[*] Barbara Newman, L. R . of Books, vol. 36, Nº 2,
23/1/2014, pp. 5-7
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Resenha de: The Letter Collection
of Peter Abelard and Heloise de David Luscombe - Londres:
ed. Oxford, 654 pp., agosto de 2013 - ISBN 978 0 19 822248 4 (£165.00)
Abelardo e Heloísa |
Há
900 anos, um filósofo-celebridade caiu de amores por sua aluna-estrela e
seduziu-a. As antes brilhantes conferências-aulas de Abelardo amornaram, e
canções de amor de sua lavra passaram a pôr o nome de Heloísa em todos os
lábios. Voaram cartas apaixonadas, e a máquina parisiense de boatos pôs-se a
operar em tempo integral – até que a gravidez, afinal, traiu o segredo. Muito
contra a vontade de Heloísa, Abelardo insistiu no casamento, para acalmar a
fúria de Fulbert, tio dela, que estava realmente enfurecido; e entregou o filho
de ambos aos cuidados de seu irmão, que vivia numa fazenda na Bretagne.
Casaram-se secretamente ao amanhecer e, dali, cada um seguiu seu rumo. Uma
Heloísa ressentida negava todos os boatos sobre o casamento. E Abelardo, para
protegê-la contra a ira de Fulbert, vestiu-a num hábito de monja e escondeu-a
longe, em Argenteuil, o mesmo convento onde ela fora criada. Foi como a gota
d’água que fez transbordar a paciência de Fulbert: contratou bandidos que
surpreenderam Abelardo quando dormia e caparam-lhe a parte da anatomia mediante
a qual ele cometera os crimes e pecados em discussão. Sem alternativa, o
filósofo eunuco fez-se monge, e Heloísa aceitou votos perpétuos, incluindo
neles, como prefácio, um lamento público.
David Luscombe |
Quase
imediatamente começaram a criar-se mitos sobre o casal. O poeta Jean de Meun,
ao descobrir as cartas que o casal trocara durante a vida religiosa,
traduziu-as ao francês e popularizou a história em seu Roman de la Rose [1]. Um dos
personagens elogia Heloísa, sem par entre as mulheres, mas também usa a
história, mesmo assim, para alertar os homens contra os perigos do casamento.
Lenda gótica narra que, quando Heloísa foi enterrada ao lado de Abelardo, morto
21 anos antes dela, o esqueleto dele abriu os braços para abraçá-la. Em A
morte de Arthur, Sir Thomas Malory fez de “Hellawes” uma bruxa, com
interesses necrofílicos na direção de Lancelot. Uma versão do século 18, de
versões romanceadas das cartas fizeram do casal o ícone do amor romântico. A
tal ponto que Josephine Bonaparte os fez ressepultar no cemitério Père
Lachaise.
Entre
os medievalistas, poucas figuras foram mais profundamente discutidas. O conto
epistolar foi lido como escândalo, romance trágico, edificante história de
conversão, ficção espertamente construída e exemplo, às vezes do patriarcado às
vezes do feminismo, em ação. Além de incontáveis pinturas, poemas, peças,
romances e óperas, as cartas geraram debate acadêmico muito mais amplo do que
supuseram merecer. O debate centrou-se não só na interpretação das cartas mas,
mais fundamentalmente, na autoria. A autobiografia de Abelardo, intitulada A
História das Calamidades Dele (orig. The Story of His Calamities [2]), reconta o infeliz caso de amor dentre outras
muitas “calamidades”, supostamente como esforço para consolar um amigo anônimo,
provando que as calamidades de Abelardo eram muito piores que as suas (dele).
As desgraças do filósofo incluíam uma condenação por heresia, a incineração de
seu livro sobre a Trindade, brigas com inimigos invejosos e sua nomeação para o
posto de abade de Saint-Gildas, abadia bretã tão corrupta que os monges locais
tentaram assassiná-lo, durante a missa, com um cálice envenenado. Ao mesmo
tempo em que pinta retrato vívido de seu carismático, embora irascível e tolo
autor, o texto também lança luz impressionante sobre a França do século 12.
Muitos dos detalhes podem ser confirmados em outras fontes, razão pela qual é
difícil contestar a veracidade do relato.
Heloísa,
apesar da tantas vezes confessada falta de vocação, rapidamente se tornou
abadessa de seu próprio monastério. Abelardo só teve elogios para a ex-esposa
(os votos monásticos de ambos automaticamente anularam qualquer casamento): “os
bispos a amavam como filha; os abades, como irmã; leigos, como mãe; e todos
admiravam sua piedade e sua prudência, além da gentileza e da paciência sem
iguais em todas as situações”.
Aí
começa o problema, porque, tão logo esse modelo de virtude pôs as mãos na
autobiografia de Abelardo, pôs-se a desmantelar, ela mesma, aquela imagem de
perfeita abadessa. Heloísa acusou seu “ex” de tê-la negligenciado durante a
primeira década da vida monástica de ambos; reclama de que o que o atraíra foi
“fogo de luxúria, não de amor” e exige que ele pague urgentemente a dívida de
atenção que tem com ela. Quando ele não paga, ela lança uma torrente de ataques
contra Deus, confessa que a religião, nela, é pura hipocrisia, porque até
durante a missa sua alma é invadida por “visões lascivas”. Em vez de lamentar o
que fez, Heloísa só suspira pelo que perdeu.
Inúmeros
historiadores modernos, em reação contra o mito romântico dos dois amantes,
consideraram difícil acreditar que uma verdadeira abadessa do século 12 tivesse
escrito tais coisas. Pouca diferença fez que a evidência documental de toda a
vida dela tendesse a confirmar mais os elogios de Abelardo, que as alegações de
Heloísa.
A
abadia dela, Abadia do Paracleto, floresceu, atraindo inúmeras vocações e
muitos fundos de doadores bem posicionados e, até, fundando casas afiliadas,
para construir sua própria miniordem monástica. Tornou-se também centro para formação
religiosa de mulheres.
Da
ravina entre romance trágico e fervor monástico brotou o Primeiro Debate sobre
a Autenticidade, que começou no início do século 19, mas ardeu mais
furiosamente nos anos 1970s e 1980s, quando a questão da autoria, sendo a
autora mulher, caiu sob as lentes de exames feministas. Alguns medievalistas
defenderam a autenticidade das cartas de Heloísa; uns poucos atribuíram a
autoria a diferentes falsificadores.
Mas
outros, entre os quais, principalmente, John Benton e D.W. Robertson, afirmaram
que as cartas foram forjadas pelo próprio Abelardo, o qual, para os dois
críticos, deu fama a – ou provavelmente, mesmo, inventou – aquela Heloísa
apaixonada, jamais arrependida, para dar ainda mais brilho à glória dele,
que a seduzira.
Como
as últimas cartas mostram, ela afinal se converteu, ou, no mínimo, aceitou “pôr
rédeas” aos próprios lamentos sem limitações. Assim, o que os românticos
tomaram como um fim trágico do romance entre os amantes foi, em vez disso, o
início de uma frutuosa colaboração intelectual entre eles.
Embora
Abelardo jamais tenha cedido à chantagem emocional que Heloísa lhe aplicou,
ele, sim, se mostrou absolutamente disposto a cooperar com sua “amada irmã em
Cristo”. O dossiê de escritos que Abelardo produziu para a ex-esposa e suas
noviças e freiras incluiria um discurso sobre a origem da vida religiosa das
mulheres (Carta n. 7, documento extraordinário do feminismo cristão); sobre a
administração de monastérios; um hinário completo para o ano litúrgico; um
ciclo de sermões; um comentário ao livro do Gênese; e um tratado sobre formação
bíblica para mulheres (Carta n. 9), no qual Abelardo elogia Heloísa por seus
(notáveis!) conhecimentos de hebraico e grego.
Fossem
quais fossem seus pensamentos privados, a abadessa que encomendou esses
escritos tem de ser sido parceira formidável, energética, intelectualmente
capaz. Mas essa colaboração não prova que ela não tivesse escrito as primeiras
cartas de paixão, sobre as quais repousa praticamente, justa ou não, toda a
fama de Heloísa.
Em
1999, a
poeira levantada pelo Primeiro Debate sobre a Autenticidade já começara a
baixar, e muitos especialistas já concediam que, sim, Heloísa escrevera as
cartas que levam seu nome. Mas exatamente naquele ano, Constant Mews,
medievalista em Melbourne, pôs fogo à fogueira do Segundo Debate sobre a Autenticidade:
publicou um livro que levava o título ousado e provocador de The Lost Love
Letters of Heloise and Abelard [As
cartas de amor perdidas de Heloísa e Abelardo].
Os
dois amantes falam, nas cartas canônicas, sobre cartas anteriores, que haviam
trocado “muitas e rápidas” enquanto durou o relacionamento amoroso. Em 1974,
Ewald Könsgen publicou uma recém descoberta coleção de cartas medievais em
latim, sugerindo, cautelosamente que podiam as cartas perdidas.
O
trabalho de Mews foi mais consistente e mais bem argumentado que o de Könsgen.
Mas essas “cartas de amor perdidas”, diferentes das cartas canônicas, eram
fragmentadas e sem qualquer assinatura; e chegaram até nós num único manuscrito
datado de 1471.
Procurando
reunir uma coletânea de estilo eloquente em língua latina, um copista humanista
em Clairvaux pôs-se a copiar partes de um manuscrito muito antigo. Enquanto
copiava, o copista foi-se deixando envolver cada vez mais no caso dos amantes
sem nome, e, meio sem perceber, passou a copiar não trechos, mas cartas
inteiras.
A
linguagem das cartas é claramente do início do século 12; o cenário é Paris. As
cartas narram relacionamento real, o idealismo romântico temperado por brigas e
desilusões inevitáveis. A mulher elogia o amante como um grande professor,
“ante o qual a teimosia nativa francesa se curva, e que a arrogância do mundo
todo é obrigada a aplaudir”. A parte da “teimosia nativa francesa” só faz
sentido se o professor não for francês; Abelardo era nascido na Bretagne, que
não era parte da França medieval. O professor, por sua vez, fala da bem-amada
como “a única aluna de filosofia que há entre todas as moças de nossa
era”.
Heloísa?
Abelardo? David Luscombe, nessa nova edição magistral das cartas canônicas,
mostra-se fortemente inclinado a dizer que não. Todos os professores, naquele
tempo, escreve ele, trocavam cartas em que flertavam com alunas; era recurso
pedagógico aceito para ensinar retórica em latim. E o tom daquela troca de
correspondência variava entre comentários jocosos-adolescentes e cortesias “de
salão” – uma paixão de aluna por professor, enfeitada com rostinhos inocentes
corados. Aquelas adolescentes e jovens mulheres viviam em conventos; o que não
acontece com a mulher das Cartas de Amor Perdidas; e, enquanto flertam e
coram, só fazem repetir que são castas e virgens; nada aparece nas cartas
típicas do período e do gênero, que se possa ver como declarada paixão
erótica.
O
compromisso da mulher anônima das Cartas de Amor Perdidas é muito
diferente e muito mais profundo e mais sério: “em toda a latinidade, não
encontrei palavra que diga plenamente o quanto minha mente se aplica a você,
deus é minha testemunha, amo você com um amor sublime e excepcional. Assim não
há nem haverá destino que me possa separar do seu amor, exceto, só, a morte”. A
retórica dessas cartas nada tem de convencional, como alguns se apressaram a
dizer que teriam. O estilo é exuberante, as cartas são obcecadas com capturar a
essência filosófica do amor. Definir o amor foi preocupação de toda aquela era;
trovadores e monges lutavam entre eles para dissecar os traços e humores do que
chamavam caritas (caridade) e fin’amors (amor refinado).
Para
o filósofo das Cartas de Amor Perdidas, o amor é “um certo poder da
alma, nem existente por ele mesmo, nem autocontido, mas sempre extravasado
sobre outro, com um tipo de apetite e desejo, querendo tornar-se um com o
outro, de tal modo que, de dois diferentes desejos, produza-se uma só coisa
indiferenciada”. A frase soa como definição que Abelardo poderia ter redigido.
O próprio termo “indiferenciada” (lat. indifferenter) é muito frequente
na solução que Abelardo propôs ao problema dos universais, que teve forte
influência nas melhores cabeças do início do século 12 francês.
As
paixões sempre giram em torvelinho em torno de Heloísa. Antes de Abelardo tê-la
conhecido pessoalmente, ele já conhecia a reputação dela: “não era nada menos,
na aparência; mas na abundância do seus saberes, ela era suprema”. Ele a
descreve, quando ela estava nos seus primeiros 20 anos, como “famosa em todo o
reino”. E há outros testemunhos. Educada pelas freiras de Argenteuil –
professoras prodigiosas, ao que se sabe – Heloísa tornou-se uma das mais
supremas estilistas da Idade de Ouro do Latim medieval.
Um
correspondente, Hugh Métel, é mais específico: seus melhores dotes eram para “a
composição, para escrever poesia, para criar neologias e para usar palavras
conhecidas dando-lhes novas significações”. Tão grande era seu talento
literário, que ela “ultrapassava a suavidade feminina e esgrimia a dureza mais
viril” (elogio padrão dirigido a mulheres, em tempos de misoginia brutal).
À
luz dos elogios de Métel, é fascinante descobrir que As Cartas de Amor
Perdidas, ou, pelo menos, as cartas da mulher, são ricas em neologias e
palavras raras, além de palavras familiares, usadas de modos nada familiares; e
as cartas mostram a mais decidida, a mais valente mistura de poesia e prosa.
Abelardo confessou que escolhera Heloísa para sua cama, principalmente porque
antevira o prazer de trocarem cartas, “nas quais podemos escrever muitas coisas
mais clara e firmemente do que poderíamos dizê-las”. Coisas, talvez, como o
arrebatado vocativo que abre As Cartas de Amor Perdidas: “Ao bem amado
do coração dela, mais cheiroso que todas as especiarias. Dela, que está no
coração e no corpo dele: quando o viço da tua juventude fanar, para que
revisites o frescor desse êxtase eterno”.
Apesar
de todo o sucesso dela como abadessa, Heloísa foi inegavelmente rebelde. Ela e
Abelardo partilharam o que os filósofos chamam de “a pura ética da intenção”:
não são as consequências reais, sequer as consequências previsíveis de um ato,
que o fazem bom ou mau, mas, exclusivamente, a intenção do agente. Dado porém
que só Deus pode conhecer e discernir intenções, essa posição complica muito
qualquer tentativa de construir julgamentos morais.
Outros
pensadores adotaram versões mitigadas da premissa, mas Heloísa foi
absolutamente rígida ao aplicá-la, sem nenhuma concessão. Por causa disso, via
como absolutamente sem valor, aos olhos de Deus, a sua própria vida de
religiosa exemplar: porque fizera tudo por amor a Abelardo, não por amor a
Deus. Por outro lado, considerava seu caso de amor moralmente inatacável,
porque amara Abelardo puramente por ele mesmo, sem qualquer consideração ou expectativa
de vantagem material. Estilista brilhantíssima até a medula, ainda faz arrepiar
a pele do leitor, pelo modo erótico-hiperbólico como constrói sua frase-gozo:
“Se Augusto, imperador do mundo, houvesse por bem me honrar com o casamento e
me conferisse toda a Terra, para que eu a possuísse para sempre, melhor me
pareceria, e mais honrado, ser conhecida, não como imperatriz dele, mas
como puta tua”. Nada de “amante” nem de “namorada”: puta –
Heloísa servia-se das palavras mais amaldiçoadas que encontrava no latim (meretrix,
scortum), para argumentar. Escreveu com todas as letras que a mais real
das prostituições é o casamento, se as mulheres casam-se mais pelas
propriedades e pelo dinheiro, que por amor. São sentimentos que teriam sido
radicais no século 18. Imaginem no século 12!
Considerando-se
o quanto Heloísa empenhou-se para provar que vivia como pensava, é difícil não
pensar sobre que futuro veria para si mesma quando, grávida, tentou dissuadir
Abelardo da ideia de casamento. Profissões femininas nos idos do ano de 1115
não abundavam: esposa, freira e prostituta; as opções eram essas. Teriam de
transcorrer 300 anos, até que Christine de Pizan converteu-se na primeira
mulher que se sustentou e viveu de escrever. Mas há, sim, uma pequena pista, um
pequeno sinal intrigante, de que, sim, Heloísa considerava já essa possibilidade
como futuro para ela mesma.
Em
A História das Calamidades Dele, Abelardo reproduz, com detalhes, a
diatribe de Heloísa contra o casamento, presumivelmente discurso copiado
diretamente de uma das cartas perdidas. Autores clássicos aprimoraram o gênero
do discurso antimatrimonial, uma dissuasio carregada de argumentos
machistas para provar que o filósofo em nenhum caso deveria casar-se.
Heloísa
escolheu a mesma lógica, para argumentar com o amante, contra o casamento; cita
a imagem de São Jerônimo, nada agradável, da vida familiar, com apenas uma
pequena modificação: “Que homem, curvado sobre pensamentos sacros ou
filosóficos, poderá suportar o choro de crianças, as canções de ninar das
criadas tentando acalmá-los, a barulheira de criados, homens e mulheres,
naquele ir-e-vir pela casa? E que mulher suportará a eterna sujeira e o
constante fedor dos bebês?”.
São
Jerônimo escreveu duas vezes “que homem” (“quis … quis?”).
Heloísa discretamente mudou o segundo “quis” [lat. “quem”,
interrogativo, masculino] por “que” [lat. Interrogativo, feminino]: “Que
mulher?” Para resumir: vemos aí uma mulher ilustradíssima, de alta formação
religiosa, no início do século 12, que absoluta e sinceramente não entende que
alguém espere que ela deva ser obrigada a suportar a sujeira e o fedor dos
bebês. É ideia que incomoda até nossas mentes dos séculos 20 e 21.
Betty
Radice, em sua tradução clássica de 1974 (reproduzida nessa edição de Luscombe,
com pequenas revisões), simplesmente não viu esse “Que mulher?”, nesse ponto da
carta, e traduziu os pronomes, nas duas frases, como “Quem...?”/”Quem...?”.
Mais difícil de explicar e justificar, Luscombe suprimiu, de vez, todo o
pronome interrogativo latino feminino “que”, já no texto em latim.
Confrontado
com uma diversidade de leituras de manuscritos, os editores guiam-se por vários
princípios. Os manuscritos mais antigos são em geral preferidos aos mais
recentes, e uma leitura consensual encontrada várias vezes ganha prioridade
sobre uma ou duas variantes conhecidas – a menos que haja razão de peso para
deixar de lado essas regras. Uma dessas razões pode ser uma difficilior
lectio [3].
Quando se deparavam com anomalias nos textos que copiavam, os escribas antigos
e medievais não raras vezes “corrigiam” algo que lhes parecesse inesperado ou
inusual, para produzir texto convencional; essa “correção” é muito mais
frequente que a que se faça na direção contrária (dar a texto “comum”, leitura “incomum”).
Por isso, uma antiga regra editorial decreta que, quando duas leituras
competem, a mais difícil é a que tem mais probabilidade de ser autêntica.
No
caso do “que” [latim, pronome interrogativo feminino, “que mulher?”) de
Heloísa, contudo, Luscombe viola todas as três regras. A “leitura mais dura” é
“que mulher?” – que se encontra nos oito manuscritos mais antigos do texto de
Abelardo. Por sua vez, o mais previsível “quis” (“que homem?”) só ocorre
em dois dos manuscritos mais antigos e numa antiga edição impressa. Ainda
assim, Luscombe imprime “que homem?” [lat. “quis”] depois da passagem de
São Jerônimo e relega “que mulher?” às notas de pé de página. E, com essa
operação, a Heloísa contrafatual – a que teria sido intelectual independente,
rebelde, anticasamento, exultante na paixão livre – desaparece de vista, antes
mesmo de que a tenhamos conseguido ver.
Mas
Jean de Meun, que escreveu nos anos 1260s, sim, percebeu bem que ali havia o
que ver: para o seu Romance da Rosa, ele interpretou corretamente a
diatribe de Heloísa. Heloísa rejeitou o casamento, escreveu Meun, “para que
[Abelardo] pudesse dedicar-se integralmente ao estudo, / Todo dela, todo livre,
sem se amarrar a nada, / E para que ela também pudesse retomar seus estudos, /
Porque ela muito queria saber”.
Heloísa,
em resumo, pensou o impensável e tentou viver conforme sua convicção.
Todas as discussões à parte, a edição bilíngue de Luscombe e importante realização que, pela primeira vez, permite que o leitor [de inglês] compare todos os manuscritos existentes e leia as cartas canônicas do começo ao fim, incluindo o texto integral das regras que Abelardo escreveu sobre como dirigir uma abadia – e que a Abadessa Heloísa, apesar do muito que se dizia obediente e apaixonada, jamais obedeceu com rigor. Depois de 900 anos, essa mulher espantosa ainda nos aparece cheia de surpresas.
Todas as discussões à parte, a edição bilíngue de Luscombe e importante realização que, pela primeira vez, permite que o leitor [de inglês] compare todos os manuscritos existentes e leia as cartas canônicas do começo ao fim, incluindo o texto integral das regras que Abelardo escreveu sobre como dirigir uma abadia – e que a Abadessa Heloísa, apesar do muito que se dizia obediente e apaixonada, jamais obedeceu com rigor. Depois de 900 anos, essa mulher espantosa ainda nos aparece cheia de surpresas.
O
Segundo Debate da Autenticidade está longe de acabar, e depois que a poeira
baixar também sobre ele (porque fatalmente baixará), talvez precisemos de
edição ainda mais longa, que retrace o relacionamento do casal, desde os
primeiros momentos do nascimento da paixão, através da separação e da tragédia,
até o re-encontro e o re-compromisso, numa parceira intelectual e espiritual
tão excepcional quanto o amor deles.
Notas dos tradutores
[1] Romance da Rosa. Porto: Porto Editora, 2003-2014.
[2] Ver: Historia Calamitatum (em inglês)
[3] Lat. lectio
difficilior (trad.
“leitura mais dura”). Na reconstrução de textos (da Bíblia, por exemplo), a
ideia segundo a qual, de duas leituras alternativas de texto manuscrito, a que
imponha significado menos óbvio é a que tem menos probabilidade de ser
alteração introduzida por copista; por isso, deve ter precedência.
__________________
[*] Barbara Newman é
professora de Inglês, Religião e Clássicos da Universidade Northwestern. Seu mais recente livro é Medieval Crossover: Reading
the Secular against the Sacred (2013). Conhecida por seu trabalho sobre a cultura religiosa
medieval, poesia alegórica, e da espiritualidade das mulheres. Ela
também é o editora / tradutora de Tomás de Cantimpré: Thomas of Cantimpré: The Collected Saints' Lives
'(2008), e autora de Frauenlob's Song of
Songs: A Medieval German Poet and His Masterpiece (2006), God and the Goddesses: Vision, Poetry, e Belief
in the Middle Ages (2003), e From
Virile Woman to WomanChrist: Studies in Medieval Religion and Literature
(1995), bem como três obras sobre Hildegard de Bingen: um volume editado, Voice of the Living Light: Hildegard of Bingen and
Her World (1998); uma edição e tradução de músicas coletadas de
Hildegard, Symphonia Armonie Celestium
Revelationum (1988, rev 1998.) e Sister
of Wisdom: St. Hildegard's Theology of the Feminine (1987).
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