Entre as mensagens que recebi, depois daqueles 3 artigos sobre "A falsa história nas escolas militares", está o depoimento que copio a seguir. Considero-o de importância histórica por revelar dados que até então não eram conhecidos. Como o assassinato de pessoas desarmadas pelas costas, por exemplo. O autor me autorizou a divulgar como desejasse este depoimento.
Urariano
Depoimento sobre o golpe de 1964
José Emílio Gomes
Considerando que:
a- diante da retórica dos opositores ao atual governo - note-se, não votei no Lula -, notadamente alguns oficiais reformados das forças armadas, saudosistas do golpe de 64, que, em pleno 2010, voltam com mesmo blá-blá-blá de que quem pensa diferente deles e do establishment anglo-americano é comunista, terrorista, subversivo, etc...;
b- diante da forma distorcida como a grande mídia brasileira, logo após o golpe de 64, relatou os acontecimentos de março e do dia 1o. de abril de 1964, e alguns ainda o fazem hoje;
c- diante da forma como o período de 1961 a 1964 foi passado para a história do Brasil, sendo transmitido aos jovens das escolas civis e, mais acentuadamente aos alunos das escolas militares, somente sob a ótica dos “vencedores”, tratados como heróis, enquanto aos perdedores (talvez os verdadeiros brasileiros) restou as denominações de subversivos, terroristas, assassinos, covardes, comunistas, criminosos de lesa-pátria, etc...;
optei por, pela primeira vez em minha vida, expor por escrito como vi e convivi naquele conturbado período, quando, simultaneamente, era empregado de uma multinacional, era vestibulando de engenharia, era aluno do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército e participava das atividades estudantis UNE no Rio de Janeiro - nos dias de hoje, isso seria considerado um contra-censo, mas era a realidade.
Por isso, passo a expor alguns fatos e acontecimentos que marcaram a minha vida na juventude e que me provocam revolta ao ver como foram passadas para os mais jovens a história do Brasil naquele período e modo como tratam de heróis os adeptos do golpe e de “traíras” (e outros adjetivos já citados) os que se opuseram ao mesmo, quando a verdade pode muito bem ser o oposto.
Em dezembro de 1962 ingressei no CPOR do RJ e, logo no início de 1963, eu, minha mãe e irmãs, nos mudamos para um apartamento maior no bairro da Glória, onde conheci e me tornei amigo de um vizinho que era Capitão do Exército (Cap. Collares), com o qual conversava praticamente só sobre política, nos sábados e domingos, na Praia do Calabouço. Igualmente, no quartel, muito se conversava sobre política nacional e mundial. Tanto que o Coronel Comandante do CPOR (não recordo o nome), na parada matinal, sempre aduzia aos seus pronunciamentos assuntos da política nacional, com constantes elogios ao Governador do Estado de Pernambuco, Miguel Arraes, e ao próprio Presidente da República, João Goula rt. Observava-se um clima altamente democrático no meio militar, pelo menos no que tange ao respeito às autoridades democraticamente constituídas.
Nos últimos meses de 1963, o Capitão Collares me confidenciou que membros do Alto Comando das Forças Armadas estariam preparando um golpe para depor o Presidente João Goulart e que, por isso, estariam sendo criados grupos de combate (os famosos grupos dos 11) para reação contra o suposto golpe. Esses grupos estariam sendo coordenados pelo então Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. O Capitão Collares era o comandante de um desses grupos e me convidou para integrá-los. Embora concordasse com essa ação para a defesa das instituições constituídas, me esquivei de participar em razão de ser arrimo de família e ter que trabalhar para manter minha mãe e irmãs. Mas atuei na retaguarda desses grupos mediante um trabalho de conscientização da situação junto aos colegas de trabalho (na multinacional), juntos aos colegas do vestibular e junto a alguns colegas do quartel, grande parte dos quais eram filhos da elite e, declaradamente, contra as políticas sociais e de autodeterminação do Governo Goulart.
De fato, as coisas começaram a ficar complicadas, e, no 13 de março de 1964, tive a primeira experiência de que havia uma forte cisão nas Forças Armadas, pois, para evitar que o Comício da Central tivesse repercussão, o Exército deslocou uma tropa para a Central do Brasil com o objetivo de, na base da porrada, dissipar a multidão que se deslocava pela Av. Presidente Vargas para assistir ao comício. Eu, que fora dispensado do trabalho mais cedo, me dirigia à casa, quando, ao ver tão imensa multidão, não resisti e me dirigi à Central do Brasil também.
Foi o primeiro ato de covardia, por parte do Exército, que assisti. Centenas de soldados, comandados por um Sargento, espancavam com enormes cassetetes os trabalhadores e estudantes que seguiam em direção à Central do Brasil, tentando esvaziar o Comício. Me revoltei com a atitude daquela tropa e, usando a minha identidade militar, convoquei o Sargento e ordenei que toda a tropa tomasse “posição de sentido”, solicitando ao Sargento que me colocasse à frente do oficial que ordenou aquele ato covarde contra o seu povo (ou seu inimigo ?). A multidão se postou em frente à tropa perfilada, demonstrando espanto pela atitude por mim tomada. Foi quando voltou o Sargento acompanhado de um Capitão que, sem permitir qualquer ação de minha parte, me aplicou uma gravata e me levou, junto com o Sargento, arrastado para dentro do então Ministério da Guerra. Inaugurei uma cela que, em poucas horas, estava completamente lotada por aqueles que protestavam da ação covarde do Exército na Av. Presidente Vargas. Fiquei detido por dois dias até que, numa das trocas de guarda do Ministério do Exército, o Oficial de Dia ao me perguntar por que eu estava preso, ao ouvir minha explicação, ordenou que abrissem a cela e me liberou. Devia ser um Oficial dos “nossos”, que reconhecia as autoridades democraticamente constituídas!
O segundo ato de covardia do Exército, que assisti, se deu exatamente no dia 1o. de abril de 1964. Eram, mais ou menos, 13 horas da tarde quando eu almoçava no restaurante dos estudantes (Calabouço), próximo ao Aeroporto Santos Dumont. Em dado momento, um estudante que ouvia seu rádio de pilha subiu em uma mesa e gritou: Está havendo um golpe no País! O Exército está fazendo deslocamento de tropas em Minas e em São Paulo !
Todos pararam de almoçar, discursos foram feitos, informações truncadas eram ouvidas nas estações de rádio e os estudantes resolveram fazer uma caminhada até a Cinelândia, para lá convocar a população para um comício relâmpago. Cerca de 500 estudantes se deslocaram pela Av. Beira Mar e Rua Santa Luzia convocando a população que se postava nas janelas do prédios para se juntarem a nós. Reunimos alguns milhares de pessoas na Cinelândia, onde diversos discursos contra o “suposto” golpe foram realizados. Em menos de uma hora de discursos, apareceram vários veículos da Polícia Militar cujos soldados passaram a nos atacar com cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo, as quais eram por nós devolvidas contra os PMs. E assim ficou a “batalha” por mais de uma hora. Nem um tiro, sequer, foi feito pelos soldados da PM.
Um grande número de Oficiais do Exército a tudo assistiam, das janelas do prédio do Clube Militar, na esquina da Rua Santa Luzia com Av. Rio Branco, sem nada fazer.
As notícias que vinham de algumas emissoras de rádio diziam que o Exército, no Rio de Janeiro, estava ao lado da legalidade, do Presidente da República.
Foi quando, com base nessas informações, por volta das 16 horas, os estudantes em avistando carros de combate do Exército se deslocando pela Rio Branco em direção à Cinelândia , deixaram a “batalha” com os PMs e correram para receber o Exército com ovação e palmas. Que decepção! Os soldados desciam dos carros de combate e, com seu mosquetões e metralhadoras portáteis, dispararam, covardemente, contra nós, estudantes e trabalhadores. Passamos a correr à procura de abrigo. Eu e um grupo de estudantes subimos as escadarias da Biblioteca Nacional para procurar abrigo em seu interior sob uma saraivada de bal as pelas costas. Quatro colegas meus foram atingidos e morreram na escadaria da Biblioteca Nacional. Permaneci escondido em algum local no 2o. andar até altas horas da noite. De uma das janelas da Biblioteca, vi quando uns Soldados e Oficiais do Exército se dirigiram às escadarias e recolheram os corpos dos quatro estudantes mortos. Quando tudo já estava calmo, a Cinelândia deserta, desci e fui para casa. Devia ser em torno de 23 ou 24 horas da noite.
Cheguei em casa, há menos de 3 km da Cinelândia, e não encontrei minha mãe. Só as minhas irmãs, todas menores, chorando. Fiquei extremamente preocupado e sem saber o que fazer: dar suporte às minhas irmãs menores ou procurar por minha mãe na rua ? Optei, momentaneamente, pela primeira hipótese. Felizmente, pois, cerca de meia hora depois, minha mãe apareceu, porém toda ensanguentada! - O que houve, mãe ?!
A terceira covardia do Exército, agora praticada pelos grandes “heróis”, aqueles altos Oficiais do Exército que a tudo assistiam das janelas do Clube Militar, sem nada fazer. Pois é, segundo minha mãe, que também se encontrava na Cinelândia participando dos comícios populares, tão logo os carros de combate do Exército apareceram na Rio Branco, os tais “heróis” passaram, covardemente, a disparar suas pistolas contra a população. Não sei quantos mataram ou feriram, mas pelo menos uma morte se deu: uma senhora morreu nos braços de minha mãe, com tiro partido de uma das janelas do Clube Militar e que atingiu a senhora pelas costas.
O golpe era realidade! A mídia covarde e controlada pelos interesses das oligarquias nada publicaram sobre esses fatos no dia seguinte. Nem falaram da multidão reunida no comício popular, nem falaram dos mortos e feridos resultantes do ato “heróico” praticado por membros do Exército Brasileiro. Só saíram notícias enaltecendo a “coragem” das Forças Armadas em defesa do Brasil que iria ser entregue aos comunistas, etc.. Vide as notícias do O Globo, Jornal do Brasil, O Dia, etc.., no dia 02/04/64 e seguintes.
Situação normalizada (?) no País, volto às minhas atividades de Aluno do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva e tenho uma surpresa: nosso Comandante não era mais o mesmo: desapareceu! Outra surpresa: no primeiro fim de semana após o golpe, vou à praia e não encontro o Capitão Collares. Passam algumas semanas e os parentes do mesmo vão a sua residência e encontram o apartamento todo revirado. Vão ao Exército e nenhuma notícia é dada a seu respeito. Desapareceu mesmo!
No final de 1964 formo-me Aspirante a Oficial da Reserva do Exército e sou designado para estagiar no Regimento Escola de Infantaria (REI), na Vila Militar. Como em 1965 o Brasil mandou parte das Forças Armadas para São Domingos, e a maioria dos Oficiais do Exército eram do REI, eu, que fui estagiar como Aspirante, virei Sub-Comandante da Companhia de Petrechos Pesados do Regimento e, como tal, passei a participar de vários cursos e atividades um tanto quanto sigilosas, sendo que algumas me causavam grande constrangimento e revolta, falando como brasileiro e nacionalista de fato. Ouvi muita besteira doutrinária falada por altas patentes, nitidamente adestrados pelo eixo anglo-americano.
Numa manhã, como Oficial de Dia, tive que recepcionar um grupo de Coronéis do Exército Americano que veio ao Brasil para registrar em seus livros contábeis as armas e munições existentes em nosso quartel. Senti vergonha de ser um Oficial do Exército Brasileiro e de ser brasileiro! País submisso! É esse o patriotismo daqueles militares da década de 60?
Concluí meu estágio e minha vida militar em 1965. Com tanta raiva e vergonha que senti, nem fui receber minha Carta Patente de Tenente do Exército.
Voltei à minha vida civil e, um dia, em 1967, saindo da faculdade, tarde da noite, me deparei com um sujeito esquelético e de olhos arregalados numa rua deserta do bairro da Lapa. Fiquei meio com medo, meio assustado. Quando cheguei perto do sujeito, que surpresa! Era o Capitão Collares. Me dirigi a ele e perguntei: Collares, o que houve com você, por onde você andava ? E ele me respondeu, todo maltrapilho, olhando para o além com aqueles olhos arregalados: eu fiz 6 cestas, eu fiz 6 cestas, eu fiz 6 cestas... Não me respondia nada além disso. Não tive como conversar com ele. Estava louco, destruído.
Fui para casa e comentei com minha mãe que ficou de fazer contato com a família dele em São Luís- MA.
Pois bem, 3 dias depois, o corpo do Capitão Collares apareceu no Aterro do Flamengo, todo crivado de balas. E o que é o pior que o seu assassinato: em 2005, após a Parada de 7 de setembro, nós, Oficiais da Reserva, nos reunimos no Bar Amarelinho para uma confraternização e recordar casos do nosso tempo de caserna, quando um colega, que é Delegado, fazendo alusão ao Capitão Collares, alegou que o mesmo tinha sido morto no Aterro do Flamengo, junto com outros elementos, em atos de pederastia. Ou seja, além das torturas a que foi submetido no Exército, ainda levou a fama de pederasta. Protestei, veementemente, pois o conhecia também na vida civil. Mais uma covardia do Exército!
Esses foram alguns dos atos heróicos, justiceiros e democráticos do nosso Exército em 1964, e essa foi, e às vezes ainda o é, a nossa Mídia democrática, isenta e comprometida com a verdade!
José Emílio Gomes
07/07/10