31/1/2014, Conflicts Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Genebra II: O
resultado do conflito na Síria afetará muitas coisas. Contribuirá diretamente
para modelar o equilíbrio geoestratégico na região; ou imporá limites ao
crescimento do jihadismo takfiri; ou, em vez disso, injetará
oxigênio nesse fantasma, por toda a região – e também na Ásia Central e Norte
da África; afetará o modo como a instável ordem mundial se desdobrará – e a
Síria pode ainda provar ser a nêmese da Arábia Saudita; ou não. Menos certo é
se Genebra II contribuirá substantivamente para esse resultado sírio
definitório – seja qual for.
De fato, as
possibilidades para Genebra permanecem envoltas em incerteza, e até a condução
do “processo” como tal é duvidosa (dado que não há qualquer agenda real). É,
isso sim, cedo demais para especular sobre o significado mais amplo, caso haja.
De que trata
Genebra II? Antes (Genebra I), era claro: o encontro interessava aos EUA e
aliados, para impor um “governo de transição”, decidido “no escalão superior”
(EUA e aliados – e possivelmente também a Rússia), que simplesmente usurparia
todos os poderes executivos e de segurança do presidente Assad – e deixaria
Assad desinflado como bola murcha, capaz de colaborar, só, para sua própria “demissão”
política. (Naquele momento, os EUA e alguns europeus assumiam que o presidente
da síria não teria escolha além de curvar-se à “rua” e aos poderes
arregimentados contra ele). Esse plano inicial foi, na essência, requentamento
do modelo do Iêmen: as potências externas resolveram entre elas, antes, a
receita para o Iêmen – e a decisão delas foi simplesmente comunicada aos
iemenitas numa conferência, com ordens para implementá-la.
Genebra I
fracassou, em primeiro lugar, porque os EUA naquele momento queriam manter
algum tipo de “parceria” com a Rússia (o que só veio a ser possível com o
Acordo das Armas Químicas); ou, em outras palavras, “o alto escalão” não
conseguiu concordar com o projeto; e, em segundo lugar, porque “éditos”
exarados pelos “altos escalões” visivelmente já não tinham impacto algum sobre
os grupos em campo, sobretudo sobre os vários grupos jihadistas, que não
querem saber de democracia, nem do próprio estado-nação, nem de secularismo. Em
linguagem simples, o “alto escalão” simplesmente não mandava, porque os atores
armados o ignoravam, sabendo que as potências externas continuariam, em todos
os casos, a patrocinar o conflito militar.
Kerry e Lavrov reunidos com assessores discutem a situação na Síria |
Agora, as
coisas são muito diferentes (embora a retórica passada sobre a
necessária “transição” de Assad se mantenha, especialmente com Kerry e o “coro”
dos think-tanks ocidentais, mas – o que chama a atenção – não com
os serviços ocidentais de segurança e inteligência). Medos sobre o crescimento
do jihadismo, e sua irradiação para a região e para fora dela, só
fizeram crescer, até serem hoje o medo principal. Já não é indispensável “tirar”
Assad e, mais que isso: a permanência dele na presidência passou a ser uma necessidade
de segurança (seja para implementar o Acordo das Armas Químicas, seja para
fazer a guerra crucial contra os jihadistas).
Em certo
sentido, Genebra II converteu-se numa espécie de ponte muito instável a ligar a
antiga política (ocidental, de derrubar Assad) e uma nova política de assegurar
a estabilidade regional mediante a destruição do jihadismo na “linha de
frente” na Síria.
Nem todos
nos EUA concordam com essa mudança (o Secretário de Estado absolutamente não
consegue admiti-la explicitamente para o eleitorado doméstico).
A “contraestratégia”
dos intervencionistas
norte-americanos e do Golfo (em reação contra o movimento do governo dos
EUA) é elevar as necessidades humanitárias do povo sírio até conseguir usá-las
como Cavalo de Troia, que transportará dentro da barriga de madeira as forças
do intervencionismo – ostensivamente pelo mais nobre dos motivos, é claro – dar
proteção aos corredores humanitários, “para instalar pontos de passagem de fronteira
para que a ONU entre na Síria, sem
qualquer controle por Damasco... Para levar ajuda a centenas de
milhares” e/ou para implantar “áreas seguras” para os refugiados.
Terroristas disparam metralhadora anti-aérea contra edifícios em Aleppo (19/1/2014) |
Áreas “seguras”
dentro da Síria – se vierem a ser implantadas – servirão como cabeça de ponte
(ao estilo de Benghazi) para ampliar o envolvimento estrangeiro dentro de um
estado soberano.
Rússia e
Síria farejaram imediatamente o complô, e a Síria optou por apresentar
preventivamente sua própria proposta de ajuda humanitária e de desescalada, em
seus próprios termos. Esses termos não incluem ceder nem um
milímetro da soberania da Síria.
Numa agenda
de Genebra, da qual já se extraíram todas as questões sensíveis, a questão
humanitária tende a ser inflada até converter-se em fachada para mais guerra,
entre os intervencionistas presentes, de um lado; e, de outro, os que (como
Síria, Rússia e Irã) estão decididos a repelir qualquer
forma de intervenção ocidental (lição definitiva que aprenderam da Líbia).
Quanto ao
governo dos EUA, o objetivo principal parece agora limitado a inventar um show
em que se “confrontam” o governo sírio e uma “oposição” de espectro
muito limitado, que conversam entre eles (daí as declarações do
Departamento de Estado para a imprensa-empresa ocidental, de que esperam um “processo
longo”).
Tendo
perdido o bonde principal, o ocidente busca agora, sobretudo, conter o
conflito, mais do que inflamá-lo sempre mais, o que ameaça os países vizinhos.
É pouco provável que Washington creia que muita coisa possa emergir dessa
conferência, sabendo, como sabe, que a delegação da “oposição” não tem, de
fato, quase nenhuma legitimidade em campo, dentro da Síria; que a “oposição”
está rachada por conflitos internos; e que a posição do presidente Assad em
campo, na Síria, é forte.
Seja como
for, é possível que EUA e Rússia esperem que esse começo tumultuado assinale,
pelo menos, o ressurgimento de alguma política na Síria, depois de longo hiato.
(O governo sírio também reconhece a necessidade de diálogo nacional para definir
o futuro do estado. E já iniciou, discretamente, amplas discussões nacionais,
em andamento já há algum tempo). Mas engendrar qualquer diálogo nacional não
será tarefa simples: prova disso é o empenho fartamente
noticiado com o qual o embaixador Ford dos EUA teve de
ameaçar e chantagear a “oposição”, para que aparecesse em Montreux.
Entrincheirados nas colinas de Golan (território sírio roubado por Israel) soldados judeus observam cidade Quneitra, zona fronteiriça Síria |
Por tudo
isso, não será fácil para o secretário Kerry manter – sem fazer papel ridículo
–o movimento de os EUA deslizarem (o mais invisivelmente possível) na direção de
uma nova posição e de aceitarem a realidade de que o presidente Assad ficará
exatamente onde está (e, de fato, há praticamente nada que os EUA possam fazer
para derrubá-lo, pelo menos no atual estágio) ao mesmo tempo em que os EUA
mantêm uma pantomima de “fé” no Conselho Nacional Supremo, frente a uma opinião
pública nos EUA que foi longamente condicionada a ver o presidente Assad como
uma espécie de “monstro”. O público norte-americanos perceberá tudo isso.
Tema também
complicado é que a questão síria vai-se misturando cada vez mais com as
negociações com o Irã. Na verdade, as duas questões sempre estiveram entrelaçadas,
mas surgiu agora mais um “nó”, depois que o Irã foi “desconvidado” à
conferência de Genebra, exatamente quando os norte-americanos contavam com a
influência do Irã – que facilitaria a “passagem”, de Kerry, para a nova
política de guerra contra o jihadismo ressurgente. (A recente retomada
de Falluja, pela “al-Qaeda”, é símbolo poderosíssimo dentro dos EUA).
Outra
grande “virada” é que Rússia e Irã estão concluindo – fartamente noticiado – um
gigantesco
negócio de petróleo, o qual, do ponto de vista dos EUA, ameaça a
doutrina norte-americana segundo a qual só se o Irã for “apertado” por sanções
e mais sanções, será possível obter “solução” para a “questão nuclear”. A
exportação de 0,5 milhão de barris/dia de petróleo iraniano para a Rússia, que
não importará para seu uso, mas para embarcá-lo diretamente para seus clientes
asiáticos, é vista em Washington como, potencialmente, o início do colapso da
política de sanções. O Congresso dos EUA é obcecado com manter as sanções (com
apoio de Israel); mas a Rússia, não.
Mohammad Javad Zarif, MRE do Irã (E) e Sergey Lavrov MRE da Rússia (D) em 16/1/2014, durante o fechamento de negócio de petróleo entre seus países |
Daí que já
haja “resmungos” de porta-vozes dos EUA, sobre aplicar sanções à Rússia; não
passam de boatos. A Rússia jamais subscreveu sanções unilaterais, nem
norte-americanas, nem europeias – a Rússia considera as sanções ilegais, dado
que não têm aprovação do Conselho de Segurança da ONU. Assim, os russos têm
repetido aos funcionários dos EUA que a possível troca por petróleo (o Irã
receberá produtos e moeda) não é assunto que diga respeito aos EUA.
(Evidentemente, acrescentará 182 milhões de barris/dia de petróleo à produção
anual, o que fará aumentar a pressão pela OPEC e pela Arábia Saudita, para
reduzir a produção em outros pontos – se quiserem manter o preço em torno de
$100 por barril.).
A questão
aqui é que o presidente Obama absolutamente não tem força para impedir que o
Congresso imponha novas sanções ao Irã – movimento que detonará qualquer
negociação política com os iranianos. Obama está muito vulnerável, mas, até
agora, tem conseguido manter o Congresso “em ordem”. O negócio entre russos e
iranianos pode fazer naufragar essa situação precária – criada pela (falsa)
narrativa dos norte-americanos, segundo a qual só muitas sanções podem forçar o
Irã a recuar do projeto de construir armas atômicas (que é a equação
[israelense] sobre a qual o Congresso dos EUA opera).
É possível
que a Casa Branca tenha interpretado que as duas coisas – o negócio Rússia-Irã e
a presença do Irã em Genebra – seria demais para que o Congresso dos EUA
digerisse. Algo teria de ceder: e o Irã foi “desconvidado”, para conter o fogo
do Congresso contra Obama (que estaria sendo “mole” com os iranianos). Em
resumo, tudo isso sugere que a Casa Branca espera mais das negociações com o
Irã, do que de eventuais frutos aproveitáveis que brotem de Genebra.
Robert Ford |
O que tudo
isso diz sobre Genebra II? Diz que as condições cruciais ainda não estão
presentes, para uma solução política. Sim, os “altos escalões” têm agora uma
boa base de entendimentos alcançados; sim, uma delegação servil da “oposição”
síria está, sim, obedientemente sentada em Montreux; e ambos, EUA e Rússia
trabalham na direção da desescalada.
Mas... e os
patrões regionais do conflito armado têm algum interesse em desescalar alguma
coisa? O briefing do
embaixador Ford para a oposição síria (se corretamente noticiado)
parece dizer a eles que “Sim”: em março, a “oposição” verá grandes mudanças na
política saudita (Bandar e Saud al-Faisal terão saído de cena); e o Irã
prometeu à Rússia e aos EUA, que também deseja a desescalada.
A questão
é: o embaixador Ford acertará em suas “previsões”? Será preciso esperar até
março, para saber. Por hora, não se vê sinal de que o Golfo estaria interessado
em qualquer desescalada em campo, em todo o Oriente Médio, exceto no Líbano,
como observamos nos “Comentários” da semana passada.
[*] Conflicts Fórum visa mudar a
opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida,
linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as
causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de
linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de
expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos -
atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas
enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando
interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por
trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo
pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.
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