segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Conflicts Fórum: Comentário semanal de 31/1-7/2/2014

22/2/2014, Conflicts Forum’s 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Mapa político do Oriente Médio
Já é visível que muitos “Mercados Emergentes” (ME) estão sofrendo com uma retirada do dinheiro de curto prazo que esteve “estacionado” lá como efeito de uma expansão monetária sem precedentes buscada principalmente por EUA, Japão e China. Agora, (depois do “afunilamento” [orig. taper] pelo Fed dos EUA) o “dinheiro quente” está sendo trazido de volta para casa – e por toda parte as moedas dos ME estão caindo. Mas a queda no valor das respectivas moedas foi particularmente evidente na Turquia (10% em relação ao dólar norte-americano, ao longo do último ano), que gerou uma reação do tipo “choque e pavor” pelo Banco Central Turco, com aumento de juros, de 7,75% para 12,5% — aumento possivelmente suficiente para “furar” o balão do “milagre” turco e, de fato, o “modelo turco” (da Fraternidade Muçulmana).

O Banco Central Turco tem boas razões para apertar o botão de alarme. A Turquia ficou altamente dependente desse “dinheiro quente” externo para cobrir seu crescente déficit atual, que já chega a $60,8 bilhões, cerca de 7% do PIB (no período jan.-nov. 2013). Perder esse portfólio de curto prazo não é só debilitante: é potencialmente fatal, seja economicamente seja para o destino político de Erdogan.

Como observou um comentarista econômico:

David P. Goldman
(...) a Turquia não pode financiar sua gigantesca carência de dinheiro emprestado, sem oferecer taxas de juros tão altas que farão explodir a bolha de construção-e-consumo que serviu como máscara para um suposto milagre econômico turco nos últimos anos (...). Parece pouco provável que o já atrasado aumento nos juros, pelo Banco Central, venha a impedir desvalorização ainda maior da lira. Com inflação de 7,4% e aumentando, a taxa de juros de referência, do BC, de 10%, oferece apenas um pequeno prêmio acima da taxa de inflação. Cerca de 2/5 da dívida interna da Turquia é denominada em moeda estrangeira, e a queda da lira manifesta-se em custos mais altos para o serviço dessa dívida.

A Turquia, ao que parece, ficará com o pior dos dois mundos, a saber, taxas de juros locais mais altas – e moeda fraca... Em vários sentidos, a bolha de Erdogan faz lembrar as experiências da Argentina em 2000 e do México em 1994, quando crescente dívida externa alimentou bolhas de vida curta, de prosperidade, seguidas de desvalorizações da moeda e quedas profundas. Argentina e México compraram popularidade oferecendo crédito barato aos consumidores, como fez Erdogan nos meses anteriores à eleição nacional de junho de 2011.

Mas a bolha de construção-e-consumo não é a única que pode furar; a crise turca também ameaça uma “narrativa” inteira e uma identidade. As ramificações políticas são profundas para os islamistas sunitas, como a Fraternidade Muçulmana.

A Fraternidade Muçulmana levou a sério o modelo Erdogan. Para eles, Erdogan parecia oferecer via certa e segura até o poder: oferecer progresso socioeconômico; adotar princípios islamistas genéricos e ambíguos; apresentar um islamismo não assertivo; mas, sobretudo, abraçar uma doutrina econômica (neo)liberal. A Fraternidade concluiu que, adotando aquelas políticas neoliberais, estariam de algum modo “vacinados” contra a desconfiança instintiva, no ocidente, contra governos islamistas – em outras palavras: se fossem economicamente neoliberais, o ocidente relevaria o islamismo deles, desde que se mantivesse como islamismo pouco assertivo, morno.

Recep Erdogan
Agora, Erdogan corre o risco de se ver desacreditado tanto por: (a) sua política externa domesticamente muito criticada, e que trouxe um jihadismo takfiri diretamente para dentro da própria Turquia, como porque (b) há agora o perigo extra de seu milagre econômico islamista ser exposto como nada além de quimera. A Fraternidade Muçulmana, duramente ferida no Egito, vê-se agora ante o risco de perder suas fundações intelectuais – e a própria identidade. Ainda mais grave, dado que – desde o tempo de Banna – o islamismo sunita deliberadamente se separou dos discursos históricos do Islã. E sempre que comunidades veem-se diante de crises existenciais, o mais frequente é que se voltem para as próprias raízes mais profundas, onde se podem renovar.

Hoje, a Turquia está usando todas as ferramentas de que dispõe para estabilizar a lira, mesmo sabendo que o movimento dificilmente terá impacto duradouro. Isso, porque os problemas financeiros da Turquia foram gravemente exacerbados por uma luta pelo poder que tem raízes profundas e que só se intensificará até as eleições locais em março; presidenciais, em agosto; e parlamentares em 2015.

Desde o início de 2012, Conflicts Fórum já alertava que o que estava sendo chamado de “Despertar Árabe” estava sendo mal interpretado na imprensa-empresa ocidental, como se fosse levante popular espontâneo; exigência de reformas – o que em grande parte refletiria a influência de valores ocidentais.

Argumentamos então que a ira popular dita “antissistema” naquele momento não incluía qualquer “grande ideia” que lhe desse rumo, e que estava sendo dominada e controlada por alguns “projetos de poder” que os eventos também haviam despertado.

Fraternidade Muçulmana
Um daqueles projetos de poder era o da Fraternidade Muçulmana; o outro era o da contrarrevolução dos estados do Golfo, determinados a esmagar qualquer movimento que ameaçasse os monarcas e as famílias reinantes no Golfo.

Outra vez, como Goldman destaca:

(...) agora, [quando o milagre de Erdogan já está sob risco], poucos analistas perguntam como a Turquia teria conseguido sustentar o atual déficit interno, que oscilou entre 8% e 10% do PIB durante os últimos três anos, situação tão ruim quando o déficit grego nos anos que antecederam o colapso financeiro em 2011. A resposta mais provável é que a Turquia tenha recebido vastos empréstimos, cedidos a ela por bancos sauditas e de outros estados do Golfo (...).

Dados do Banco Internacional de Compensações (BIS) mostram que a Turquia financiou grande parte de seu enorme déficit através do mercado interbancário, quer dizer, com empréstimos de curto prazo de outros bancos aos bancos turcos. Não se veem sinais, nos bancos ocidentais, de tão grande exposição à Turquia; os bancos do Golfo não divulgam a exposição regional, mas há evidências de que a solidariedade sunita tem algo a ver com a disposição original dos estados do Golfo, para comprar a dívida turca. As relações entre a Turquia e os estados do Golfo estão hoje em ruínas. Se os estados do Golfo perderam a paciência ou se ficaram sem recursos para apoiar o surto de endividamento de Erdogan; ou, ainda, se o “mau comportamento” da Turquia os levou a decidir retirar o apoio, é difícil dizer. Todos esses fatores, provavelmente, estiveram em ação. Em todos os casos, o rancor de Erdogan contra a Arábia Saudita empurrou-o para mais perto de Teerã”. Isso – parafraseando Donald Rumsfeld – pode contar como um “não sabido não sabido” (...) há desenvolvimentos potenciais que não sabemos que não sabemos.

Mas, haja aí um movimento deliberado ou o resultado de alguma mudança nas percepções dos banqueiros (e políticos) do Golfo, nos dois casos, o que se vê deve ser contado como mais uma aparente vitória dos contrarrevolucionários – que aí está, seja como for.

TiBerlusconi
Com certeza os estados do Golfo têm os meios – e já têm diante dos olhos o exemplo do primeiro-ministro Berlusconi, tirado do governo exatamente por uma escalada (manipulada) dos custos do financiamento da dívida externa. Na Líbia, o dinheiro do Golfo ajudou a financiar os rebeldes e garantiu treinamento para os “insurgentes” que derrubaram Gaddafi; na Síria e no Líbano, dezenas de bilhões foram gastos no esforço para consumar uma vingança contra o presidente Assad, por se ter aliado ao Irã; no Egito, os estados do Golfo financiaram grande parte dos movimentos de protesto contra Mursi e promoveram diretamente o golpe de Estado que derrubou Mursi; e na Turquia também, o “dinheiro” do Golfo parece ter desempenhado seu papel na derrubada do próprio modelo – o ícone, o “sucesso” do [partido] AKP – pelo qual a Fraternidade se autodefinia.

A contrarrevolução pode também exibir o escalpo do Hamás, cujas garras foram cortadas – cortesia da junta militar que o movimento ajudou a pôr no poder no Cairo.

Em 2012, estimava-se que os estados do Golfo tivessem superávit na conta corrente de mais de $400 bilhões (mais que o dobro da China, no mesmo ano). Enquanto os superávits do Golfo alcançavam esses níveis recordes, o resto do mundo árabe só via os respectivos equilíbrios orçamentários sumirem. E, além da riqueza do estado e o nível de riqueza dos bancos, empresas e indivíduos e famílias reunidos no Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), ao que se calcula, já teria chegado a $3 trilhões (sem incluir os fundos soberanos). Essa acumulação de dinheiro “grande” gerou a visão de mundo de uma elite cosmopolita do Golfo, furiosamente privilegiada (e arrogante), imensamente rica – além de neoliberal e reacionária – que a fez usar sua riqueza como ferramenta básica para conter e fazer recuar os movimentos populares, além de intervir na política regional, para manter esse lucrativo status quo.

Essa riqueza gigantesca, já agora profundamente integrada no sistema financeiro global, “vacinou” em larga medida as ações dos estados do Golfo contra qualquer crítica séria pelo ocidente, por suas intervenções militares ou pela repressão contra qualquer oposição. Antes, como se vê, aconteceu o contrário: os think-tanks ocidentais já não têm como elogiar mais os emires pela “capacidade para sobreviver” e por seus “gastos sociais”.


No máximo, houve algum muito tímido comentário sobre os sauditas recorrerem a jihadistas para usá-los como “braço militar” dos estados do Golfo. Mas jamais se ouve qualquer crítica que denuncie a contradição entre essa ação e o proclamado desejo do Golfo de promover a democracia e “reformas” do “sistema árabe” – que foram os aspectos que levaram o ocidente a identificar-se com os manifestantes.

Tudo isso considerado, os estados do Golfo parecem ter alcançado uma vitória muito clara. E podem também festejar o modo como europeus – principalmente França e Grã-Bretanha – tão firme e rapidamente se identificaram com seus objetivos.

Mas, mesmo com tamanho sucesso visível, persiste uma vulnerabilidade, um medo, uma neurose, sempre localizável no discurso do Golfo. Há até um toque de paranoia no modo como os sauditas creem na própria propaganda: sempre vendo um xiita escondido atrás de cada árvore. Os estados do Golfo, isso sim, gastaram milhões para silenciar o desconforto doméstico; mas muitos relatos (além de vários artigos distribuídos por nosso Conflicts Fórum) sugerem que, apesar da imensa riqueza, os “Gulfies” “não estão felizes”, para citar The Economist. A liderança do reino está à deriva; “eles têm largura de banda muito estreita” – avalia um diplomata de outro país. “Mal dá para governarem o próprio país, não uma ambiciosa agenda regional”.

Vizinhos e aliados da Arábia Saudita também estão mais desconfiados, a cada dia. Diz The Economist:

Estão preocupados, e não só com as tensões domésticas. A política externa dos sauditas, nos anos recentes, tornou-se simultaneamente mais errática e mais assertiva.

O sheikh Salem Abdulaziz al-Sabah repete há quase uma década: 
O Kuwait está gastando muito dinheiro...
Seus aliados no Golfo temem que a Casa de Saud esteja perdendo o férreo controle na esfera religiosa, que foi atiçada para atender às ambições regionais dos sauditas – particularmente na Síria.

Os estados do Golfo contribuíram para a queda de Gaddafi, de Mursi, da Fraternidade Muçulmana, do Hamás e agora, possivelmente, também para a queda de Erdogan; mas suas políticas coletivas, se bem analisadas, fizeram avançar os próprios objetivos, segundo um porta-voz:

(...) dentro do novo ambiente, como Riad o vê, as políticas da Arábia Saudita continuam a ser movidas pelas prerrogativas da estabilidade regional.

De fato, muito longe de trazerem estabilidade à região, as políticas sauditas só trouxeram terríveis insegurança e tumultos e abriram a caixa de Pandora de uma radicalização do extremismo sunita que impõe hoje perigos muito maiores que no início do conflito afegão, nos anos 1980s. Assim como a cumplicidade de

Erdogan com jihadistas na Síria foi tiro pela culatra que atingiu a Turquia, assim também a cumplicidade entre o Golfo e radicais começa a repercutir de volta, para dentro das sociedades no Golfo.

Na verdade, compartimentar a incitação ao radicalismo – como os sauditas dizem que estariam fazendo – é empreitada irrealizável. É absolutamente impossível empurrar jovens para pensar e agir com radicalismo na Síria... e mantê-los dóceis e obedientes em casa.

O governo mantém o povo calado, com dinheiro; nos raros casos em que não funcionou, usaram ameaçasThe Economist cita um diplomata em Riad.

Arábia Saudita e Bahrain incentivam seus jovens a lutar... na Síria!
De fato, tanto o Bahrain como a Arábia Saudita tiveram de impor leis draconianas para calar críticas contra o governante; essas leis vieram mascaradas sob a rubrica de “combate ao terrorismo”. Os estados do Golfo, apesar de todo o gasto doméstico, não conseguiram criar instituições nacionais (tudo gira em torno da “família” governante e dos conselheiros mais íntimos). E todos, agora, enfrentam profundos problemas sociais, que o dinheiro só conseguiu mitigar parcialmente.

Apesar dos gastos crescentes do governo, muitos kuaitianos dizem que sua qualidade de vida está deteriorando. “As pessoas estão ficando furiosas” – diz um jovem ativista da oposição. – “Como você pode me pedir que gaste menos, quando o governo joga dinheiro fora?” Os maiores protestos são contra a qualidade dos serviços. Os kuaitianos recebem moradia do governo ou um empréstimo para comprar a casa, depois do casamento. Mas a lista de espera tem hoje 106.747 kuaitianos à espera, muitos dos quais esperarão durante décadas. A carência de moradias tornou proibitivo o custo de uma casa comprada com recursos privados. Quase metade da população do Kuwait tem menos de 20 anos e viverá com os pais até bem depois de entrados na idade adulta. Muitos kuaitianos agarram-se aos benefícios que realmente funcionam. A gasolina, por exemplo, é mais barata que a água. Os preços da eletricidade não sobem desde 1966 – assim, membros do governo, alguns dos quais reconhecem que devem reduzir os gastos, resistem a quaisquer cortes.

Raghu
Mandagolathur
Gastos generosos em programas ao longo dos últimos anos têm sido referidos como a razão pela qual o país teria passado relativamente incólume pela “primavera árabe”. O governo teme fazer mudanças que sejam impopulares – diz Raghu Mandagolathur, do Kuwait Financial Centre, um banco de investimentos..

Fato que não se pode deixar de ver, contudo, é que os estados do Golfo fracassaram em todos os objetivos de política externa que criaram para eles mesmos, há seis anos. A Arábia Saudita e seus aliados e procuradores fracassaram ao não conseguir reverter o “renascimento” do Irã, como o chamou o Professor Hossein Mousavian; fracassaram ao não conseguir destruir o Hezbollah, nem a Síria, nem Malaki no Iraque, nem, em geral, a “frente da Resistência” (exceto o Hamás). Os estados do Golfo já não têm a influência que tiveram no Líbano ou no Iêmen; a Líbia está reduzida ao caos total, e o Egito já avança pelos primeiros estágios, também, rumo ao caos.

O que os sauditas têm hoje pela frente é a realidade de que a primazia regional deles (e do CCG) está, muito provavelmente, acabada. Um novo equilíbrio está emergindo – com o Irã no polo oposto – mas, em vez de ter construído algum modus vivendi com essa nova realidade, os sauditas se posicionaram profundamente contra ela – e contra, também três nações historicamente poderosas, que têm economias, exércitos e recursos (tanto materiais como em termos de população) para efetiva ação política: o Irã, o Iraque e a Turquia.

A principal realização dos sauditas em todo esse período foi manter o Ocidente tão intimamente alinhado ao lado dos estados sunitas e seus interesses. Mas a avaliação que se vai disseminando, de o quanto esse grupamento de monarquias depende de jihadistas como “nosso exército”, já está pondo também essa “realização” sob forte estresse.




[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

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