terça-feira, 6 de julho de 2010

Pelo diálogo com o Hamás

6/7/2010, Sami Moubayed, Asia Times Online – Traduzido por Caia Fittipaldi

Sami Moubayed é editor-chefe da revista Forward, Síria.

DAMASCO. Israel continua sem saber como enfrentar o grupo político militar palestino Hamás. E nem Yasser Arafat, o falecido líder da OLP, nem seu sucessor e atual presidente da Autoridade Nacional Palestina Mahmoud Abbas conseguiram eliminar a liderança do Hamás. Em dezembro de 2008, uma guerra declarada por Israel contra Gaza com o objetivo de varrer do mundo o Hámas, fracassou.

Tampouco funcionou o plano de boicotar o Hamás e levar a comunidade internacional a uma posição de aberta oposição ao grupo. E também não funcionou uma campanha de propaganda pela mídia, para convencer a comunidade internacional de que o Hamás seria um elo da cadeia global de terrorismo, alguma coisa aparentada à al-Qaeda. Nada disso sequer abalou o poder e a popularidade do Hamás nos Territórios Palestinos ou sua legitimidade no mundo árabe e muçulmano.

O argumento aplicava-se igualmente ao que se dizia e debatia-se nos altos escalões militares israelenses nos idos dos anos 1970s e 1980s, quando a questão do dia era: “Como enfrentar o Fatah de Arafat?” Guerra contra o Líbano e contra a Jordânia de nada serviu; caçar os líderes da Fatah pela Europa deu em nada; e tampouco serviu para alguma coisa a campanha de difamação liderada pelos EUA.

Afinal, Israel conseguiu controlar o Fatah – bem intencional e planejadamente –, quando pôs seus líderes em postos de gabinete e fê-los membros do Parlamento no governo criado pelos acordos de Oslo de 1993.

Exemplo clássico de poder que corrompe atores não-estatais, deu perfeitamente certo no caso da equipe de Arafat. “Fatah, a resistência” – como dizia o povo desde os anos 1960s – acabou, no dia em que seus líderes assumiram o poder na Autoridade Nacional Palestina.

O problema é que nem isso funcionou como meio para destruir o Hamás – que chegou ao poder em Gaza, em 2006, com ampla vitória eleitoral sobre o Fatah. Mas Israel continuou a recusar-se a dialogar com o partido palestino. E isso forçou o Hamás a voltar a fazer o que de sabe fazer melhor: combater Israel, de dentro de suas trincheiras palestinas.

Quanto mais Israel recusava-se a dialogar com o Hamás, mais aumentava a popularidade do Hamás nas ruas da Palestina. Por quatro anos, os membros moderados do Hamás – cansados de serem tratados como marginais e bandidos – trabalharam para ganhar prestígio como estadistas, não como combatentes guerrilheiros ou terroristas.

O grupo cresceu, ao trabalhar para melhorar as condições de vida dos palestinos, por votos, mais do que por tiros, aceitando construir um governo num sistema que, ironicamente, foi produzido pelos Acordos de Oslo de 1993. Tornou-se absoluta prioridade para os líderes do Hamás pagar salários aos funcionários públicos, levar água corrente e eletricidade a todas as casas, aumentar os salários e atrair investimentos internacionais.

Argumento que se ouvia em círculos internacionais em 2006 dizia que, para impedir que o Hamás criasse um estado-dentro-do-estado na Palestina, boa estratégia seria converter o próprio Hamas em “o Estado” na Palestina. Uma vez encarregado de cuidar da segurança e da construção da nação, o Hamás, pelo menos teoricamente, ficaria ocupado demais para pensar em fazer guerra a Israel.

Embora isso talvez seja verdade em relação a algumas figuras do Hamás que continuaram a viver na Palestina, os que vivem no exílio, representados por Khaled Meshaal, perceberam imediatamente as armadilhas do poder e alertaram seus camaradas para que não seguissem a trilha da Fatah em 1993.

Hoje, contudo, começa-se a perceber sinais de transformação no Hamás – partido mais maduro e mais pragmático, que aprendeu com os anos de vida e observa mudanças importantes nas políticas dos EUA para o Oriente Médio depois de George W Bush ter feito seu êxodo da Casa Branca.

No passado, os líderes do Hamas rejeitaram toda e qualquer intromissão dos EUA nos assuntos do Oriente Médio, recusaram-se a reconhecer os Acordos de Oslo e sempre se declararam categoricamente contra qualquer diálogo com Israel. Ou se discutiam condições para recompor a Palestina de 1948, ou não haveria o que discutir com Israel.

No início desse ano, o primeiro ministro Ismail Haniyya reuniu-se com um grupo de intelectuais norte-americanos que visitavam a Faixa de Gaza e manifestou desejo de fazer contato com o governo de Barack Obama, desde que os EUA apresentassem proposta de paz sustentável que assegurasse a existência de um Estado palestino, com capital em Jerusalém e garantia do direito de retorno para os refugiados palestinos.

Mês passado, Meshaal usou a palavra salam (paz) em vez da habitual hudna (trégua) e disse que o Hamás aceitaria as fronteiras de 1967. O Hamás disse também que não faria obstrução à iniciativa de paz árabe, de 2002, que conclama a uma paz coletiva de todos os árabes com Israel, sob a condição de que toda a terra árabe ocupada seja restituída aos árabes.

O que o Hamás efetivamente dizia ao mundo era: “Se querem alguém que realmente possa governar os Territórios Palestinos, têm de falar conosco. Somos fortes e legítimos. Longe vão os dias que o Fatah foi o único interlocutor na Palestina.”

Os EUA, afinal, engoliram o orgulho e já negociaram com o Fatah – apesar do passado do Fatah. Portanto, teoricamente, não haveria obstáculo a que negociassem com o Hamás. Se falar diretamente ao Hamás fosse tão difícil para os EUA, que, pelo menos, construíssem algum diálogo mediante intermediários confiáveis, como os sírios.

Agora, as peças do quebra-cabeças começam a encaixar-se. Dia 9/1/2009, o jornal britânico The Guardian publicou que “fontes próximas da equipe de transição [do governo Obama]” alterarão o curso, via o Hamás e iniciativas “de baixo perfil, clandestinas” de aproximação com o grupo palestino.

Para isso, será preciso mudança profunda na mentalidade dos EUA – no nível da mídia, no nível da opinião pública “das ruas” e no plano dos altos escalões do governo –, mas também será necessário que o Congresso dos EUA altere lei de 2006 que proíbe qualquer tipo de colaboração com o grupo islâmico.

O Departamento de Estado dos EUA também terá de excluir o Hamás da lista de grupos terroristas que distribui anualmente. Mas, por outro lado, já se ouvem vozes em Washington que pedem negociações com o Hamás.

Richard Hass, diplomata que serviu sob o governo Bush e que foi cogitado para ser enviado de Obama ao Oriente Médio, confirma que já houve contatos iniciais com o Hamás. James A Baker, ex-secretário de Estado, atualmente trabalhando no Baker Institute da Rice University em Houston, foi citado na revista Newsweek, em sugestão de que Obama envolva o Hamás em qualquer processo de paz pensado para o Oriente Médio. Disse Baker: “Não se pode negociar a paz, se só metade da política palestina sentar-se à mesa de negociações”.

Richard W Murphy, veterano diplomata norte-americano e ex-embaixador à Síria, acrescentou: “Não creio que aconteça logo, mas acho que é inevitável. O Hamás, na minha opinião, é legítimo representante de parte da comunidade palestina.”

Não será fácil, para os EUA, engajar-se em negociações com o Hamás. Haverá forte oposição dos linhas-duras nos EUA, e também de Abbas. Se – ou quando – se iniciarem negociações que incluam o Hamás, o presidente da ANP ver-se-á em posição muito insignificante.

O diálogo com o Hamás dará mais poder ao grupo e garantir-lhe-á, além da legitimidade legal, legitimidade também de facto em Gaza. Outro forte opositor a qualquer contato com o Hamás – caso venha a acontecer –, portanto, será o presidente egípcio Hosni Mubarak, que deseja que todos os negócios com os palestinos continuem a passar pelo Cairo e que combaterá qualquer iniciativa que deixe de lado o Egito. Além do mais, qualquer “negociação” direta entre Obama e o Hamás diminuirá ainda mais as chances de sucesso do trabalho de Mubarak para reposicionar o Egito na Região.

Uma terceira força, não tão visível dessa vez, a opor-se a qualquer contato direto entre o Hamás e os EUA, será a al-Qaeda. A organização terrorista não se sente confortável cercada por um Obama e um Hamás pragmáticos. O melhor cenário, para a Al-Qaeda, é Obama que aja como segundo Bush. A lógica por trás de todos os ataques contra alvos norte-americanos vai-se tornando sem sentido, se Obama começar a construir soluções viáveis para o conflito palestino (se os EUA retiram-se do Iraque e reúnem-se para conversações com o Hamás). Quanto mais Obama confunde e mistura grupos como o Hamás e al-Qaeda, mais à vontade sentem-se os fundamentalistas à Osama bin Laden.

Olivier Roy, analista francês, escreveu que “é hora de considerar a opção de conversar com o Hamás”. Outro francês, dessa vez um ex-embaixador, Yves Aubin de la Messuzière, usou praticamente as mesmas palavras em duas visitas que fez ao Hamás, em 2007 e 2008. David Grossman, ativista pacifista israelense, que perdeu um filho na guerra do Líbano de 2006, escreveu sem meias palavras no jornal israelense Ha'aretz: “Temos de conversar com os palestinos. Temos de conversar até com quem não reconheça o direito de Israel a existir.” E acrescentou: “Em vez de ignorar o Hamás (...), Israel faria melhor se começasse a beneficiar-se desde já de uma realidade que já está criada e iniciasse imediatamente conversações com o Hamás.”

O artigo original, em inglês, pode ser lido em: A gentleman's dialogue with Hamas