sábado, 1 de fevereiro de 2014

Conflicts Fórum: Comentário semanal de 17 a 24/1/2014

31/1/2014, Conflicts Forum 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Genebra II: O resultado do conflito na Síria afetará muitas coisas. Contribuirá diretamente para modelar o equilíbrio geoestratégico na região; ou imporá limites ao crescimento do jihadismo takfiri; ou, em vez disso, injetará oxigênio nesse fantasma, por toda a região – e também na Ásia Central e Norte da África; afetará o modo como a instável ordem mundial se desdobrará – e a Síria pode ainda provar ser a nêmese da Arábia Saudita; ou não. Menos certo é se Genebra II contribuirá substantivamente para esse resultado sírio definitório – seja qual for.

Walid Moallem, Ministro das Relações Exteriores da Síria (E) conversa com a chefe da política externa da UE, Catherine Ashton (D)  durante pausa nas conversações de paz de Genebra-2 em Montreux, 22 de janeiro de 2014. 
De fato, as possibilidades para Genebra permanecem envoltas em incerteza, e até a condução do “processo” como tal é duvidosa (dado que não há qualquer agenda real). É, isso sim, cedo demais para especular sobre o significado mais amplo, caso haja.

De que trata Genebra II? Antes (Genebra I), era claro: o encontro interessava aos EUA e aliados, para impor um “governo de transição”, decidido “no escalão superior” (EUA e aliados – e possivelmente também a Rússia), que simplesmente usurparia todos os poderes executivos e de segurança do presidente Assad – e deixaria Assad desinflado como bola murcha, capaz de colaborar, só, para sua própria “demissão” política. (Naquele momento, os EUA e alguns europeus assumiam que o presidente da síria não teria escolha além de curvar-se à “rua” e aos poderes arregimentados contra ele). Esse plano inicial foi, na essência, requentamento do modelo do Iêmen: as potências externas resolveram entre elas, antes, a receita para o Iêmen – e a decisão delas foi simplesmente comunicada aos iemenitas numa conferência, com ordens para implementá-la.

Genebra I fracassou, em primeiro lugar, porque os EUA naquele momento queriam manter algum tipo de “parceria” com a Rússia (o que só veio a ser possível com o Acordo das Armas Químicas); ou, em outras palavras, “o alto escalão” não conseguiu concordar com o projeto; e, em segundo lugar, porque “éditos” exarados pelos “altos escalões” visivelmente já não tinham impacto algum sobre os grupos em campo, sobretudo sobre os vários grupos jihadistas, que não querem saber de democracia, nem do próprio estado-nação, nem de secularismo. Em linguagem simples, o “alto escalão” simplesmente não mandava, porque os atores armados o ignoravam, sabendo que as potências externas continuariam, em todos os casos, a patrocinar o conflito militar.

Kerry e Lavrov reunidos com assessores discutem a situação na Síria
Agora, as coisas são muito diferentes (embora a retórica passada sobre a necessária “transição” de Assad se mantenha, especialmente com Kerry e o “coro” dos think-tanks ocidentais, mas – o que chama a atenção – não com os serviços ocidentais de segurança e inteligência). Medos sobre o crescimento do jihadismo, e sua irradiação para a região e para fora dela, só fizeram crescer, até serem hoje o medo principal. Já não é indispensável “tirar” Assad e, mais que isso: a permanência dele na presidência passou a ser uma necessidade de segurança (seja para implementar o Acordo das Armas Químicas, seja para fazer a guerra crucial contra os jihadistas).

Em certo sentido, Genebra II converteu-se numa espécie de ponte muito instável a ligar a antiga política (ocidental, de derrubar Assad) e uma nova política de assegurar a estabilidade regional mediante a destruição do jihadismo na “linha de frente” na Síria.

Nem todos nos EUA concordam com essa mudança (o Secretário de Estado absolutamente não consegue admiti-la explicitamente para o eleitorado doméstico).

A “contraestratégia” dos intervencionistas norte-americanos e do Golfo (em reação contra o movimento do governo dos EUA) é elevar as necessidades humanitárias do povo sírio até conseguir usá-las como Cavalo de Troia, que transportará dentro da barriga de madeira as forças do intervencionismo – ostensivamente pelo mais nobre dos motivos, é claro – dar proteção aos corredores humanitários, “para instalar pontos de passagem de fronteira para que a ONU entre na Síria, sem qualquer controle por Damasco... Para levar ajuda a centenas de milhares” e/ou para implantar “áreas seguras” para os refugiados.

Terroristas disparam metralhadora anti-aérea contra edifícios em Aleppo (19/1/2014)
Áreas “seguras” dentro da Síria – se vierem a ser implantadas – servirão como cabeça de ponte (ao estilo de Benghazi) para ampliar o envolvimento estrangeiro dentro de um estado soberano.

Rússia e Síria farejaram imediatamente o complô, e a Síria optou por apresentar preventivamente sua própria proposta de ajuda humanitária e de desescalada, em seus próprios termos. Esses termos não incluem ceder nem um milímetro da soberania da Síria.

Numa agenda de Genebra, da qual já se extraíram todas as questões sensíveis, a questão humanitária tende a ser inflada até converter-se em fachada para mais guerra, entre os intervencionistas presentes, de um lado; e, de outro, os que (como Síria, Rússia e Irã) estão decididos a repelir qualquer forma de intervenção ocidental (lição definitiva que aprenderam da Líbia).

Quanto ao governo dos EUA, o objetivo principal parece agora limitado a inventar um show em que se “confrontam” o governo sírio e uma “oposição” de espectro muito limitado, que conversam entre eles (daí as declarações do Departamento de Estado para a imprensa-empresa ocidental, de que esperam um “processo longo”).

Tendo perdido o bonde principal, o ocidente busca agora, sobretudo, conter o conflito, mais do que inflamá-lo sempre mais, o que ameaça os países vizinhos. É pouco provável que Washington creia que muita coisa possa emergir dessa conferência, sabendo, como sabe, que a delegação da “oposição” não tem, de fato, quase nenhuma legitimidade em campo, dentro da Síria; que a “oposição” está rachada por conflitos internos; e que a posição do presidente Assad em campo, na Síria, é forte.

Seja como for, é possível que EUA e Rússia esperem que esse começo tumultuado assinale, pelo menos, o ressurgimento de alguma política na Síria, depois de longo hiato. (O governo sírio também reconhece a necessidade de diálogo nacional para definir o futuro do estado. E já iniciou, discretamente, amplas discussões nacionais, em andamento já há algum tempo). Mas engendrar qualquer diálogo nacional não será tarefa simples: prova disso é o empenho fartamente noticiado com o qual o embaixador Ford dos EUA teve de ameaçar e chantagear a “oposição”, para que aparecesse em Montreux.

Entrincheirados nas colinas de Golan (território sírio roubado por Israel) soldados judeus
observam cidade Quneitra, zona fronteiriça Síria
Por tudo isso, não será fácil para o secretário Kerry manter – sem fazer papel ridículo –o movimento de os EUA deslizarem (o mais invisivelmente possível) na direção de uma nova posição e de aceitarem a realidade de que o presidente Assad ficará exatamente onde está (e, de fato, há praticamente nada que os EUA possam fazer para derrubá-lo, pelo menos no atual estágio) ao mesmo tempo em que os EUA mantêm uma pantomima de “fé” no Conselho Nacional Supremo, frente a uma opinião pública nos EUA que foi longamente condicionada a ver o presidente Assad como uma espécie de “monstro”. O público norte-americanos perceberá tudo isso.

Tema também complicado é que a questão síria vai-se misturando cada vez mais com as negociações com o Irã. Na verdade, as duas questões sempre estiveram entrelaçadas, mas surgiu agora mais um “nó”, depois que o Irã foi “desconvidado” à conferência de Genebra, exatamente quando os norte-americanos contavam com a influência do Irã – que facilitaria a “passagem”, de Kerry, para a nova política de guerra contra o jihadismo ressurgente. (A recente retomada de Falluja, pela “al-Qaeda”, é símbolo poderosíssimo dentro dos EUA).

Outra grande “virada” é que Rússia e Irã estão concluindo – fartamente noticiado – um gigantesco negócio de petróleo, o qual, do ponto de vista dos EUA, ameaça a doutrina norte-americana segundo a qual só se o Irã for “apertado” por sanções e mais sanções, será possível obter “solução” para a “questão nuclear”. A exportação de 0,5 milhão de barris/dia de petróleo iraniano para a Rússia, que não importará para seu uso, mas para embarcá-lo diretamente para seus clientes asiáticos, é vista em Washington como, potencialmente, o início do colapso da política de sanções. O Congresso dos EUA é obcecado com manter as sanções (com apoio de Israel); mas a Rússia, não.

Mohammad Javad Zarif, MRE do Irã (E) e Sergey Lavrov MRE da Rússia (D) em 16/1/2014, durante o fechamento de negócio de petróleo entre seus países

Daí que já haja “resmungos” de porta-vozes dos EUA, sobre aplicar sanções à Rússia; não passam de boatos. A Rússia jamais subscreveu sanções unilaterais, nem norte-americanas, nem europeias – a Rússia considera as sanções ilegais, dado que não têm aprovação do Conselho de Segurança da ONU. Assim, os russos têm repetido aos funcionários dos EUA que a possível troca por petróleo (o Irã receberá produtos e moeda) não é assunto que diga respeito aos EUA. (Evidentemente, acrescentará 182 milhões de barris/dia de petróleo à produção anual, o que fará aumentar a pressão pela OPEC e pela Arábia Saudita, para reduzir a produção em outros pontos – se quiserem manter o preço em torno de $100 por barril.).

A questão aqui é que o presidente Obama absolutamente não tem força para impedir que o Congresso imponha novas sanções ao Irã – movimento que detonará qualquer negociação política com os iranianos. Obama está muito vulnerável, mas, até agora, tem conseguido manter o Congresso “em ordem”. O negócio entre russos e iranianos pode fazer naufragar essa situação precária – criada pela (falsa) narrativa dos norte-americanos, segundo a qual só muitas sanções podem forçar o Irã a recuar do projeto de construir armas atômicas (que é a equação [israelense] sobre a qual o Congresso dos EUA opera).

É possível que a Casa Branca tenha interpretado que as duas coisas – o negócio Rússia-Irã e a presença do Irã em Genebra – seria demais para que o Congresso dos EUA digerisse. Algo teria de ceder: e o Irã foi “desconvidado”, para conter o fogo do Congresso contra Obama (que estaria sendo “mole” com os iranianos). Em resumo, tudo isso sugere que a Casa Branca espera mais das negociações com o Irã, do que de eventuais frutos aproveitáveis que brotem de Genebra.

Robert Ford
O que tudo isso diz sobre Genebra II? Diz que as condições cruciais ainda não estão presentes, para uma solução política. Sim, os “altos escalões” têm agora uma boa base de entendimentos alcançados; sim, uma delegação servil da “oposição” síria está, sim, obedientemente sentada em Montreux; e ambos, EUA e Rússia trabalham na direção da desescalada.

Mas... e os patrões regionais do conflito armado têm algum interesse em desescalar alguma coisa? O briefing do embaixador Ford para a oposição síria (se corretamente noticiado) parece dizer a eles que “Sim”: em março, a “oposição” verá grandes mudanças na política saudita (Bandar e Saud al-Faisal terão saído de cena); e o Irã prometeu à Rússia e aos EUA, que também deseja a desescalada.

A questão é: o embaixador Ford acertará em suas “previsões”? Será preciso esperar até março, para saber. Por hora, não se vê sinal de que o Golfo estaria interessado em qualquer desescalada em campo, em todo o Oriente Médio, exceto no Líbano, como observamos nos Comentários da semana passada.




[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

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