Entrevistadora: [*] Christina
Lamb (correspondente em Kabul), Sunday Times, Londres
27/1/2014, Bakhtar News, Afeganistão
Traduzida da transcrição em
inglês pelo pessoal da Vila Vudu
Houve época em que Karzai foi o “queridinho do ocidente”,
mas hoje o Presidente do Afeganistão − “louco e encurralado como um
gato” − é evitado por Obama. Prestes a se despedir de seu
cargo ele não faz rodeios ao acusar os EUA de trazer morte, desgraças e
ilegalidades para sua terra.
Presidente do Afeganistão, Hamid Karzai durante entrevista a seguir |
Jornalista Christina Lamb: Obrigada, Sr.
Presidente, por nos receber. Ocorreu-me, enquanto vinha para cá, que já são 12
anos desde que o senhor chegou à presidência. E durante todo esse tempo o
senhor manteve relações muito boas com os EUA. Agora, parece que isso mudou. Em
sua opinião, por que tudo isso está acontecendo?
Presidente
Karzai: Desde bem antes disso, quando ainda estávamos em Peshawar
nos anos da resistência contra os soviéticos, todos já sabíamos que os
norte-americanos ajudavam os radicais, todos sabíamos de tudo, mas ainda
considerávamos que fossem amigos do povo afegão e todos estávamos tentando
tudo... Quando os Talibã apareceram, eu, inicialmente, apoiei os Talibã. Sentia
que seriam as pessoas certas.
Como você
sabe, fiz quase toda a minha resistência no Afeganistão com eles, através
deles, naquele tempo. Foi assim até que me convenci de que eles estavam
provocando desunião no país; que eram de modo geral armados por forças externas
ao nosso país. Então, de 1996 em diante, foquei-me inteiramente nos EUA e
passei a esperar que os EUA ajudassem o Afeganistão e o povo afegão. Falei no
Senado; andei por todos os cantos e também pela Europa. Afinal, depois do 11/9,
os norte-americanos chegaram; e o povo afegão os recebeu de coração aberto.
Na maior
parte do país, os Talibã foram expulsos pelo povo, sem um único tiro: eles
simplesmente deixavam suas bases e partiram. A partir de 2003, quando o general
McKneill comandava aqui as forças dos EUA, nunca me cansei de falar aos
norte-americanos que viviam aqui, sobre nossas tradições, nosso modo de vida, e
de repetir que o povo afegão era amigo do povo dos EUA.
Quando os
norte-americanos começaram a invadir casas, quando começaram a empregar
bandidos que agiam com eles, quando começaram a atacar populações locais, quando
começaram a intimidar... O que fiz foi dizer que não, que aquilo tinha de
parar, que não podia continuar. Mas eles não me ouviram. Alertei-os sobre a
região e nossa política regional, e também não me ouviram. Quando começaram a
bombardear casas de civis, todos vinham falar comigo. Mas o governo então era
muito fraco e eu nem tinha meios para produzir investigações e relatos
oficiais, pela máquina do Estado, porque nem máquina do Estado havia. Mas as
pessoas estavam vendo o que se passava e contavam: “presidente, estamos sendo
atacados, estamos sendo bombardeados, o senhor não sabe... Nossas casas são
atacadas, as mulheres e as crianças são intimidadas”. Naquele momento, o que
fiz foi convocar os generais norte-americanos para que se reunissem com
generais afegãos e o embaixador dos EUA.
Por quase
dois anos, até 2005, não mobilizei a imprensa, nem falei publicamente contra o
que estava acontecendo no Afeganistão. Mas de 2005 em diante, dado o número de
baixas entre os civis, senti que ninguém estava ouvindo o que todos diziam aqui
no Afeganistão, que ninguém estava prestando atenção, e que era meu dever
trabalhar e me manifestar mais publicamente. E continuou a ação dos
norte-americanos, de negligenciar a população civil, de bombardear alvos
afegãos, de profanar locais religiosos e tudo que hoje se sabe.
Os
norte-americanos também começaram a trabalhar empenhadamente contra o governo
afegão, contra sua autoridade, contra nossas instituições. Os norte-americanos
nunca se interessaram pela polícia afegã, porque sempre usaram sua própria “segurança
privada”, gastando aí o dinheiro que deveriam gastar para treinar a polícia
pública afegã. Nunca parei de dizer tudo isso aos norte-americanos – que nós
sabíamos das empresas de segurança privada, das estruturas paralelas contra o
governo afegão, porque tudo isso criava contrastes inadmissíveis, além de
outras dificuldades.
Mas os
norte-americanos jamais trabalharam comigo; sempre trabalharam contra mim em
todas essas questões – a prisão de Bagram é um desses casos, mas não é o único.
Há uma longa lista de questões extremamente importantes para os afegãos, às
quais os norte-americanos jamais deram atenção alguma.
Acabei por
começar a sentir que se os norte-americanos absolutamente não se interessavam
por nós. E, se estavam aqui exclusivamente por interesses deles mesmos, eu tinha
obrigação de tomar posição.
Não que eu
estivesse contra eles, não, de modo algum. Sou homem completamente
pró-Ocidente, desejo contato e engajamento com países ocidentais. Mas é claro
que tudo isso tem de ser feito sob relações de respeito! O povo afegão tem de
ser respeitado... Somos povo pacífico, vivemos aqui há milênios, não podemos
nos conformar com viver amedrontados, em medo perpétuo.
E foi essa “nova”
atitude que decidimos tomar no Afeganistão, que “mudou” o relacionamento que
havia entre nós.
Jornalista:
Como o senhor sente-se, ao ler que
[Robert] Gates escreveu que o presidente Obama “não tolera Karzai”?
Presidente
Karzai: Não sei o que significa isso. Ora... talvez alguém “não
tolere” minhas declarações. Talvez alguém não tolere que o presidente de país
pobre, como o Afeganistão, ponha-se a falar como nós falamos. Se é isso, estão
enganados. Por mais pobre que seja o Afeganistão, ainda somos um país. Não
sabemos de “potências”: “potência”, para nós, somos nós mesmos, embora pobres,
mas, mesmo assim, é claro, com nossos próprios interesses, como qualquer
sociedade, qualquer povo. Temos nossas crianças, nossas famílias, quero viver
num bom país. Pessoalmente, sempre fui cordial e respeitoso com o presidente
Obama, porque é presidente dos EUA e porque, na minha presença, sempre foi
cordial e civilizado. Quero dizer... De minha parte, respeito e considero o
presidente Obama e desejo-lhe sorte e felicidade.
Jornalista:
Mas o presidente Bush fez muito mais
esforços para ter e manter um relacionamento com o senhor. E os dois mantinham
videoconferências semanais...
Presidente
Karzai: É, videoconferências semanais, não. O presidente Obama e eu
nos encontramos em algumas videoconferências, mas nenhum encontro, nem por
videoconferência depois de julho (ou talvez antes, em junho), quando nos
encontramos pessoalmente naquela reunião. Depois daquilo não nos falamos mais.
E o presidente Obama teve a gentileza de mandar-me um cartão com votos de Feliz
Ano Novo.
Jornalista:
Nunca mais se falaram, desde, talvez,
junho, julho?
Presidente
Karzai: De fato, não estou lembrado se, alguma vez, falamos por
telefone... Nos vimos na África do Sul, mas não nos falamos. Trocamos cartas,
sim, é verdade.
Com o
presidente Bush, sim, era um bom relacionamento, e também com o presidente
Obama.
Mas as
relações entre países como o Afeganistão e os EUA começaram a deteriorar-se já
no segundo mandato do presidente Bush, em 2007, depois do bombardeio de Hirat,
contra nossos civis, e com mudança drástica na opinião sobre a pulverização
aérea que queriam fazem sobre nossas terras plantadas, e contra a qual me opus.
Opus-me frontalmente, completamente, Mas eles queriam e queriam. E eu me opus,
disse não. Na verdade, pode-se dizer que as dificuldades começaram ali; e
quando tentavam trazer para o Afeganistão uma super autoridade da ONU, [Paddy] Ashdown. É diplomata talentoso, por quem eu tinha
muito respeito. Qualquer outra pessoa seria igualmente pessoalmente respeitada
por mim. E ele compreendeu meu ponto de vista, compreendeu que o Afeganistão
precisa ter governo próprio, que têm de cuidar de seus próprios negócios, que
não somos alguma espécie de protetorado, que não podemos ser tratados como
protetorado. Ashdown compreendeu tudo isso muito bem. Mas o plano concebido,
que deveria andar nessa direção, não foi plano amigável em relação ao
Afeganistão.
Jornalista:
Sim, exatamente.
Presidente
Karzai: Era um
plano conjunto norte-americano e britânico, e os europeus também. E comecei a
desconfiar que tentavam nos empurrar para um limbo.
Jornalista:
Os norte-americanos estão hoje muito
zangados, porque o senhor libertou alguns dos prisioneiros.
Presidente
Karzai: É. Estão.
Jornalista:
Dizem que são perigosos.
Presidente
Karzai: Não vemos assim, definitivamente não acreditamos nisso.
Antes de eu ir a Bagram... Para resumir tudo o que deu errado em nosso
relacionamento com os EUA, talvez o melhor seja recorrer a um verso de Shelley,
o grande poeta britânico: quando ia para Bagram “encontrei a morte no caminho”. [1] Esses doze anos foram anos de
suplicar aos EUA: por favor, respeitem nossos civis, tratem-nos com respeito; e
nossa vida, como vidas humanas.
Estou lendo
um livro, comecei a ler anteontem, de Ben Anderson, o correspondente
norte-americano, que diz, em seu livro... É chocante, chocante para mim. Se eu
tivesse sabido de tudo aquilo naquele momento, teria protestado muito
fortemente. Só fiquei sabendo por aquele livro, ontem, que o general Petreaus
ordenou que se intensificassem as operações e que, de julho a novembro de 2010,
foram 3.500 bombardeios contra nosso país.
Jornalista:
É muito!
Presidente
Karzai: 3.500 bombardeios contra nosso país, bombardeios aéreos,
inacreditável, chocante!
Jornalista:
Quando ele [general Petreaus] esteve
aqui, lembrei, na ocasião, que ele disse “viemos para vencer a guerra”. Não
estava pensando em negociações.
Presidente
Karzai: Mas... vencer a guerra contra quem? Contra o povo afegão?
Não há dúvidas de que, sim, as coisas foram por péssimo caminho, porque
“encontrei a morte no caminho”.
Nunca pedi
nem ajuda nem dinheiro aos norte-americanos, para o Afeganistão. Nunca discuti
questões econômicas com os norte-americanos. Nunca pedi ajuda para nosso país.
Só pedi uma abordagem racional e justa na guerra ao terror. Se entendem
que os santuários estão acima do Afeganistão, que cuidem disso. Se entenderem
que há algum problema dentro do Afeganistão, é problema a ser resolvido por
nós, pelos afegãos; e nada, absolutamente nada poderá jamais ser resolvido
pelos EUA, se só fazem conduzir operações de guerra e bombardear.
A prisão de
Bagram já era problema para mim, há muito tempo, em 2005, 2006, 2007. Mas
passou a ser para mim problema extremamente importante, ao qual passei a dar
atenção total e imediata, depois de uma reunião com o vice-presidente Joe
Biden, que então ainda era senador Joe Biden, o senador Graham em dois outros
respeitados senadores dos EUA, MacCain e Lieberman. Deixo os senadores MacCain
e senador Lieberman fora dessa discussão, porque não participaram daquela
conversa. De fato, naquela reunião, mostraram, até, muito mais consideração e
gentileza.
O senador
Graham disse-me – no início de 2008 (a data aparece corretamente citada no
livro de [Robert] Gates, mas agora não lembro exatamente; no inverso, me
parece, de 2008) – o senador Graham diz-me que os norte-americanos vão
construir grandes prisões para acomodar maior número de prisioneiros afegãos.
Perguntei por quê. Por que vocês construirão prisões no Afeganistão? Não é o
mesmo que fizeram os soviéticos? E os afegãos não nos levantamos contra os soviéticos,
precisamente por isso? Não foi essa a razão principal? Ele respondeu que “bem... prenderemos até os suspeitos contra
os quais só haja leves suspeitas, e assim meteremos milhares de afegãos na
cadeia”. Eu disse a ele que não permitiria que fizessem tal coisa. Ele
respondeu “você é só um!”
Para muitos
membros do governo dos EUA, o Afeganistão não era nem povo nem governo, não
havia presidente aqui, eu não passava de “um homem só”.
Daquele dia
em diante, quando os EUA meteram milhares de pessoas em Bagram, eu passei a
exigir o fim imediato daquela prisão e trabalhei contra aquela prisão durante
anos; até que, em 2009 e 2010, tive de forçar os EUA a desistir da prisão;
acabaram por desistir em 2010 ou 2012. Mas não preciso comentar em detalhes
tudo que nós fizemos até conseguir isso.
Minha
avaliação é que Bagram não é prisão que os EUA usem para prender bandidos e
criminosos. Não. Minha avaliação é que Bagram existe para gerar ódio na
população afegã contra o próprio país e o próprio governo e contra os que foram
libertados ontem pela Comissão. São casos que estudamos detalhadamente durante
três meses. E a conclusão de nossa inteligência e de todos que examinaram os
casos é que, de 88 prisioneiros, mais de 40 são pessoas contra as quais nada há
nos nossos arquivos e na nossa inteligência; sobre 27, só há uma referência; 16
são definidos como “vindos de ambientes suspeitos” (esses 16 não serão
libertados). Todos os demais foram libertados pelo nosso sistema judiciário.
Jornalista:
Mas o momento de libertar esses
prisioneiros não lhe parece um pouco... provocativo? Os americanos não queriam
que os prisioneiros fossem libertados.
Presidente
Karzai: Não, não é provocativo. Não trabalhamos por “momentos”e “oportunidades”.
Trabalhamos sobre fatos, o lado certo e o lado errado das coisas. Nossa
avaliação considerou direitos bem claros: ninguém pode manter alguém na prisão,
se se entende que ele ou ela é inocente. E os prisioneiros que foram libertados
são os que nós consideramos inocentes; o sistema não encontrou sinal de conduta
criminosa no que eles fizeram. Por isso decidimos libertá-los, e eles voltaram
para casa.
Jornalista:
E sobre tudo que aconteceu durante os
últimos 12 anos? Terrivelmente triste, não lhe parece? Quero dizer... os EUA
perderam tantas vidas e tanto dinheiro...
Presidente
Karzai: Muito triste, infelizmente, sim, também para eles, para os
EUA, para os soldados dos EUA, para os que morreram, toda a nossa simpatia e
nossa solidariedade às famílias enlutadas. Sinto pelas famílias
norte-americanas, exatamente como sinto pelas famílias afegãs. Temos de separar
esses sentimentos de solidariedade humana, de um lado; e, de outro, nossos
sentimentos relacionados ao que o governo dos EUA fez ao Afeganistão. Temos
imenso respeito pelo povo dos EUA. Sabemos que o dinheiro dos contribuintes dos
EUA correu em grande quantidade para o Afeganistão. Mas quem consumiu e fez
sumir, aqui, mal empregado, mal administrado, todo esse dinheiro do povo dos
EUA, não fomos nós: foi o governo dos EUA.
Respeitamos
profundamente a vida dos soldados norte-americanos que morreram no Afeganistão.
Mas discordamos fortemente do modo como os EUA chegaram ao Afeganistão, do modo
como agiram aqui, do modo como se conduziram aqui. Sabemos fazer a diferença.
Sabemos respeitar o que tem de ser respeitado.
Jornalista:
E agora? O senhor está preocupado, agora que os EUA declararam que não
deixarão soldados no Afeganistão?
Presidente
Karzai: Que deixem ou não deixem é decisão que eles têm de tomar,
não nós. Seja como for, algum dia terão de ir embora. E o Afeganistão terá de
encontrar seu próprio caminho. Vivemos sob guerras, levantes, e sofrimentos
para todos já há 30 anos. Vocês [a jornalista e seu jornal] estavam aqui, e nos
acompanharam de perto. Vocês conhecem o Afeganistão desde 1987. Desde 1987,
como vocês sabem bem, não houve um dia de paz. Quantos afegãos preocupam-se por
não poderem mandar os filhos à escola? E, se vão, as mães desesperam-se porque
não sabem se voltarão. Tudo isso tem de acabar. Tenho tentado fazer o meu
melhor para pôr fim a tudo isso, antes de assinar o acordo de parceria com os
EUA. Esse acordo tem de ser instrumento que sirva aos objetivos do Afeganistão,
de segurança e paz para o povo afegão.
Jornalista:
E o senhor entende que um modo de pôr
fim a tudo é firmar um acordo com os Talibã?
Presidente
Karzai: A verdade é que, se os Talibã são problema interno do
Afeganistão, nesse caso, como no caso de todos os nossos problemas internos,
nós, os afegãos, nós mesmos, temos de equacionar o problema. E se os Talibã são
problema externo, nesse caso os EUA devem unir-se aos afegãos para equacionar o
problema externo. E veem-se aí elementos de problema interno e de problema
externo, nesse caso temos de tratar de delimitar o que é problema interno e o
que é problema externo, para resolver tudo.
Jornalista:
No sábado, o senhor disse que queria
que os EUA trouxessem paz e segurança e o processo de paz, e que trouxessem os
Talibã para a mesa de negociações. Como o senhor imagina que os EUA possam
fazer isso? Será que os EUA têm poder para obrigar os Talibã a vir, sentar e
conversar com o senhor?
Presidente
Karzai: Se não têm poder para fazer isso, que o declarem; que
expliquem: como é possível que os EUA não tenham poder para trazer os Talibã à
mesa de negociações? Se os EUA não têm poder sobre o governo do Paquistão,
então devem dizer que não têm; se o governo do Paquistão não está colaborando,
devem explicar o que se passa; se entendem que os Talibã não querem discutir
com todos esses atores, nesse caso talvez aceitem discutir conosco; nesse caso,
o trabalho será nosso, do Afeganistão; é assunto interno e terá de ser tratado
como assunto interno. Tudo isso nós precisamos entender. O que mais me
interessa agora é clareza.
Jornalista:
O senhor acredita que o governo dos EUA
possa persuadir o governo do Paquistão para que faça tudo isso? E o senhor acha
que o governo do Paquistão tem poder para trazer os Talibã à mesa de
negociações, ou a negociações com um ou outro governo?
Presidente
Karzai: Nessa discussão há quatro partes envolvidas: o governo
afegão e a nação afegã; o governo dos EUA; o governo do Paquistão; e os Talibã.
Os Talibã
mataram meu irmão. Dia seguinte eu continuava a dizer que os Talibã são nossos
irmãos e continuei a falar de paz. Depois mataram o Presidente Rabbani, que
presidia o Conselho de Paz; continuei a chamá-los irmãos e a pedir paz;
continuaram a explodir carros e bombas ou, pelo menos, os autores daqueles
atentados diziam que agiam em nome dos Talibã; e continuei a dizer que os
Talibã são afegãos e são nossos irmãos. Tudo isso para dizer que a nossa
posição é clara: queremos paz.
Os
norte-americanos dizem que também trabalham pela paz. Resta considerar os dois
elementos remanescentes. No Paquistão dizem que estão fazendo o possível. E, se
estiverem fazendo o máximo possível, algum resultado haverá de aparecer. Apesar
das dificuldades, porém, há progressos.
Se, dos
três envolvidos nesse quadrado de quatro, só restar um dos jogadores, num dos
cantos, no “corner” dos Talibã, nós podemos lidar com a situação, se nós três
trabalharmos nessa direção. Procuro, exatamente, esse tipo de clareza.
Já disse
tudo isso ao governo dos EUA, inclusive hoje cedo: que eles devem vir a público
e esclarecer sua posição, de tal modo que eu possa ir ao povo do Afeganistão e
dizer “a situação é essa: as condições que nós impusemos para o processo de
paz, para que iniciemos o processo de paz, não puderam ser aceitas pelos EUA
[por tais e tais razões]. OK. Temos de encontrar outra via que nos leve à paz”.
Jornalista:
O senhor acredita quando o Paquistão
diz que não controla, que não tem meios parara fazer os Talibã vir e sentar com
o senhor?
Presidente
Karzai: Os paquistaneses dizem que não controlam os Talibã, mas
vivem a repetir que têm influência sobre os Talibã. Essa influência pode ser
considerável, pode ser usada. Se já usaram alguma vez essa influência, agora é
bom momento para provar que podem usá-la.
Jornalista:
E onde o senhor imagina que esteja o
Mulá Omar? O senhor acredita que esteja vivo?
Presidente
Karzai: Não há dúvidas de que está vivo, sim. Creio que está no
Paquistão.
Jornalista:
O senhor tem algum contato com ele?
Presidente
Karzai: Não diretamente. Contato direto, não.
Jornalista:
Sábado (18/1/2014), ouvi com interesse
uma comparação que o senhor fez, sobre o Acordo Bilateral de Segurança. O
senhor usou exemplos de nossa história comum [britânicos e afegãos].
Presidente
Karzai: Sobre a Linha Durand? Sim, sim.
Jornalista:
É, Linha Durand, Gandomak. Como o
senhor se sente sobre o que os britânicos fizeram aqui em Helmand. Ando para lá
e para cá... Não lhe parece difícil dizer que a situação hoje esteja muito
melhor, mesmo, que antes, quando os britânicos chegaram?
Presidente
Karzai: Já me pronunciei, antes, sobre os britânicos em Helmand.
Uma vez, em Davos, disse algo sobre isso, acho que foi em 2007, bem quando eles
pensavam em indicar Lord Ashdown. E havia muita fúria na imprensa
britânica, lembra-se?
Mas
digamos, em termos gerais, que a missão da OTAN liderada pelos EUA no
Afeganistão, para trazer segurança e estabilidade, não foi bem-sucedida,
particularmente em Helmand. Mas o governo britânico conduziu-se conosco de modo
muito civilizado, o que muito aprecio, todos os governos britânicos,
especialmente o governo do Primeiro-Ministro Cameron, que foi parceiro
compreensivo e muito civilizado com os afegãos; e que tentou sem parar melhorar
as relações entre nós e o Paquistão.
Jornalista:
Mas no início, eles [os britânicos]
insistiram em tirar de lá o seu governador, que tinham boas relações com...
Presidente
Karzai: Fizeram muito mal, foi mal feito, foi um erro. Espero que
os britânicos tenham aprendido, que tenham entendido que não deveriam tem
feito.
Jornalista:
O senhor entende que a situação teria
sido melhor se tivessem mandado tropas? Não lhe parece que os ataques funcionam
como ímãs para os insurgentes e que até os soldados poderiam unir-se à
insurgência?
Presidente
Karzai: Sim, parece-me que sim. Os afegãos não eram
anti-norte-americanos ou anti-britânicos. De fato, sempre os apoiaram, e
apoiaram também a chegada da comunidade internacional. Todos os nossos
problemas foram criados pelas invasões violentas em casas de civis, e todas as
demais violências e, de fato, em termos reais, pelo trabalho incansável para
minar o governo afegão.
Jornalista:
Mas como o senhor acha que minaram o
seu governo?
Presidente
Karzai: Tudo aquilo que fizeram, criar milícias, criar empresas
privadas de segurança – o que gerou corrupção, descrédito da lei e do aparato
judiciário, brutalidade, roubalheira generalizada, criar estruturas paralelas,
guerra psicológica incansável contra o povo afegão, para nos desmoralizar, nos
intimidar, ameaçar-nos com “consequências”, se não fizéssemos o que ordenavam,
facilitar a saída de dinheiro do país, tudo isso. Tenho uma lista enorme.
Jornalista:
O que me parece, andando como ando,
pelo país, como o senhor sabe, há tanto tempo, é que, cada ano que volto para
cá há menos lugares aos quais posso ir no Afeganistão.
Presidente
Karzai: Exatamente, exatamente. O ponto é exatamente esse. O que
eles efetivamente fizeram foi criar bolsões de riqueza, num vasto mar de
miséria e privações e ira. Isso, exatamente, é o que fizeram. E daí advêm os
nossos problemas. E isso, precisamente, é o que me deixa furioso. Nunca parei
de repetir que não fizessem isso. Por isso, exatamente, quero tanto o processo
de paz; porque, sem um processo de paz, a única coisa que o Acordo Bilateral de
Segurança obterá será o impacto oposto, um impacto negativo. Porque uma parte
do país estará sob ataque e alguns que recebem salários e contratos em dólares
aí estarão, conectados a um poder externo; e o resto do país estará abandonado
ou, ainda pior, estará sob ataque.
Jornalista:
O que lhe posso dizer é que todos com
quem conversei desde que cheguei, inclusive seu irmão, dizem que querem o
Acordo Bilateral de Segurança.
Presidente
Karzai: Eu também quero. Não estou contra o ABS. Se estivesse
contra o Acordo, não teria convocado a Jirga! Quero também o Acordo. Mas
quero-o nas circunstâncias certas, para o objetivo certo. Para que queremos que
os americanos fiquem aqui? Será que os queremos aqui para perpetuar a guerra e
os conflitos e os sofrimentos dos civis, e as família vivendo em estado de
perpétuo medo? Ou queremos que as bases dos EUA permaneçam aqui para cuidar de
nossa segurança, como uma espécie, como se diz, de âncora? Queremos que sirvam
só para impedir o início do processo de paz, como parece ser o caso, hoje?
Jornalista:
Mas os EUA estão dizendo (o senhor com
certeza viu ontem e hoje: o New York Times está dizendo que o senhor,
provavelmente, é quem está inventando aquelas fotos e pagando pessoas pra
dizerem que aquelas coisas são verdade. O que lhe parece tudo isso?
Presidente
Karzai: São mentiras! Avise ao New
York Times. Assisti diretamente ao vídeo, visitei várias pessoas
feridas anteontem, havia mulheres e crianças mortas. O New York Times diz
que não foram 12, que foram menos de 12. OK, digamos, para concordar com o New
York Times, que tenham sido, seis, cinco? Que diferença faz? Se fosse uma
única, o que mudaria?
Ninguém
pode reduzir a questão vastíssima de um ataque à bomba contra uma residência de
civis, contra uma moradia familiar, à discussão sobre números e imagens. Que
diferença faria, se alguém usasse uma foto antiga, que não faz desaparecer o
fato de que ali morreram mulheres e crianças, que uma casa de família foi
bombardeada, que há mulheres e crianças mortas?
Jornalista:
Não o preocupa a possibilidade de, se
retirarem os soldados, ainda assim continuarão a usar os drones, como
fizeram no Paquistão?
Presidente
Karzai: Bem, se o fizerem, será guerra contra o povo afegão. Ao
mesmo tempo em que se dizem nossos aliados, nos bombardeiam?
Jornalista:
O que o senhor gostaria de ver como seu
legado, depois de deixar o governo?
Presidente
Karzai: Acho que meu legado já está aí. Felizmente, só faltam dois
meses. Afinal, 12 anos é tempo muito longo. Quando cheguei à presidência, o
Afeganistão não tinha governo; hoje, tem; não tinha Constituição; hoje, tem.
Jornalista: Acho que o senhor nunca teve aquecedores
nesse palácio?
Presidente
Karzai: Não, nunca. Hoje temos milhões de crianças que frequentam
escolas, universidades, milhares dos nossos jovens, moços e moças, estudam no
exterior. Temos Mujahid, comunistas, chefes tribais, clérigos, mulheres
e homens sentados lado a lado, negociando as questões do governo e com o governo.
O Afeganistão é hoje país para todos os afegãos. É minha principal realização:
vivemos num país que é lar de todos os afegãos.
Há onze
candidatos concorrendo nas eleições presidenciais, está aí bem representada uma
combinação do povo e do pensamento afegãos.
Jornalista: E os senhores-da-guerra.
Presidente
Karzai: E dos senhores-da-guerra. Todos. Esse país tem muito a
mostrar. Somos gratos pela assistência que recebemos de todo o mundo. Não
chegamos a falar sobre isso. Construíram escolas, clínicas, pelas quais nós
agradecemos. O dinheiro que ajudou a construir estradas, a melhorar o padrão de
vida, somos gratos por tudo isso, aos EUA, à Grã-Bretanha, à Europa, a todos.
Mas esse país poderia ser ainda muito melhor país, com uma boa e honesta aliança,
e muito menos sofrimento para o povo afegão e para os soldados de EUA e OTAN.
Jornalista:
Se o Acordo de Segurança Bilateral não
for assinado, os EUA também retirarão todos os financiamentos e grande parte do
que o senhor listou ficará ameaçado.
Presidente
Karzai: Não quero isso, mas se chegar até lá, direi ao povo afegão
que temos de escolher entre continuar essa vida de incerteza, de conflito
interminável, de bombas, e nos separar disso tudo, dar adeus a tudo isso, na
esperança de que possamos encontrar meios próprios e viver nossa própria vida
como decidirmos viver, tentar nossas ideias sobre a paz. Se você me pergunta
como indivíduo, como cidadão afegão, eu preferiria viver na pobreza, a viver na
incerteza. Prefiro que meu filho seja filho de alguém muito pobre, mas que viva
em segurança e confiante, que possa ir todos os dias à escola e volte para
casa. Não importa que volte para uma casa pobre, desde que volte e que saiba
que há futuro para ele. Os EUA e o Acordo de Segurança Bilateral têm de assegurar
esse futuro ao povo afegão. O dinheiro não é tudo.
Jornalista:
Mas o senhor terá meios para manter seu
próprio exército?
Presidente
Karzai: E por que não? Sempre mantivemos nossos próprios exércitos
há séculos. Não é a primeira vez que temos exército. Tivemos muitos, magníficos
exércitos!
Jornalista: Sabemos muito bem disso.
Presidente
Karzai: Pois é. Podemos pagar. O problema não é esse. Não acho que
a dependência seja o principal fator que nos forçaria a assinar o Acordo
Bilateral de Segurança. Não é. O principal fator por trás dele, ou o desejo por
esse acordo, é que ele traga clareza ao conflito, que traga paz ou que
identifique o culpado.
Jornalista:
É verdade que o senhor não quer ser o presidente que assinou tal acordo?
Presidente
Karzai: Não. Eu gostaria muito de assinar o Acordo Bilateral de
Segurança, se pudesse ter certeza de que estou fazendo o melhor para o povo
afegão. Sei que a ideia de permanecer engajado como ocidente, com os EUA, é
acertada. Mas entregar o Acordo aos EUA, sem que nada assegure melhorias no
futuro do Afeganistão, não, não está certo. E não posso assinar algo no qual,
pessoalmente, não confio completamente. Não posso impor aos afegãos algo que
não considero plenamente correto.
Jornalista:
O senhor espera que o próximo
presidente assinará o acordo?
Presidente
Karzai: O próximo presidente não terá minha experiência, nem meus
pensamentos. Não terá passado pelas etapas e pelas coisas pelas quais eu
passei. Minha cabeça é feita do que vi. Vi poucas coisas boas, então sou
cauteloso e talvez mais sábio. É resultado do que vivi. Tenho tentado manter a
prudência para fazer a coisa certa. É decisão monumental, imensa, para o povo
afegão.
Jornalista:
Sem dúvida, é. Parece que sua história
tem parte importante em sua decisão.
Presidente
Karzai: Muito, muito importante. Sob pressão nossos reis assinaram
coisas, e quase todas foram desastrosas para o Afeganistão. Se hoje, sob
pressão, faço o mesmo, como se não soubesse as consequências? Tenho de estar
absolutamente certo antes de assinar. Não é um jogo, e não é decisão
individual: é uma decisão nacional.
Jornalista:
O que o senhor vai fazer, quando deixar a presidência?
Presidente
Karzai: O governo está construindo uma ótima casa, muito boa. E
receberei uma ótima pensão, pelos padrões afegãos, é ótima. E terei muito que
fazer.
Jornalista: O senhor ainda é homem jovem.
Presidente
Karzai: Quando deixar a presidência, terei 56 anos e meio. Terei
tempo, se Deus quiser, para viajar, visitar o país e usar bem o tempo para ir a
um café, para visitar Londres no Natal, ver as luzes, os parques. Trabalhar
para melhorar a educação no Afeganistão e conviver com o povo, nas ruas.
Jornalista: Lembro que o senhor contou que sentia falta
de caminhar mais.
Presidente
Karzai: É verdade. Sempre caminhei muito. Poderei voltar a
caminhar.
Jornalista: Passar mais tempo com as crianças.
Presidente
Karzai: É. Muito mais tempo...
Nota dos
tradutores
[1] Percy Bysshe
Shelley, “The Mask of Anarchy”. Trechos
traduzidos em: Gato Vadio Livraria - Percy
B. Shelley, “A Máscara da Anarquia”, & etc, 2008
[*] Christina Lamb (nascida em 15 de maio de 1966 em Londres, UK) é
jornalista britânica que atualmente é Correspondente Internacional para o Sunday Times. Ela foi educada no University College, Oxford (BA em Filosofia,
Política e Economia) e foi um Fellow Nieman da Universidade de Harvard. Ela é
membro da Royal Geographical Society.
Ganhou o prêmio Foreign Correspondent of
the Year quatro vezes. Residiu e trabalhou em inúmeros locais como Londres,
Portugal, Zimbabue, , Iraque, Paquistão e Afeganistão e Brasil (onde casou-se com Paulo Anunciação com
quem tem um filho, Lourenço –nascido em 1999). Entrevistou inúmeras figuras do
cenário internacional como: Benazir Bhutto, Augusto Pinochet, Fernando Collor, Robert
Mugabe. Iniciou carreira jornalística no Financial Times.
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