”, como se a Casa Branca não tivesse apoiado virtualmente todos os atos de Netanyahu, inclusive quanto apontou um dedo para o rosto de Obama ou publicamente ofendeu o vice-presidente Joseph Biden.
Nessa carta, os congressistas culpavam os palestinos pela interrupção das conversações e pela dificuldade para resolver questões cruciais, observando que “ao contrário disso, o primeiro-ministro de Israel declarou, abertamente, que está disposto a dar início a negociações de paz com os palestinos, sem impor qualquer condição”.
Os dois principais obstáculos à paz entre israelenses e palestinos são a decisão de Israel de não aceitar qualquer acordo, por legítimo que seja, que leve à criação de Estado palestino ou a qualquer solução de igualdade para os dois lados; e o apoio político, econômico e militar que Washington dá unilateralmente a Israel. Além desses, há outros dois importantes problemas que os palestinos também têm de enfrentar. [Continua]
Notas:
[1] Em http://en.wikipedia.org/wiki/Free_Gaza_Movement
[2] Em http://en.wikipedia.org/wiki/IHH_(Turkish_NGO)
O artigo original, em inglês, pode ser lido em: ISRAEL, PALESTINE AFTER THE FLOTILLA, Part 1 - Change is in the wind
Jack A. Smith é editor de Activist Newsletter e ex-editor de Guardian Radical Newsweekly.
Recebe e-mails em jacdon@earthlink.net
Há momentos no mundo político, em que incidente relativamente pequeno desencadeia eventos importantíssimos, dependendo das circunstâncias. Como ensina o provérbio chinês: “Uma pequena fagulha incendeia as pradarias” – sobretudo quando há vento forte e as pradarias estão secas.
Essa analogia ocorre-me agora, depois do violento ataque pelo exército de Israel a seis barcos que conduziam cerca de 700 pessoas da Flotilha da Paz, que tentavam levar ajuda humanitária a Gaza, no Mediterrâneo, há pouco mais de um mês. Foram mortos nove cidadãos turcos, defensores dos direitos humanos dos palestinos, e feridos mais de 50.
É possível que esse incidente represente o início de mudança substancial para os palestinos, israelenses e todo o Oriente Médio? Acreditamos que sim. E já começou. No mínimo, as condições estão maduras para mudar.
Depois de três anos de sanções e bloqueio cada dia mais duros contra 1,5 milhão de palestinos confinados na Faixa de Gaza, Israel está sendo forçada a diminuir o bloqueio, até aqui praticamente total. Não por decisão da ONU ou por resultado de reunião entre as grandes potências para que se alcance algum acordo. O bloqueio israelense está sendo derrotado pela ação de um movimento popular.
O uso de extrema violência por Israel, em águas internacionais, contra barcos civis que viajavam em missão humanitária para ajudar um povo que vive em sofrimento, levantou uma maré de críticas, de todos os lados, contra Israel. Como faz sempre, o Estado judeu tentou apresentar-se como vítima. Foi onde se começou a ver que os tempos mudaram; que as vítimas de ontem, pelas quais a humanidade ainda chora, passaram ao papel de carrascos de hoje. A Israel de hoje exige 10, 50, cem olhos, por cada olho.
Muito da revolta que se viu mês passado em todo o mundo, dirigida contra o governo de Israel, começou a acumular-se quando Israel atacou o Líbano e Gaza no verão de 2006. Cresceu depois do ataque violento, que se arrastou por três semanas, contra a população indefesa de Gaza, no final de dezembro de 2008. Com o ataque sinistro contra a Flotilha da Paz, a crítica que se acumulava, explodiu.
E agora? Ante o fiasco que foi a agressão aos barcos de pacifistas e a desaprovação pública, Israel viu-se obrigada a fazer algumas concessões ao chamado ‘Quarteto’ (ONU, União Europeia, EUA e Rússia, grupo formado há oito anos para tentar equacionar e superar as diferenças entre Israel e palestinos, com vistas a estabelecer dois Estados).
O governo de Barack Obama dá apoio político e militar a Israel. A ajuda anual que os EUA dão a Israel foi aumentada recentemente para 3 bilhões de dólares, que começarão a chover sobre Israel a partir de outubro. Pois até o governo Obama já começa a ver que a violência desmedida dos israelenses; a ocupação ilegal da Cisjordânia (onde vivem 2,8 milhões de palestinos); e a evidência de que Israel não admitirá que se crie um Estado palestino estão minando a hegemonia dos EUA no Oriente Médio e comprometem os próprios interesses dos EUA em todo o mundo.
Obama recusou-se a condenar Israel por atirar contra civis desarmados em águas internacionais; limitou-se à lamentação: “os EUA lamentam profundamente as vidas perdidas e os feridos”. A Casa Branca tampouco usou o poder que tem, para impedir definitivamente que Israel continue a construir unidades de moradias exclusivas para judeus em territórios ocupados ilegalmente e roubados dos palestinos há 43 anos; e a Casa Branca tampouco cogita obrigar Israel a retirar-se das áreas ilegalmente ocupadas na Cisjordânia.
O governo de Netanyahu, coalizão com a extrema direita e religiosos ultra-ortodoxos, não cogita por fim à colonização da Palestina; não pensa em por fim às construções em territórios ocupados; não pensa em sair da Cisjordânia ocupada; nem jamais trabalhou ou trabalhará para a criação de qualquer Estado palestino. Setores religiosos insistem na crença de que Israel teria sido dada “por Deus” aos judeus. (Palestinos que ‘contra-argumentem’ que a mesma terra foi dada por Deus, não aos judeus, mas aos muçulmanos, são considerados “fanáticos religiosos islâmicos”... pelos fanáticos religiosos judeus).
Nesse ensaio, discutiremos em detalhe alguns desses pontos, analisaremos as ações de Obama e do Congresso dos EUA, exploraremos o papel da Turquia e do Irã, a divisão entre os partidos Fatah e Hamas, a desunião no mundo árabe, e anteciparemos alguns desenvolvimentos em todo o Oriente Médio.
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O povo da Faixa de Gaza continua a sofrer sanções e outras indignidades, mas a dor de viver sob bloqueio total e virtual prisão coletiva começa a diminuir nessa estreita faixa de território, de apenas 40km de comprimento na costa mediterrânea, definida, em 1949 para acomodar alguns dos refugiados palestinos expulsos para que ali fosse criado o Estado de Israel.
As principais organizações de direitos humanos em todo o mundo consideram bem-vindo qualquer levantamento parcial do bloqueio, mas exige que seja completamente cancelado. Para a Anistia Internacional: “O anúncio de que o bloqueio será parcialmente levantado evidencia que Israel não tem qualquer intenção de por fim à punição coletiva da população civil que vive em Gaza, e apenas a ‘suaviza’, e só parcialmente. É dever de Israel cumprir integralmente seus deveres como poder ocupante nos termos da legislação internacional, e cancelar completamente o bloqueio.”
A Agência da ONU para Ajuda Humanitária e Socorro, que supervisiona e atende a comunidade de refugiados palestinos, declarou dia 20/6, por seu porta-voz Christopher Guinness: “É necessário que esse bloqueio seja completamente cancelado. (...) A estratégia israelense é induzir a comunidade internacional a discutir sacos de cimento, mais sacos aqui, menos sacos acolá, para um projeto aqui ou outro acolá. O que importa é nos dar pleno acesso, sem qualquer restrição, em todos os postos de passagem e, atualmente, de controle.”
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha, que raramente se manifesta sobre assuntos específicos, exigiu, em manifestação datada de 14/6, o fim completo do bloqueio, observando que o embargo já destruiu a economia nos territórios ocupados e já arruinou o sistema público de saúde.
A pequena diminuição nas sanções impostas aos palestinos não muda os objetivos políticos do governo de Israel. De modo geral, os objetivos de Israel são: destruir o Hamás (Partido do Movimento da Resistência Islâmica) que governa Gaza; dominar e manipular a Autoridade Nacional Palestina (ANP, que governa a Cisjordânia) e o Fatah (Partido do Movimento de Libertação da Palestina que controla a ANP); manter em terras palestinas suas forças de ocupação e as colônias ilegais exclusivas para judeus; e expulsar de Jerusalém toda a população árabe, processo conhecido como de “judaicização” de Jerusalém.
O objetivo de Netanyahu é manter os palestinos sob condições de jugo neocolonial pelo maior tempo possível. O real desejo do governo da coalizão de direita é manter pelo maior tempo possível o processo de apropriar-se da maior quantidade possível de terras palestinas. Há alguns anos, o Quarteto estimulou Israel a trabalhar na direção de uma “Solução de Dois Estados” até 2012, mas o governo atual tem criado inúmeros obstáculos a qualquer acordo equitativo e dedica-se a adiar qualquer acordo pelo tempo mais longo possível.
Dia 29/6/, o ministro do Exterior Avigdor Lieberman anunciou que “não há qualquer chance” de cumprir-se o prazo de 2012. Há algum tempo, dissera que consideraria a ideia de dois Estados se os 1,3 milhões de árabes que vivem em Israel – como cidadãos de segunda classe em sua própria terra fossem tirados de lá e depositados em território palestino, condição que ninguém sequer considerará. O partido de Lieberman, Yisrael Beiteinu [Israel, nosso lar], já sugeriu que os israelenses árabes seriam “desleais” e dever-se-ia revogar sua cidadania israelense. “Sem lealdade, sem cidadania” foi um de seus slogans de campanha eleitoral no que, para os apoiadores de Lieberman, seria “a única democracia no Oriente Médio”.
Mahmoud Abbas, presidente da ANP, falou por três horas com jornalistas da imprensa israelense, em Ramallah, semana passada. Em editorial, o Jerusalem Post de 1/7, avaliou que o evento “pode ser visto como tentativa – provavelmente fortemente estimulada pelos EUA – de falar diretamente ao público israelense. Abbas nada disse de especialmente novo. Mas a impressão que ficou é que Abbas parece ter convencido os EUA de que, sim, está pronto a iniciar negociações sobre questões-chave de segurança e sobre fronteiras. E que todos os obstáculos a qualquer negociação – de fato, uma muralha de silêncio – são obra do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. “Estamos à espera de que Netanyahu nos dê qualquer sinal de que quer negociar” – disse Abbas.
Dois partidos políticos mais moderados – o Kadima, autodefinido “de centro”, mas que trabalha com a direita, é hoje o maior partido no Parlamento (Knesset); e o Partido Labor (‘trabalhista’), que ainda carrega rótulo de partido de ‘centro-esquerda’ mas opera como de direira, e de ultradireita no que tenha a ver com palestinos – parecem mais sensíveis à Solução dos Dois Estados. Mas nem um nem outro jamais manifestou qualquer forte empenho em criar algum Estado palestino independente. E nenhum dos partidos israelenses dá crédito à ideia defendida por alguns de criar-se um único Estado israelense-palestino, com unidade progressista, multiétnica, multirreligiosa, de real igualdade entre todos e mútuo benefício para todos.
Diz-se que Obama estaria considerando a ideia de propor “um Estado palestino democrático, independente e contínuo” o qual – “para garantir a segurança de Israel” – seria impedido de manter exército ou de estabelecer qualquer pacto de mútua segurança com qualquer outro país. Considerada a história recente de Israel, carregada de ataques militares violentos contra Estados vizinhos, é claro que se tem de fazer a pergunta que ninguém fez: e quanto à segurança dos palestinos?
Netanyahu, por sua vez, evidentemente nada aprendeu das críticas de todo o mundo contra o terrível bloqueio contra Gaza e contra o ataque à Flotilha da Paz. Em recente fala ao Parlamento, disse que “querem nos roubar o direito natural de nos defender. Se nos defendemos contra os foguetes do Hamás, nos acusam de crimes de guerra. Não podemos nos defender nem atirar nos inimigos que atiram em nós, num barco, sem que nos acusem de crime de guerra.”
Uri Avnery, líder do movimento Gush Shalom, “Bloco da Paz Israelense”, vê as coisas de outro modo, como escreveu dia 19/6: “Já há anos, o mundo vê o Estado de Israel todos os dias na tela da TV e nas manchetes dos jornais, sempre mostrado como soldados pesadamente armados que atiram contra crianças que se defendem com pedras; como aviões que lançam bombas de fósforo sobre quarteirões residenciais; como helicópteros que assassinam “alvos preferenciais”. Agora, verão Israel também como nação de piratas que atacam barcos civis em águas internacionais. E as imagens de mulheres aterrorizadas, carregando filhos feridos; homens com pernas arrancadas; casas em ruínas. Se o que Israel tem para mostrar é isso, sempre isso e só isso, é claro que, aos olhos do mundo, Israel converteu-se em monstro.”
Comentando as ações do governo israelense, a revista conservadora The Economist escreveu, dia 5/6: “Israel está presa num círculo vicioso. Quanto mais os linha-duras pensam e repetem que o mundo os odeia, mais rapidamente os linha-dura puxam o gatilho, matam primeiro para perguntar depois, e mais verão o mundo como território sempre inimigo (...). [Netanyahu] não dá a impressão de reservar qualquer espaço para que se pensem as vantagens da paz.”
A revista Time, dia 21/6, dizia: “Além de ter fraturado as relações entre o Estado judeu e a Turquia, seu mais importante aliado muçulmano, e de não contribuir para o esforço de aproximação do governo Obama em Washington, seu sempre principal aliado, o ataque à Flotilha da Paz obriga a considerar o tipo de democracia em que Israel converteu-se: conspicuamente beligerante, sempre rápida na direção de solução militar para todos os problemas que surjam – e fazendo papel cada vez mais lastimável também na solução militar.”
Romper o bloqueio
O bloqueio que Israel mantém contra Gaza é ato de punição coletiva de um povo inteiro – proibido e considerado ilegal na jurisprudência –, lançado inicialmente para castigar os eleitores de Gaza que democraticamente elegeram o partido islâmico Hamás, nas eleições parlamentares de janeiro de 2006. Israel e os EUA apoiavam os candidatos da Autoridade Nacional Palestina, herdeiros da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) e coalizão de partidos políticos sob a liderança do partido Fatah.
As sanções foram convertidas em sítio criminoso um ano depois de o Hamás ter derrotado o Fatah, numa, de fato, guerra civil em Gaza, apesar de os EUA terem dado 60 milhões de dólares ao Fatah para comprar armas e treinar militantes com o objetivo declarado de esmagar o Hamás. Desde essa época, o Hamás governa Gaza e a ANP governa a Cisjordânia, com apoio ocasional de Washington e Telavive.
O bloqueio foi tão severo que toda a população de Gaza passou a viver, de fato, como numa prisão a céu aberto, em pequeno território, durante os últimos dois anos. Apesar de vários tipos de alimentos terem entrada proibida em Gaza, e da queda na quantidade de calorias ingeridas, ninguém morreu de fome. O bloqueio foi planejado, provavelmente, para chegar só até onde chegou. O povo de Gaza sobreviveu sem papel, sabão, cimento, colchões, máquinas em geral, brinquedos e mais uma centena de itens. Cimento é item de especial importância, porque praticamente todas as casas e prédios em Gaza foram destruídos ou semidestruídos pelo exército israelense – residências, prédios comerciais, fábricas e prédios oficiais.
A Associated Press noticiou que Israel anunciara dia 5/7 que levantaria a proibição de quase todos os itens de consumo, mas que “manteria proibidos itens de consumo diário (praticamente todos) e materiais de construção em geral, inclusive cimento. As novas regras dificilmente contribuirão para reconstruir a economia devastada do território, nem permitirão que se reconstruam ou reparem os prédios destruídos e danificados na guerra do ano passado”. O Hamás denunciou as novas regras.
Israel, superpotência militar no Oriente Médio, atacou, no verão de 2006, em rápida guerra punitiva, o Líbano e Gaza – ataque que gerou críticas em todo o mundo. A opinião pública foi outra vez ultrajada em dezembro de 2008, quando o exército israelense outra vez atacou Gaza, ostensivamente como retaliação a ataque com foguetes do Hamás. Massacrou 1.417 palestinos, a maioria dos quais civis, e feriu 5.500. Do lado de Israel, morreram 14, praticamente todos militares. (O Hamás estava mantendo um cessar-fogo acordado há meses; Israel quebrou esse acordo de cessar-fogo; o argumento dos israelenses, de que estariam respondendo aos ‘foguetes’ do Hamás, absolutamente não faz sentido algum, como logo observaram vários grupos, militantes e intelectuais da luta anticolonialismos.)
O suplício da população que vive em Gaza gerou apoio para os palestinos em todo o mundo.
O Movimento Gaza Livre [ing. Free Gaza Movement[1]], coalizão de grupos de ação pró-palestinos, organizou nove tentativas de furar o bloqueio israelense, enviando barcos com ajuda humanitária para Gaza, entre agosto de 2008 e 31/5/2010. Nenhum barco jamais carregou armas de qualquer tipo. Todos foram atacados por Israel, empenhada em manter seu projeto de privação em massa, usado como instrumento de coerção pelo Estado.
Em maio desse ano, o Movimento Gaza Livre reuniu-se à Fundação Turca pelos Direitos e Liberdades Humanos e Ajuda Humanitária [ing. The Foundation for Human Rights and Freedoms and Humanitarian Relief, IHH[2]] e organizou o envio, para Gaza, de seis barcos e 663 militantes pró-Palestina de diferentes países, com o objetivo de furar o bloqueio. Os barcos, carregados com toneladas de produtos, reunir am-se em comboio ao largo da ilha de Chipre, no Mediterrâneo e partiram para Gaza, dia 30/5. Vários passageiros eram militantes treinados para ações de resistência não-violenta. Nenhum viajava armado ou com bombas.
Navios e helicópteros militares israelenses abordaram a flotilha em águas internacionais, a cerca de 100km do litoral da Faixa de Gaza. Deve-se considerar que, ainda que os barcos já tivessem entrado em águas territoriais, seriam águas territoriais de Gaza, não território israelense. Comandos fortemente armados das Forças Especiais do exército israelense abordaram ilegalmente os barcos da Flotilha da Paz e assumiram o comando. Cinco dos barcos foram rapidamente dominados, sem mortes de passageiros.
O sexto barco e, de longe, o maior deles, o Mavi Marmara, comprado no início do ano pela organização IHH, foi abordado por comandos que desceram de helicópteros, ao mesmo tempo em que o barco era cercado por botes de alta velocidade. Alguns passageiros resistiram à invasão, no pleno direito, de qualquer cidadão, de resistir a ataque noturno em águas internacionais e pagaram com a vida. São heróis da paz.
Os assaltantes israelenses atiraram e mataram nove pessoas – vários à queima roupa, o que caracteriza assassinato ou execução. Um dos mortos, cidadão turco-norte-americano, Furkan Dogan, tinha 19 anos. É provável que vários dos mortos e feridos tenham sido agredidos sem manifestar qualquer gesto de resistência. Um sargento israelense, que se vangloriou de haver matado seis civis, disse que todos seriam “terroristas”.
O governo de Israel não planejara matar militantes da Flotilha da Paz. Mas acabou por criar uma situação na qual, se apenas um detalhe daquele ato de agressão não saísse exatamente como deveria sair, tudo escaparia ao controle e daria gravemente errado, como deu. Por que o secretário de Defesa Ehud Barak, autor da famosa frase-propaganda segundo a qual o exército de Israel seria “o mais moral dos exércitos do mundo”, insiste que os comandos foram instruídos a responder racionalmente, ante a possibilidade de resistência não-armada de alguns passageiros?
Imediatamente Israel foi soterrada por mensagens de crítica vindas de todo o planeta; depois das violações repetidas aos direitos humanos dos palestinos, o ataque a tiros contra movimento de pacifistas e agentes humanitários. Em resposta, o aparato de propaganda do governo de Netanyahu disparou uma pletora de autojustificativas – praticamente só mentiras ou, no mínimo, visíveis exageros, mas evidentemente suficientes e satisfatórias para a Casa Branca e o Congresso dos EUA.
O mundo ouviu contar que os assaltantes israelenses super armados teriam sido “linchados”. Que foram espancados com “porretes”. Que havia 50 “soldados turcos” a bordo do Mavi Marmara, informação logo substituída por “75 mercenários da al-Qaeda”. O barco, disse Netanyahu, seria uma “nave do ódio”. Defensores de Israel nos EUA ainda preferem acreditar nesses e noutros contos fantásticos. Sendo assim, seria de esperar que aqueles 75 membros da al-Qaeda seriam presos, levados para Israel e metidos na prisão. Mas, não. Ninguém foi preso – nenhum dos “linchadores” de inocentes soldados israelenses, nem os “espancadores”, nem os “soldados turcos”, nem os “mercenários terroristas”.
Ao saber do ataque aos ativistas por comandos israelenses armados, a poeta norte-americana Alice Walker escreveu em apoio aos “ativistas pacifistas que levavam ajuda a Gaza e que tentaram espantar os agressores usando cadeiras e bastões. Estou grata por me ensinarem o verdadeiro sentido da bondade. Sei que os militantes da Flotilha da Paz estão entre as mais bondosas pessoas que há no mundo: não se calaram ante o sofrimento alheio, não se omitiram ao saber do sofrimento brutal dos palestinos e ofereceram-se sem armas exceto o próprio corpo, à luta que viesse.”
O Conselho de Segurança da ONU conseguiu aprovar uma Resolução exigindo investigação completa por comissão internacional, do incidente da Flotilha, mas Telavive recusou-se a cooperar, insistindo em fazer investigação interna. Diz-se que o governo Obama teria conseguido um acordo: em troca do levantamento parcial do bloqueio de Gaza, Israel seria autorizada a investigar, ela mesma, sem interferência externa, os atos do próprio exército israelense.
Para o governo Obama, a autoinvestigação israelense seria “importante passo a frente” – mas não se sabe em que direção, exceto, claro, em direção à autoabsolvição. O ministro das Relações Exteriores da Turquia Ahmet Davutoglu declarou que “Não confiamos de modo algum que Israel, país que ataca comboio de barcos civis em águas internacionais, algum dia fará investigação imparcial de seus próprios atos.”
Considerado o simulacro de investigação que Israel fez depois do ataque contra Gaza no inverno de 2008-2009, seguido logo depois pela rejeição do Relatório Goldstone, promovido pela ONU – e vergonhosamente também rejeitado pelo Congresso dos EUA e pela Casa Branca – não cabe qualquer dúvida de que a nova investigação, iniciada dia 28/6 em Israel, tampouco levará a qualquer condenação de Israel, a menos que se mudassem as regras. Netanyahu disse recentemente que “a investigação demonstrará que os objetivos e os atos do Estado de Israel e do exército israelenses foram atos de legítima defesa, conforme os mais altos padrões internacionais”. Seria exatamente o que aconteceria, se tudo tivesse corrido como Israel previa.
Muitos intelectuais israelenses influentes duvidam dos resultados dessa autoinvestigação, e a mídia israelense ecoou muitas críticas sobre o modo como a investigação será feita – e mais críticas também se ouviram na mídia norte-americana, geralmente bem pouco crítica quando se trata de comentar atos do governo israelense. Para o jornal israelense Ha'aretz, a investigação “mais parece farsa, que investigação”. O Bloco da Paz, Gush Shalom, em requerimento à Corte Suprema, exigiu que a corte ampliasse o objeto da investigação e nomeasse comissão independente.
Então, segundo o Ha'aretz de 30/6, o juiz aposentado Yaakov Tirkel, nomeado para chefiar as investigações sobre os eventos da Flotilha da Paz “levou ao conhecimento do governo que a comissão não teria como fazer seu trabalho se não recebesse maiores poderes para investigar.” Recomendava que a comissão fosse convertida em “comissão de inquérito governamental com plenos poderes. Só assim a comissão terá autoridade para convocar testemunhas e requisitar documentos, alertar as testemunhas de que seus depoimentos implicam reais riscos para os que mentirem e contratar auditores especialistas em campos sensíveis.” Dia 4/7, o gabinete de Netanyahu aceitou introduzir algumas mudanças na comissão inicial de investigação. Dentre essas mudanças, destacam-se a autorização para convocar audit ores especialistas e a exigência de que as testemunhas deponham sob juramento. A investigação de fato ainda não começou e mantém-se como caso interno, submetida a vários impedimentos, dentre os quais, por exemplo, o impedimento de interrogar os soldados do exército que atacaram o Mavi Marmara.
O caso da Flotilha nada fez para melhorar as difíceis relações entre Netanyahu e Washington, motivo pelo qual ele mostrava-se tão ansioso por dar boa impressão ao encontrar-se com Obama na Casa Branca dia 6/7, o que o levou à disposição de ‘dar’ um pouco mais do que ‘tomar’, como sempre. Netanyahu disse que as negociações diretas com os palestinos podem começar ainda nesse verão, e pediu “passos concretos” para facilitar o processo de forma mais “robusta”.
Israel tem-se apresentado repetidamente como vítima de várias ameaças “existenciais” ao longo dos anos, a última das quais seria o Irã, mas, como já observamos, nenhuma ameaça existencial ameaça mais existencialmente o Estado sionista quanto a ameaça de perder o apoio irrestrito de Washington. Sabendo disso, Israel e seus dedicados apoiadores norte-americanos investem quantidades imensas de tempo e dinheiro para seduzir a opinião pública, trabalhando diligentemente para eleger deputados e senadores pró-Israel, e ativamente cultivando a própria imagem junto à Casa Branca e o Congresso dos EUA.
Apesar do incessante apoio que Israel continua a receber da Casa Branca, a maioria da população israelense desconfia do governo Obama, embora muitos judeus norte-americanos o apóiem. Por exemplo, segundo pesquisa feita em junho pelo Centro Mundial da Associação B'nai B'rith em Jerusalém, “65% dos judeus israelenses dizem que os judeus norte-americanos deveriam criticar mais a política de Obama para o Oriente Médio”. É conclusão obtida, em larga medida, de uma análise errada da política de Obama para o mundo muçulmano, de sua disposição para “conversar” com o Irã e resultado, também, da impaciência que Obama manifesta em relação a Netanyahu. Aqui, um resumo do que pensamos sobre esses três tópicos:
1. É óbvio que a abertura de Obama para o mundo muçulmano (no discurso do Cairo, há um ano) não passou de ato de relações públicas, que não implicou qualquer mudança na política dos EUA, além de uma mudança na retórica. O objetivo foi controlar a crescente oposição, pela comunidade religiosa islâmica, aos EUA – uma comunidade de mais de um bilhão de almas, num momento em que os EUA enfrentam guerras em vários países muçulmanos. O único objetivo da mudança de retórica foi, falando claramente, fortalecer o imperialismo norte-americano, muito mais do que enfraquecer Israel.
2. O tom de Obama em relação ao Irã é menos beligerante que o de Bush, porque as políticas de Obama (como as novas sanções) são tão agressivas quanto as de Bush. São, de fato, ainda mais agressivas, se se consideram o perigoso aumento de atividade da Marinha dos EUA no Golfo Persa e águas próximas, e o perigoso aumento no fluxo de provisões de guerra para a base dos EUA no Oceano Índico (que se discute na segunda parte, sobre os riscos que o Irã corre).
3. Obama espera pelo menos alguma pequena concessão de Netanyahu, quanto às construções em território ocupado, por exemplo, em troca da proteção de Washington –, mas o único objetivo de Obama é apertar o cerco contra os árabes.
O governo israelense está furioso com Washington também por causa do documento final que emergiu da reunião da ONU em maio, que durou um mês, para revisão do Tratado de Não-proliferação Nuclear, e que (1) exige que Israel assine o Tratado e (2) fixa a data para conferência regional, a acontecer em 2012, que discutirá a criação, no Oriente Médio, de território desnuclearizado. Quando a questão de Israel surgiu, na revisão do Tratado em 2005, uma das razões pelas quais não houve relatório final foi que o governo de George W Bush recusou-se a assinar qualquer documento em que houvesse qualquer referência a Israel.
Aqui está o problema de Israel: se assinar o Tratado de Não-Proliferação, Israel estará reconhecendo que possui enorme arsenal de armas nucleares, ou será acusado de boicotar o Tratado, o que também revelará ao mundo a quantidade astronômica de mentiras que Israel tem contado ao mundo, sobre suas armas nucleares. Além do mais, a conferência marcada para 2012, das nações do Oriente Médio, com certeza decidirá pelo banimento de todas as armas nucleares da Região – o que obrigará Israel a desmontar suas bombas atômicas, o que é pouco provável que Israel algum dia faça, ou exporá o Estado judeu como ‘bandido nuclear’. Há coisas demais em jogo, no plano político, nessa conferência nuclear, para que os EUA mais uma vez abortem todas as conclusões, perdendo espaço numa questão que é das que mais os EUA se empenham: o combat e à proliferação; tanto quanto é das questões que mais preocupam os EUA: não conseguir combater a proliferação nuclear. Os israelenses ficaram gravemente perturbados ao se verem postos entre a cruz e a caldeirinha nucleares. Para acalmá-los, os EUA divulgaram crítica à declaração da ONU por não ter explicitamente condenado o Irã, o qual, como todo o mundo sabe, não tem bombas atômicas.
Não só a Casa Branca, mas deputados e senadores, Democratas e Republicanos continuam a apoiar abertamente Israel, sem qualquer consideração à situação em que vivem os palestinos.
Em artigo publicado em meados de junho na sessão “Focus” da revista Foreign Policy, Stephen Zunes escreveu: “Líderes Democratas, além de seus colegas Republicanos, alinham-se no Congresso para defender o assalto israelense. Ao contrário do que dizem inúmeros especialistas internacionais, que o ataque foi flagrante violação de leis internacionais, importantes Democratas abraçaram a versão de que o ataque israelense (...) teria sido ato de legítima defesa. O movimento foi liderado, entre os Democratas, por Gary Ackerman, porta-voz não oficial dos deputados Democratas, sobre temas de política para o Oriente Médio. (...) Segundo Ackerman, as mortes foram “culpa e responsabilidade, completamente, dos que organizaram o comboio para romper o legítimo bloqueio que Israel e o Egito impuseram a o território de Gaza controlado por terroristas.”
No final de junho, 87% dos senadores norte-americanos e 307 dos 435 deputados assinaram carta enviada a Obama a propósito do ataque à Flotilha da Liberdade, em que declaravam “Apoiamos plenamente o direito de Israel à autodefesa”. Argumentavam que “os comandos israelenses que chegaram ao 6º navio [o Mavi Marmara] (...) foram brutalmente atacados com barras de ferro, facas e cacos de vidro. Foram obrigados a responder ao ataque, e lamentamos a perda de vidas que daí resultaram.”
A carta também elogiava a atitude de Obama “por evitar que o Conselho de Segurança da ONU aprovasse resolução injusta, que determinaria uma onda de recriminações pela comunidade internacional.”
Três nomes, no Congresso, empenharam-se muito na crítica ao ataque à Flotilha da Paz – Brian Baird, Keith Ellison e Dennis Kucinich. Kucinich escreveu carta a Obama em que diz: “Os EUA devem fazer ver a Israel [que] não se podem aceitar suas repetidas violações da legislação internacional (...) [nem] que o exército israelense atire contra e mate civis inocentes (...) [nem] que Israel mantenha um bloqueio que não permite a chegada a Gaza [nem] de um comboio de ajuda humanitária.”
Em abril, segundo artigo de Ben Smith em Politico, 76 senadores e 333 deputados “assinaram carta dirigida à secretária de Estado Hillary Clinton com reprimenda implícita ao governo Obama por adotar posição de confrontação em relação a Israel”, como se a Casa Branca não tivesse apoiado virtualmente todos os atos de Netanyahu, inclusive quanto apontou um dedo para o rosto de Obama ou publicamente ofendeu o vice-presidente Joseph Biden.
Nessa carta, os congressistas culpavam os palestinos pela interrupção das conversações e pela dificuldade para resolver questões cruciais, observando que “ao contrário disso, o primeiro-ministro de Israel declarou, abertamente, que está disposto a dar início a negociações de paz com os palestinos, sem impor qualquer condição”.
Os dois principais obstáculos à paz entre israelenses e palestinos são a decisão de Israel de não aceitar qualquer acordo, por legítimo que seja, que leve à criação de Estado palestino ou a qualquer solução de igualdade para os dois lados; e o apoio político, econômico e militar que Washington dá unilateralmente a Israel. Além desses, há outros dois importantes problemas que os palestinos também têm de enfrentar. [Continua]
Notas:
[1] Em http://en.wikipedia.org/wiki/Free_Gaza_Movement
[2] Em http://en.wikipedia.org/wiki/IHH_(Turkish_NGO)
O artigo original, em inglês, pode ser lido em: ISRAEL, PALESTINE AFTER THE FLOTILLA, Part 1 - Change is in the wind