13 de fevereiro de 2014 – Página do MST
Enviada pelo pessoal da Vila Vudu
Fotos do entrevistado: Pilar
Oliva
Entrevistadores:Alan Tygel,
Leonardo Ferreira e José Coutinho Júnior
O filósofo marxista François Houtart,
da Bélgica, em entrevista exclusiva à Página do MST, analisa os motivos da
crise global, o impacto das recentes mobilizações de massa na sociedade e a
importância da integração latino-americana para o continente. François esteve
presente no VIº Congresso do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra..
Confira a entrevista:
MST: Você afirma que
as diversas crises que vivemos estão interligadas. O que conecta essas crises?
François Houtart (FH):
O que liga as crises é a lógica do sistema capitalista, que privilegia o valor
de troca, dizendo que tudo deve ser mercadoria para contribuir na ganância e
acumulação do capital.
Essa lógica se aplica a todos os âmbitos da vida humana,
influindo nas políticas agrárias, industriais, na relação com a natureza e
submetendo tudo à lógica de reprodução do capital.
Estamos numa crise global, não só geograficamente, mas uma
crise de sistemas, na relação com a natureza, do sistema alimentar, energético,
climático etc..
A crise não é somente financeira ou econômica, é geral, e
uma das coisas novas é a crise dos ecossistemas e do clima. O capitalismo
desregula o equilíbrio entre a natureza e seres humanos.
O ritmo de reprodução do capital é completamente diferente
do da natureza, e como o capital impõe seu ritmo sobre a natureza, isso gera
catástrofes naturais.
Os países socialistas também destruíram a natureza como no
capitalismo. Porque o socialismo real também tinha esta visão de um progresso
infinito e uma terra inesgotável. Por isso, nos últimos anos se desenvolveu o
ecossosialismo em países da Europa, da América Latina, Venezuela em particular,
com várias experiências de um modelo que respeite a natureza.
É um problema mundial. O capitalismo monopolístico está
hegemonizando grande parte da economia latino-americana, e a concepção de
desenvolvimento dos líderes políticos, mesmo nos governos ditos progressistas,
não mudou.
MST: Qual é esta
concepção?
FH: Há alguns
anos moro no Equador, e Rafael Correa, que é meu amigo e foi meu aluno, tem
como concepção de desenvolvimento a modernização do estado. Muito bem, modernizar
a economia em essência é bom. Mas o que significa isso para ele? Significa
investir em agrocombustíveis, monocultivos, transgênicos.
No Equador também há mais mineração, exploração do petróleo,
grandes vias. Essa é a visão de desenvolvimento, que não pensa na realidade do
país, no camponês, nos povos indígenas, ou como construir pouco a pouco um
desenvolvimento mais respeitoso da natureza e dos povos.
Esses fatores vão criar mais e mais conflitos, por alguns
motivos: primeiro por parte do povo, que não compartilha dessa concepção de
desenvolvimento, mas não tem força política. Segundo, o esgotamento deste
modelo. Já se vê aqui no Brasil, na Argentina, que o modelo se esgotou, não é
sustentável.
Além disso, os novos regimes latino-americanos se baseiam em
um consenso popular. Houve um melhoramento real da situação dos mais pobres,
mas dentro de uma concepção relativamente assistencialista de programas ao combate
à pobreza, programas que são bem organizados, mas que não fazem do povo um
ator, e sim um cliente.
Assim, o consenso é muito frágil, pois se as condições
econômicas da economia mundial mudam, se o preço das matérias primas ou das
commodities baixam, isso afeta a possibilidade dos governos de ter políticas
sociais, o que põe o consenso em perigo.
François Houtart |
MST: Como as recentes
manifestações de jovens pelo mundo se inserem nesse cenário?
FH: Essas
mobilizações massivas são fruto das contradições do capitalismo. Claro que o Occupy é diferente dos indignados ou das
manifestações no Brasil. Mas apesar de serem originadas da condição estrutural
fundamental do capitalismo, a consciência desses manifestantes ainda é bastante
superficial, não vai às causas do problema.
São reações justas, mas superficiais, pelo fato também que
os protestos são uma reação mais de classe média ou média baixa urbana, não
indo à raiz do problema. Por essa razão, não exercem um tipo de ação eficaz
contra o sistema.
Esses protestos têm uma concepção anarquista, individual, e
com pouca visão da necessidade de organização e ação política. Isso pode mudar,
mas até agora, por exemplo na Europa, é muito claro que não houve nenhum
impacto político concreto, a não ser reforçar a direita, o que não era a
intenção.
É um sintoma importante, mas que não dá realmente uma
resposta. As respostas vêm com análises mais claras das raízes do problema, uma
formação e uma organização, senão é relativamente fácil de marginalizar esse
tipo de protestos.
A não ser que a repressão a essas manifestações seja muito
violenta para comover a sociedade, geralmente elas são reprimidas e não afetam
a ordem.
É preciso que estes movimentos espontâneos se formem
teoricamente, analisem as coisas mais à fundo e tenham juízo político mais
adequado. Isso pode ajudar a uma transformação futura.
MST: Qual deveria ser
o papel das organizações de esquerda e movimentos sociais nessas mobilizações?
FH: Há uma certa
distância dos movimentos sociais com essas expressões de protesto novas. Me
parece que é um pouco difícil dos movimentos sociais entenderem as
manifestações, e os manifestantes não querem essa aproximação com medo de “serem
dominados ou se perder”.
E como é um movimento urbano, é difícil para muitas
entidades intervirem. Os sindicatos perderam muito de seu caráter
revolucionário, e não vão poder trabalhar com estes jovens, pois isso é uma
coisa nova.
Acho que talvez elementos jovens de um movimento mais
radical, como o MST, possam ter um certo encontro com esses jovens, para ajudar
a entender melhor a situação social que nos encontramos, e também fazer com que
esses jovens entendam a situação do campo.
MST: As organizações
devem pensar em novas formas de luta e atuação?
FH: Sim. Pensar
nisso é uma reação contra a burocratização dos movimentos sociais. Esses
protestos são uma chance para as organizações se autocriticarem frente ao
problema de organização, e é necessário para entender esses novos fenômenos que
ocorrem agora.
É um processo que pode ajudar a uma transformação interna
dos movimentos organizados, pois estes jovens chegam com novas ideias e valores
que não devem ser condenados.
MST: Você é um grande
defensor da integração latino-americana. É possível, hoje, realizar essa
integração? E como ela poderia alterar essa conjuntura de crises?
FH: Devemos ser
realistas. A Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) é um
milagre de Chávez, por conseguir reunir países com ideias tão opostas como
México, Chile e Bolívia.
Devemos conhecer os limites dessas organizações latino-americanas
que existem, mas é possível tomar várias medidas importantes. Por exemplo,
seria possível fazer regras em conjunto no setor da mineração.
Não vamos impedir as transnacionais e a China de explorar
minas, pelo menos por ora, mas podemos colocar regras. No Equador, as
mineradoras canadenses se retiraram. Foram ao Peru porque há menos regras. Se
existisse um acordo latino-americano de regras frentes as transnacionais de
mineração, isso seria considerado uma força. O Equador sozinho não é
nada.
Organismos como a CELAC não têm muito poder. A União de
Nações Sul-Americanas (UNASUL) e o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) são mais
expressivos. A ALBA seria o ideal, pois é a única organização com um pensamento
pós-capitalistas.
As outras organizações são pós neoliberais. A ALBA tem
princípios diferentes, mas é muito marginal. Tem 10 países, e 5 são do Caribe.
A ALBA não tem poder grande, e sua tendência, com Equador, Nicarágua, Bolívia,
é ser menos anticapitalista.
Pois como eu disse, esses governos são pós neoliberais, mas
não pós capitalistas. Ao mesmo tempo, penso que devemos insistir sobre a
importância da integração e dos organismos, não sobrevalorizando ou
deslegitimando seu papel.
François Houtart |
MST: Como você avalia
a decisão da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação
(FAO) de considerar 2014 o ano da agricultura familiar?
FH: Como todo
organismo dentro das nações unidas, a FAO ela não vai ser revolucionária. A
influência das forças econômicas e políticas nesse órgão é tal que a relação de
forças não é a favor das ideias mais avançadas.
Mas devemos sempre aproveitar. É muito bom que uma parte da
FAO apóie iniciativas de agricultura campesina. Em outubro fizemos uma reunião
de agricultura camponesa na Bolívia, que contou com 40 especialistas e apoio
dos movimentos camponeses e indígenas. O representante da FAO esteve presente e
foi muito positivo.
O Papa Francisco também tem declarado apoio aos camponeses e
à luta pela terra...
Todo novo papa é uma mudança séria. Mas não podemos esperar
que um grupo de cardeais muito conservadores pudesse eleger um papa
revolucionário, era impossível. Mas elegeu o melhor entre os piores (risos).
Ele não vai pregar a teologia da libertação, mas é pastor,
quer uma proximidade afetiva com os movimentos e os pobres, isso é uma grande
mudança. A adoção do nome de Francisco, para um jesuíta é um passo forte.
É um sinal positivo. Podemos esperar que ele abra espaços,
como esta reunião dos movimentos sociais e dos mais pobres em Roma. É positivo,
mas não podemos esperar uma mudança revolucionária. Há sinais que demonstram o
contrário, como eleger o cardeal de Honduras [Oscar Rodríguez Madariaga] como
homem chave da reforma da igreja.
MST: Por que?
FH: O cardeal
tomou posição a favor do golpe militar, e é odiado pelos movimentos sociais.
Ele é um homem da oligarquia tradicional, apesar de um discurso muito
progressista e anticapitalista, suas práticas internas são problemáticas. Ele
ser o eixo fundamental da reforma da igreja é um problema.
Alguns sinais desse tipo mostram uma ambiguidade,
especialmente política. Os discursos do papa são anticapitalistas, mas contra o
capitalismo selvagem, o que significa que há um capitalismo civilizado.
É típico da doutrina social da igreja, mas não da teologia
da libertação, que analisa a sociedade em termos de classes sociais. A doutrina
da igreja prega a união e colaboração de todos para chegar a um bem comum, sem
ver a oposição estrutural das classes sociais.
Se condena o capitalismo mais pelos seus efeitos que pela
sua lógica. Mas não devemos ser pessimistas, devemos estar felizes de que há
mudanças e estar presentes nos espaços que se abrem, porque às vezes esses
espaços podem ser mais importantes do que eles pensam.
___________________
[*] François Houtart (Bruxelas, 1925) é um sacerdote católico e sociólogo belga,
fundador do Centro Tricontinental (CETRI) operando na Universidade Católica de
Leuven, e na revista “Alternatives Sud”. Tornou-se figura conhecida no movimento
de justiça global. Foi ordenado sacerdote em 1949. Formado em Ciências
Políticas e Sociais da Universidade Católica de Louvain e diplomado pelo
Instituto Internacional de Urbanismo Aplicado de Bruxelas, é também Doutor em Sociologia
pela Universidade de Leuven, onde lecionou 1958-1990. Houtart já escreveu mais
de 50 livros e centenas de artigos acadêmicos e imprensa.
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